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2. EM CÂMARA LENTA E K.: ASPECTOS ANALÍTICOS DE DUAS OBRAS DA

2.1. A DESILUSÃO E A BRUTALIDADE EM CÃMARA LENTA

2.1.5. APONTAMENTOS FINAIS

Ao analisar cada uma dessas pequenas histórias ou o conjunto por elas designado, conseguimos sintetizar o imenso rol de temáticas naquelas que lhes seriam primordiais: as organizações de esquerda e suas estruturações e posicionamentos contestatórios; a rotina dos guerrilheiros urbanos e rurais, bem como o desgaste físico e emocional por eles vivenciados; as torturas e os assassinatos políticos; a solidão e o isolamento – caracterizados por meio do distanciamento entre revolucionários e a sociedade e pela vivência na clandestinidade (vista como um “exílio” em próprio solo nacional); as formas de resistência à dominação e opressão ditatorial; e o pessimismo diante do iminente fracasso de um ideal (a luta armada).

Já como pontos literários amplamente trabalhados destacamos como essenciais as questões apresentadas pelo binômio temporal presente x passado; pelos contrapontos propiciados pelo par ficção x realidade (pequenos comentários acerca de importantes nomes históricos e dos contatos que os mesmos travaram com os personagens, a ficcionalização de indivíduos de carne e osso, etc); pela construção de uma atmosfera de repressão, angústia, ódio por meio de uma linguagem crua e violenta; pelo emprego de jargões utilizados pelos militantes da época (aparelho, queda, pontos, companheiro, ação); e pela presença de focos narrativos variantes e incitadores de múltiplas interpretações e de personagens que, ao contrário de carregarem um forte carga pessoal e individual, representariam – principalmente – um anseio de uma coletividade específica (a esquerda brasileira).

Além desses, quatro outros aspectos estruturais inerentes à obra renatiana devem ser mencionados. O primeiro relaciona-se à exploração de plausíveis interligações entre os quatro blocos narrativos, propiciadas – em grande parte - pelo trânsito e participação das mesmas figuras literárias em diferentes momentos e contextos. Já o segundo seria apontado nas pesquisas realizadas por Lasch (2010) e Nascimento (2011): as simetrias espaciais e contextuais presentes em variadas passagens voltadas à abordagem das duas modalidades de luta armada: o surgimento de uma descrição praiana dotada de um forte viés idílico; a temática do “exílio” experimentado no próprio país (jovens guerrilheiros escondidos nas matas brasileiras; estudantes vivendo trancados em aparelhos urbanos em virtude da clandestinidade); a tentativa, por vezes frustrada, de conscientização populacional (os caboclos e moradores rurais, os segmentos trabalhistas e o operariado citadino).

Para Passos (2012, p. 37), o emprego de tais recursos literários incutiriam a ideia e a momentânea aparência de unidade, tanto a nível intertextual (coerência e continuidade entre fragmentos distintos) – como extratextual (proximidade entre as guerrilhas urbanas e rurais).

A construção estrategicamente rarefeita, em que se prima pela cisão abrupta entre os momentos de reflexão solitária do guerrilheiro, as discussões do grupo, as rememorações de um passado anterior ao trauma fundamental da trama e a referências à guerrilha na selva amazônica [...] não exclui ainda uma manobra sofisticada que busca, por vezes, conectar via linguagem um fragmento do texto ao

seguinte, estabelecendo o nexo inerente não só à narrativa, mas à luta política de então.

Procurando exemplificar seu ponto de vista, cita os seguintes trechos, nos quais notamos construções frasais praticamente igualitárias para apresentar ações tomadas por diferentes figuras literárias (no primeiro caso, o próprio venezuelano; no segundo, um personagem não identificado) em espaços físicos também divergentes (a floresta x o apartamento):

[...] agora estavam entregues à floresta e a si mesmo [...] O venezuelano voltou para onde estavam os outros. Todos olharam para ele, esperando a decisão.

Todos olharam para ele, como se esperassem uma decisão. A sala do apartamento era pequena e abafada [...] (TAPAJÓS, 1979a, p. 22, grifo nosso).

A presença de fragmentos soltos e que, aparentemente, parecem não ligar-se a nenhuma das histórias apresentadas destaca-se como terceiro ponto. Segundo Lash (2010), eles seriam em número de três e conduziriam o leitor a deparar-se com um narrador em primeira pessoa rememorando um período anterior à sua militância armada, porém já defensor de uma posição política contestadora. Abaixo, apresentamos um deles:

Na parede da cela, alguém havia escrito a lápis, com letras pequenas e ligeiramente tremidas:

“Uma multidão de crianças Que só queria brincar Portando espadas de papel

Perdeu-se no tempo.” (TAPAJÓS, 1979a, p. 92).

Copilamos intencionalmente esse trecho, no qual detectamos como espaço central um ambiente carcerário, devido a sua possibilidade de gerar diferentes interpretações e leituras: o passado relatado poderia ligar-se ao personagem masculino condutor do foco narrativo dos dois blocos da obra centrados na guerrilha urbana – as temáticas do ambiente opressor (“cela”), da postura inocente e despreparada dos jovens frente à revolução (“espadas de papel”) e do pessimismo (“perdeu-se no tempo”), presentes em outras partes do texto, também aqui ecoam; entretanto, ao conhecer o contexto pessoal cerceador da vida do próprio escritor – Tapajós encontrava-se detido no momento inicial da criação e confecção de sua obra – muitos defendem que o pretérito

ali evidenciado pertenceria não a uma figura ficcional, e sim a uma pessoa real. Ambas as visões são possíveis e até certa medida entrelaçáveis ao lembrarmos de que para alguns críticos, como Passos (2012), o romance classificar-se-ia como uma auto ficção, onde poderia ocorrer ou não a completa coincidência entre narrador e autor.

Por fim, temos a imagem da tragédia, da dor e da agressão que marcariam toda a trajetória textual anunciada já na capa do romance - criada pela designer Moema Cavalcanti (REIMÃO, 2011). O desenho, embora dotado de simplicidade, é marcante: nele distinguimos três bocas com traços femininos em atitudes e momentos

destoantes – uma sorri; a seguinte exibe lábios praticamente fechados, apenas com

um fino espaço entre eles; já na última esses se encontram totalmente fechados e machucados (um pequeno filete escorre da junção labial).

Para Nascimento (2011) e Reimão (2011), toda essa composição atua como uma representação pictórica da repressão, da supressão de liberdade, da opressão física e da tortura – por vezes infligida não só ao corpo, mas também à mente e ao coração – experimentadas tanto pelos seres ficcionais como por um grande número de brasileiros ao decorrer das décadas de 1960 e 1970.

É interessante notar como o jogo de cores corrobora para a afirmação dessa teoria. O fundo branco do papel contrapõe-se ao preto dos traçados responsáveis por esboçar os contornos bucais – vazados e destituídos de qualquer coloração - e ao vermelho presente no título – todo ele em letras maiúsculas, garrafais, preenchíveis e ausentes de contorno – e no lastro que flui do último desenho. A simbologia e a metáfora fomentadas tornam-se evidente: a paz e a tranquilidade (a cor branca) foram irremediavelmente alteradas e maculadas pelo sofrimento e pelo sangue (cor vermelha), pela morte e pelo luto (a cor preta).

Reimão (2011) igualmente alude à forte aproximação entre o cinema e a disposição das figuras: cada boca estaria em um fotograma – imagens impressa de maneira química em uma película cinematográfica de modo a sugerir certa sequencialidade – e receberia um enquadramento denominado “close up”, ou seja, um enfoque fechado e interessado em mostrar o objeto mais fundamental em cena.

Para concluir, concentremo-nos no mesmo desenlace alcançado por todos os protagonistas: a morte.

O venezuelano, após sobreviver às adversidades vivenciadas nas florestas e ao cerco

militar organizados conjuntamente pelo Exército, Aeronáutica e Marinha –

circunstâncias vitimadoras da grande maioria dos jovens e dos estrangeiros por ele liderados - opta por entregar-se à polícia, acreditando que, embora frustrada sua tentativa de revolução rural, empreenderia em um futuro próximo uma nova modalidade de luta ao ser preso e travar contato com os demais detidos.

Examinou os arredores [...]. Bloqueando a estrada, um carro de polícia. Vários policiais armados se encostavam no carro ou acocoravam-se no chão [...]. Ele saiu do mato com as mãos para cima e se aproximou dos policiais boquiabertos. Eles o olhavam como se fosse um animal estranho e não se moviam. Ele chegou perto dos policiais, identificou-se e estendeu os braços para ser algemado. Sorria. Tinha agora quase certeza de escapar vivo. Só ele sabia que aquela prisão era o caminho para nova fuga, para nova guerrilha, para a continuação da mesma luta. Não estava sendo preso: estava apenas começando a partir para outra. (TAPAJÓS, 1979a, p. 156, grifo nosso).

Sua história termina nessas linhas e não há nenhuma clara indicação do que lhe teria acontecido. Entretanto, a hipótese de seu assassinato pelos órgãos de segurança não é descartável ao considerarmos três fatores primordiais.

Dois deles obedeceriam a uma ordem textual e representar-se-iam nas frases por nós grifadas: a primeira, construída ao redor da incerteza e da dúvida provocadas pelo advérbio “quase”, e a segunda, sedimentada na ambiguidade provocada pela expressão “partir para outra” – passível de ser interpretada em sentido literal (visto o vocábulo “outra” remeter-nos a um antecessor, o termo “luta”) ou figurativo (a chance dessa construção linguística atuar como um eufemismo da própria morte). Já o terceiro seria exclusivamente contextual: a partir da promulgação do Ato Institucional nº 5, ao final de 1968, a violência e a opressão impôs-se sobre todos aqueles contrários ao governo militar e o simples fato de encontrar-se em poder de qualquer instituição de segurança - ligadas a ou não às Forças Armadas – já anunciava a possibilidade desses indivíduos integrarem as estatísticas de torturados, desaparecidos e mortos pela repressão.

Em nome da segurança do Estado brasileiro, os membros da comunidade de informações podiam tudo: perseguir, grampear, investigar, julgar, condenar, interrogar, torturar, matar, desaparecer

com o corpo e alijar famílias do paradeiro de seus entes queridos. Não havia um código de ética, nem formal, nem informal, que direcionasse [...] condutas. Tudo era permitido. (NETTO; MEDEIROS, 2012, p. 98).

A protagonista feminina, como discutiremos mais detidamente ao decorrer do próximo capítulo, após fugir de uma blitz e lutar contra diversos policiais acaba dominada e levada a uma delegacia, espaço no qual ficaria a mercê de cruéis formas de tortura. A cena de seu assassinato caracteriza-se por um detalhismo cru , desenhando-se como grande ápice da narrativa:

[...] eles a lançaram no chão, já nua e com o corpo coberto de marcas e respingos de sangue [...] . Eles a seguravam no chão pelos braços e pernas, um deles pisava em seu estômago e outro em seu pescoço sufocando-a [...] Amarram-lhe os pulsos e os tornozelos, espancando-a e obrigando-a a encolher as pernas. Passaram a vara cilíndrica do pau-de-arara entre seus braços e a curva interna do joelho e a levantaram, para pendurá-la no cavalete [...]. Um deles enfiou na cabeça dela a coroa-de-cristo: um anel de metal com parafusos que o faziam diminuir de diâmetro [...] Quando os ossos do crânio estalaram e afundaram, ela já havia perdido a consciência, deslizando para a morte [...] (TAPAJÓS, 1979a, p. 170).

O narrador-protagonista do bloco textual referente à guerrilha urbana, diferentemente dos dois casos comentados acima, parece escolher premeditadamente a morte como único destino admissível. Considerando a deserção como uma vil traição a todos aqueles que lhe eram caros, desacreditado de poder empreender alguma diferença frente a já malfadada luta armada e munindo-se do forte sentimento de vingança ao tomar conhecimento das atrocidades sofridas e infligidas à companheira militante pela qual nutre imenso desvelo, optará por comparecer a um “ponto caído” (encontro marcado entre revolucionários em locais secretos para a troca de informações, mas descobertos e cercados pelos órgãos repressores) e a enfrentar, sozinho, os que lá se encontrarem. A cena que fecha o romance é justamente a desse combate desleal, culminado no suicídio do personagem:

Eu sei que meu gesto não levará a nada porque o que levará a alguma coisa está sendo feito por outros e eu lamento muito, mas não posso acompanhar esses outros porque estou marcado pelo sangue, marcado pelo compromisso de ser fiel aos que acreditaram como eu [...]. O gesto em que eu esgotarei tudo que foi acumulado e

que dará um sentido a tudo que fiz antes ou não dará sentido nenhum e isso não me importa mais [...] Acabou o passado e acabou o futuro e existe apenas uma esquina a ser transposta. O ódio se transformou numa decisão fria e o cérebro é apenas uma máquina para registrar imagens e ordenar movimentos. Os revólveres estão aqui, sob a japona, prontos e fiéis [...] O ponto é no meio do quarteirão [...] E eu já os vejo, sei onde estão, animais estúpidos [...] Pensam que enganam alguém com esses disfarces imbecis. Eu estou entrando no ponto porque quero e quero ver eles rolarem e morrerem como porcos, como porcos sujos que são [...] agora eu corro atirando e acertei, ele caiu de cara dentro do carro [...]

A rajada da metralhadora o atingiu no peito, lançando-o contra o muro [...]. Ele caiu para a frente, sobre a calçada, os braços abertos, as mãos ainda apertando a coronha dos revólveres. Diversas rajadas atingiram seguidamente o corpo, picotando-o [...] (TAPAJÓS, 1979a, p. 174).

A combinação de todos esses desfechos representaria o próprio desmantelamento da luta armada, fadada ao fracasso e à extinção em virtude das organizações de esquerda perderem a

[...] sintonia com o devir da sociedade brasileira, ao deixarem de encontrar inserção nos movimentos sociais, desenraizando-se, tornaram-se marginais à dinâmica da realidade social e política; então, as organizações passaram a viver uma lógica de sobrevivência (contra os ataques da polícia), e de autodestruição (pelos constantes questionamentos e cisões, gerados na incompatibilidade crescente entre a lógica interna de sobrevivência política do grupo armado e o movimento da sociedade mais abrangente). (RIDENTI, 2010, p. 255).

Dessa forma, contrariando a justificativa divulgada na época de publicação do romance pelos órgãos censuradores para a sua proibição (a latente apologia a favor da guerrilha), estudiosos como Rollemberg (2003) enxergarem na obra um dos poucos momentos da literatura brasileira onde antigos militantes propõem-se a realizar uma autocrítica acerca de seus próprias ações .

Sendo assim, ademais de trazerem ao leitor a própria visão tida pelo escritor de sua produção literária, as palavras de Tapajós (1979b, p. X) conseguem encerrar e resumir – por si próprias– todo o conjunto analítico realizado até então.

[...] é uma reflexão sobre os acontecimentos políticos que marcaram o país entre 1964 e 1973 e, mais particularmente, entre 1968 e 1973.

Seu aspecto fundamental é a discussão em torno da guerrilha urbana que eclodiu nesse período, em torno da militância política dentro das condições dadas pela época. É uma reflexão emocionada porque tenta captar a tensão, o clima, as esperanças imensas, o ódio e o desespero que marcaram essa extrema tentativa política que foi a guerrilha. É, sobretudo, uma discussão em torno da contradição que se colocou para os militantes, em determinado momento, entre o compromisso moral e as opções políticas que se delineavam [...] é também uma denúncia da violência repressiva e da tortura, porque ninguém pode escrever com um mínimo de honestidade sobre política nesse país, nesse período, sem falar de tortura e de violência policial – tão marcante que foi a presença da repressão na formação desse Brasil em que vivemos hoje [...] é um esboço e uma autocrítica, um esboço em torno do desmantelamento das organizações de esquerda e da reação dos militantes a respeito desse fato. É, principalmente, um romance a respeito da ingênua generosidade daqueles que jogaram tudo, inclusive a vida, na tentativa de mudar o mundo.

2.2. K: O RETRATO LITERÁRIO DA CULPA. DA ANGÚSTIA E DA