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APLICAÇÃO DO CONCEITO DE INTERESSE EM RELAÇÃO À RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA NA JURISPRUDÊNCIA PORTUGUESA

VIÁRIA E SEUS EFEITOS

2.2.1 – PRINCÍPIO GERAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL EM PORTUGAL AS NORMAS DE RESPONSABILIDADE CIVIL RELATIVAS AO TRÁFEGO AUTOMÓVEL

C) APLICAÇÃO DO CONCEITO DE INTERESSE EM RELAÇÃO À RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA NA JURISPRUDÊNCIA PORTUGUESA

O Código Civil português estabelece um sistema de responsabilidade civil objectiva no caso de acidentes causados por veículos. Segundo o artigo 503º/1:

“Artº 503º - (Acidentes causados por veículos) - 1. Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.”

Analisámos o alcance do conceito de interesse utilizado nesta disposição legal e a forma como tem sido interpretada e aplicada pelos tribunais. Em particular verifi caremos se este conceito tem sido entendido num sentido amplo9.

Seguindo a explicação de Antunes Varela10, como regra geral, em caso de acidente, o responsável será o dono do veículo dado que é ele que normalmente aproveita as suas vantagens especiais e, por tal, deve responsabilizar-se pelos riscos derivados da sua utilização11.

Esta norma contém duas condições necessárias para que se atribua a um indivíduo a responsabilidade pelos danos causados por um veículo de circulação terrestre: a) que tenha a direcção efectiva do veículo; b) que tenha interesse na sua utilização12.

8 Sobre este tema, Vid. Costa, Mário Júlio de Almeida. Direito das Obrigações, 7ª ed. Coimbra: Almedina, 1991, p. 546.

9 Vid. Supra. Capítulo 1, divisão 6.

10 Varela, Antunes. Das Obrigações em Geral. 9ª ed. Vol I. Coimbra: Almedina, 1989, p. 679.

11 Noutra passagem, Antunes Varela refere: “O interesse na utilização, tanto pode ser um interesse material ou económico (se a utilização do veículo visa satisfazer uma necessidade susceptível de avaliação pecuniária), como um interesse moral ou espiritual (como no caso de alguém emprestar o carro a outrem só para lhe ser agradável) nem sequer sendo caso de exigir aqui que se trate de um interesse digno de protecção legal. Pode tratar-se mesmo de um interesse reprovável (empréstimo do veículo para um fi m imoral ou ilícito) : seria um contra-senso libertar o dono do veículo da responsabilidade objectiva que, em princípio recai sobre o detentor, a pretexto de ser contrário à lei ou aos bons costumes o fi m que determinou a cedência do veículo”.

Vê-se, por esta passagem, que o autor considera o interesse como a utilidade retirada de qualquer bem, seja material ou espiritual, nomeadamente se pode deduzir que o altruísmo gera também utilidade - tem por conseguinte um valor económico - pelo que tem associado um custo que deve ser internalizado para que se obtenham resultados efi cientes.

12 Em termos formais, se designarmos a responsabilidade por y, a direcção efectiva do veículo por x

1 e o

interesse próprio por x

Aplicando o que expusemos anteriormente acerca do princípio da racionalidade, a premissa do interesse como condição necessária (ainda que não sufi ciente) para a imputação da responsabilidade objectiva tem como fi nalidade a internalização dos custos por parte de quem desfruta dos benefícios, de modo que tenha incentivos para modifi car o seu comportamento nas situações em que todo ou parte do custo da actividade se projecte sobre terceiros.

Para que os resultados da aplicação desta norma jurídica sejam efi cientes é necessário que a responsabilidade civil pelo risco seja imputada aos que, tendo em conta a direcção efectiva do veículo (x

1) obtenham os benefícios dessa direcção (x2). É o caso daqueles que, sem terem o direito de propriedade do veículo, têm a sua direcção efectiva, como são os casos de usufruto, de aluguer, de reserva de propriedade13, o autor de furto ou o indivíduo que usa o veículo de forma abusiva. Quem utiliza o veículo em benefício de outrem – como é o caso de mandatário – não tem a responsabilidade objectiva.

O conceito de interesse, tal como o defi nimos no Capítulo I, não se reduz à utilidade económica em sentido estrito mas abarca também qualquer situação ou estado que proporcione prazer ou satisfação de qualquer índole ao indivíduo, seja patrimonial, espiritual ou moral. O Interesse a que se refere o artigo 503º/1 que estamos comentando14, deverá ser interpretado neste sentido amplo, de modo a que a sua aplicação conduza a resultados efi cientes.

A Jurisprudência portuguesa tem-se pronunciado em várias ocasiões sobre o conceito de interesse e o seu papel na determinação da responsabilidade civil. Referiremos, seguidamente, alguns casos relevantes.

O Tribunal da Relação de Lisboa, no seu acórdão de 17 de Julho de 197315 afi rma que o conceito de interesse é uma condição necessária para a atribuição da responsabilidade objectiva:

“E se o empresário foi motivado ao menos por amizade (sublinhado nosso) não deixa o dono de ter também interesse na circulação, nada havendo na lei que permita concluir que o “interesse” de que fala o artigo 503º haja de ser exclusivamente um interesse de carácter patrimonial. Por sua vez, a responsabilidade do dono do veículo não é excluída pelo facto de o veículo circular também no interesse do comodatário”.

13 Ver artigo 409º do Código Civil (CC): Reserva de Propriedade.

14 Outras interpretações do conceito de interesse efectuadas pela doutrina portuguesa, podem ver-se em: Varela, Antunes. Das Obrigações em Geral... Op. cit., p. 682.

Pela análise da passagem deste acórdão verifi ca-se que a amizade é entendida como um bem, o que está em consonância com a teoria do método económico que defendemos. Por outro lado, se a amizade é um bem, dela derivam certos benefícios, ou prazer, a que está associado um custo de oportunidade.

Noutro acórdão, para fundamentar a imputação da responsabilidade pelo risco, decorrente da circulação automóvel, diz-se:

“O proprietário do veículo que o empresta a um amigo para este dar um passeio, continua com a direcção efectiva do mesmo, e este não deixa por isso, de circular no seu próprio interesse.”16

Ainda outro acórdão 17do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), refere:

“ O legislador português, para fi xar a imputação da responsabilidade pelo risco inerente aos veículos em circulação terrestre, fi xou, como elemento decisivo dessa responsabilidade, a direcção efectiva e interessada do veículo (artigo 503º, nº 1 do Código Civil).

O proprietário de um veículo que o empresta gratuitamente a um seu empregado, mantém a direcção efectiva interessada desse mesmo veículo, já que este circula com a sua autorização e no seu interesse, por satisfazer, desse modo, o pedido daquele empregado, cujos serviços aprecia.”

O assento STJ, de 13 de Julho de 197818, refere que:

“Preenche o requisito do artigo 503º, n.º 1, do Código Civil, quem cede gratuitamente a seu fi lho estudante o seu veículo automóvel, que continuou a utilizar quando necessário ou por vontade própria, sendo a cedência ao fi lho económica e espiritualmente dependente do interesse do pai quanto à utilização do veículo pelo fi lho”

A sentença de 23 de Março de 197919, do Tribunal da Relação do Porto refere que:

“ O interesse que o n.º 1 do artigo 503º do Código Civil tem em vista pode ser de índole moral ou espiritual”

Todos estes acórdãos mostram que, de forma geral, a aplicação da lei, em Portugal, quanto à interpretação que é dada ao conceito de interesse, como uma das duas condições para a imputação da responsabilidade civil objectiva, está de acordo com o sentido que lhe damos na análise económica, contribuindo, como antes dissemos, a que a sua aplicação, 16 Acórdão da Relação do Porto, de 25 de Janeiro de 1974. BMJ, Nº 234-340.

17 Assento do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 3 de Fevereiro de 1976. BMJ, Nº 254-185. 18 Assento do STJ, de 13 de Julho de 1978. C.J., 1978, Tomo 4-1456.

por tender a internalizar os custos emergentes de uma determinada conduta, conduza a situações efi cientes, pelo menos tendencialmente.

No que respeita ao requisito da direcção efectiva saliente-se que a lei quer signifi car que este conceito se aplica a quem tem o poder real de determinar a utilização do veículo, ou seja, a quem tem o domínio do veículo, que pode ser outro que não o condutor, ou seja, fazer escolhas.

Os riscos próprios do veículo, referidos na lei, podem integrar-se na categoria do conceito normativo, que não tem uma delimitação bem defi nida. Tende a confundir-se com o perigo que o próprio veículo, per se, constitui, como situação potencial de dano através da sua utilização.