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2. EM CÂMARA LENTA E K.: ASPECTOS ANALÍTICOS DE DUAS OBRAS DA

2.2. K: O RETRATO LITERÁRIO DA CULPA DA ANGÚSTIA E DA

2.2.3. AS PRINCIPAIS TEMÁTICAS

Ao longo de suas 177 páginas, K. expõe diversos temas, muitos deles com dependência e continuidade entre si. A seguir, selecionamos aqueles que julgamos serem os mais trabalhados e discutidos por Kucinski, sendo o primeiro deles a construção e o emprego constante de comparações e pares convergentes ou destoantes como presente-passado, morte-vida, prisão-liberdade e ditadura brasileira - nazismo alemão.

Em “No Barro Branco” e “Os extorsionários” o narrador realiza diversas incursões ao passado de K. na Polônia e à sua vida atual no Brasil:

O presídio ficava adiante, quase no limite do grande pátio. Era a prisão da própria PM – explicou o sargento -, onde encarceravam os presos infratores. Uma ala, semi-isolada, fora separada para os presos políticos.

A cada passo em direção a essa ala, K. retrocedia na memória aos tempos de sua própria prisão na Polônia. Lembrou-se novamente de quando o arrastaram acorrentado pelas ruas de Wloclawek para humilhá-lo perante os comerciantes. Agora também se arrastava, alquebrado, embora sem correntes. (KUCINSKI, 2012, p. 166, grifo nosso) – “No Barro Branco”.

Mas, na Polônia, embora a repressão fosse dura, quando prendiam, registravam, avisavam a família. Depois tinha julgamento. Havia acusação e defesa, visitas à prisão. Lá não sumiam com os presos. (p. 142, grifo nosso) - “Os extorsionários”.

A chegada ao presídio para conversar com os presos políticos desencadeia no protagonista a lembrança da repressão experimentada durante a sua juventude contestadora: nasceria, nesse instante, a aproximação entre a violência física imposta a ele em um tempo pretérito (ser literalmente acorrentado e arrastado) e a agressão psicológica que agora vivencia com o desaparecimento da filha: no presente, as algemas que o prendem e o caminhar arrastado são decorrentes de seus próprios conflitos emocionais e morais.

Já no segundo trecho, ressalta-se a grande característica destoante entre os dois regimes autoritários: ainda que ambos tenham sido extremamente opressores, na

Polônia os órgãos de segurança agiam legalmente – os revolucionários detidos eram

registrados, seus familiares conheciam seu paradeiro e podiam visita-los, e o julgamento e a possibilidade de defesa integravam alguns dos direitos concedidos aos presos; nenhuma dessas medidas jurídicas seriam tomadas pela ditadura brasileira, conhecida pelos comportamentos ilegais e escusos com os quais tratava todo e qualquer militante e simpatizante de esquerda.

O capítulo-fragmento “No Barro Branco” também apresentaria a seguinte passagem:

Os presos ouviam em silêncio [...]. Alguns conheceram sua filha e o marido, eram da mesma organização clandestina; todos conheciam a história [...]. Sabiam que já estava morta há muito tempo. [...].Sem largar o pacote de cigarros, que agora agarrava teimosamente com a mão esquerda, K. estirou-se no chão, respirando pesado [...]. Depois suas pálpebras se abriram e ele percebeu ao seu redor os presos políticos; avistou atrás deles, no alto da parede dos fundos, a familiar janelinha gradeada da cela trazendo de fora promessas de sol e liberdade. Sentiu-se em paz. Muito cansado, mas em paz. Estendeu aos presos o pacote de cigarros. Depois, suas mãos se abriram e seus olhos se cerraram. (KUCINSKI, 2012, p. 168-169, grifo nosso) A confirmação de um trágico destino reverbera nas expressões corporais do protagonista: o choque inicial faz com que suas mãos agarrarem um dos presentes trazidos aos presos (um pacote de cigarros), como a representar a relutação e o apego a um fio de esperança (no caso, a chance de sua filha estar viva); transposta essa primeira emoção, a inquietude e o desespero desencadeados pela incerteza são

substituídos pela serenidade promovida pelo conhecimento dos fatos (ainda que dolorosos e funestos) e as mãos se abrem, personificando a entrega, a aceitação e o desprendimento agora experienciadas por K. É relevante também observarmos que seria justamente num ambiente físico de cerceamento e opressão – uma ala carcerária – que sua mente e sua alma, já tão maltratadas pelo longo período sem respostas, encontrariam a libertação.

Tal interpretação concede-nos a chance de construir grupos paralelísticos

significativos, como prisão-liberdade, fechamento-abertura, desprendimento-

dependência, morte-vida; além daqueles que, em um primeiro instante, pareceriam paradoxais, mas são totalmente plausíveis: libertação-morte e aprisionamento-vida. Relata-se, em “Sorvedouro de pessoas”, o início da saga de K em busca de notícias e respostas sobre o sumiço da filha - a ida ao seu local de trabalho (a Universidade) para um encontro com suas amigas, a visita a um endereço residencial “secreto”, o pedido de ajuda junto a um advogado conhecido, a passagem pela polícia e pelo Instituto Médico Legal e a participação em uma reunião organizada pela Cúria Metropolitana de São Paulo com os familiares e amigos de outros desaparecidos políticos.

K. tudo ouvia, espantado. Até os nazistas, que reduziam suas vítimas a cinzas, registravam os mortos. Cada um tinha um número, tatuado no braço. A cada morte, davam baixa num livro. É verdade que nos primeiros dias da invasão houve chacinas e depois também [...]. Mas os goim de cada lugar sabiam que os seus judeus estavam enterrados naquele buraco, sabiam quantos eram e quem era cada um. Não havia a agonia da incerteza. Eram execuções em massa, não era um sumidouro de pessoas. (KUCINSKI, 2012, p. 27, grifo nosso)

A transcrição acima corresponde ao parágrafo final da narrativa, onde é possível notarmos a materialização do binômio Nazismo e Ditadura: as atrocidades e assassinatos cometidos por ambos são incontestáveis; entretanto, enquanto os sobreviventes do primeiro convivem com a certeza e a comprovação da morte de parentes e amigos, os do segundo experimentariam, mesmo após tanto tempo transcorrido, a dúvida e a ausência de provas referentes ao destino de seus entes queridos. Em decorrência da equiparação entre esses dois momentos históricos outros paralelos originar-se-iam: certeza-incerteza, desaparecimento-execuções em massa e morte-vida.

A reiteração de determinadas emoções, sendo a culpa a mais comum delas, marca também a obra de Bernardo.

O judaísmo, cultura na qual se insere o protagonista de K., proporciona uma visão interessante sobre a experimentação de tal sentimento: podendo ser interpretada em seu viés positivo ou negativo, a culpa relacionar-se-ia diretamente à problemática da responsabilidade que cada indivíduo possui sobre seus comportamentos e atitudes combinada à consciência crítica de que as escolhas e os caminhos por ele tomados teriam a capacidade de transformar – parcial ou totalmente – tanto a sua trajetória como daqueles que lhe estão próximos e da sociedade como um todo (TAUBER, 2012).

Ao defrontar-se com a falta de notícias da filha e, algum tempo depois, com a confirmação de seu sumiço, o senhor K assume uma postura auto-recriminatória - “Sentia a perda prematura da filha como punição, por seu coração estar sempre na literatura, nos amigos escritores.” (KUCINSKI, 2012, p. 167, grifo nosso; “No Barro Branco”) -, acreditando ser o único culpado pela tragédia abatida sobre sua família. Tal posicionamento é tão intenso que há até mesmo a cogitação de que, se ele tivesse realizado escolhas diferentes num passado longínquo, o futuro da filha (e o seu próprio) não seria dominado por eventos dramáticos: “Quem sabe, se tivesse vindo para a América do Norte, como o primo Simon, em vez da América do Sul, a tragédia não teria acontecido.” (KUCINSKI, 2012, p. 59; “Jacobo, uma aparição”).

Preocupado sempre em retomar e justificar sua responsabilidade nos fatos, K lista uma série de aspectos de sua vida priorizados em detrimento do contato mais próximo com sua caçula e que agora passariam a ser alvo de seu repúdio: seu segundo casamento e os problemas familiares desencadeados por esse relacionamento; o longo tempo concedido a discussões literárias e aos encontros com seus amigos escritores; e a atenção extrema dada à língua iídiche e à sua profissão.

A filha confiara na outra família, não nele. Para a outra família o casamento não fora secreto, apenas discreto. Havia nisso um significado maior, teria ela sinalizado uma troca de famílias? Esse pensamento o machucava. Teria sido uma resposta ao seu segundo casamento com aquela alemã que a filha detestava? Ou à sua devoção tão intensa à língua iídiche? [...]

Essa hipótese somava mais culpas à sua culpa. (KUCINSKI, 2012, p. 48, grifo nosso; “O matrimônio clandestino”).

K. fecha a caixa e a recoloca onde a havia encontrado. Pensa: se tivesse levado ao tal médico do Rio um álbum inteiro com fotografias da filha, desde o seu nascimento até a véspera da desaparição, acompanhando toda a sua vida, mostrando-a por inteiro, talvez ele a teria reconhecido e esclarecido o que aconteceu. Mas ele não tinha um álbum de fotografias da filha. Tão ocupado com a literatura e seus artigos para os jornais, disso nunca havia cogitado. (KUCINSKI, 2012, p. 117, grifo nosso - “Um inventário de memórias”).

Paradoxalmente, a literatura – antes condenável - seria entendida por K como o único caminho ao seu alcance para sua expiação. Em “O abandono da literatura”, visualizamos a seguinte declaração:

[...] escreveria sua obra maior, única forma de romper com tudo o que antes escrevera, de se redimir por ter dado tanta atenção à literatura iídiche, ao ponto de não perceber os sinais do envolvimento de sua filha com a militância política clandestina, alguns tão gritantes que sem dúvida eram pedidos disfarçados de socorro que ele, idiotizado, não percebia. (KUCINSKI, 2012, p. 132, grifo nosso).

A escrita, entretanto, não se completa: a composição em iídiche e a narrativa, com suas palavras, cenários, personagens, situações e diálogos, não conseguem expressar o turbilhão e a magnitude de ideias e de sentimentos experimentados; todas as coisas da vida teriam perdido sua essência mais pura e significativa. Após diversas inferências visando explicar seu bloqueio literário, o personagem depara-se com o nascimento de um novo motivo propulsor de auto-punição: como produzir um grande livro a partir de um acontecimento pessoal tão terrível e monstruoso? Na verdade, não haveria possibilidade nenhuma de livrar-se da culpa.

Aos poucos, K. foi se dando conta de que havia um impedimento maior. Claro, as palavras sempre limitavam o que se queria dizer, mas não era este o problema principal; seu bloqueio era moral, não era linguístico; estava errado fazer da tragédia da filha objeto de criação literária, nada podia estar mais errado. Envaidecer-se por escrever bonito sobre uma coisa tão feia. Ainda mais que foi por causa desse maldito iídiche que ele não viu o que estava se passando bem debaixo de seus olhos, os estratagemas da filha para evitar que ele a visitasse, suas viagens repentinas sem dizer para onde. (KUCINSKI, 2012, p. 133, grifo nosso).

Por fim, cabe ressaltar que o cansaço e a sensação de vazio anterior (combinada à solidão) configuram-se como dois outros sentimentos a acompanhar constantemente o

protagonista: “Sente-se muito cansado, de novo aquele vazio interior que já o derrubara outras vezes, que o impede até mesmo de se levantar de uma cadeira.” (KUCINSKI, 2012, p. 64, grifo nosso; “Jacobo, uma aparição”); “K. não se move; sente- se muito cansado.” (KUCINSKI, 2012, p. 70; “Nesse dia, a Terra parou”); “K. sente-se mal; de novo a sensação de vazio interior, desaba na cadeira. Já são mais de cinco semanas. Ele sabe que cada dia sem notícia reforça o mau presságio.” (KUCINSKI, 2012, p. 36, grifo nosso; “Os informantes”).

Tais emoções conseguem, por vezes, minar a força e a determinação de K, fragilizando-o tanto física como psicologicamente. Entretanto, esse pai desesperado por descobrir o paradeiro de sua caçula em nenhum momento desiste por completo desse objetivo e vê toda a sua vida atual e futura alterada por um passado que insiste em manter-se sempre presentificado e insolucionável.

Essa mesma soma de sentimentos conflitantes acompanharia e caracterizaria a relação mantida por dois grupos surgidos já ao final dos anos 1960 e de crescimento substancial durante os governos de Médici (1969-1974) e de Geisel (1975- 1979): um deles formado pelos desaparecidos políticos e o outro por seus familiares e amigos. Ao primeiro, como poderemos ver nos trechos abaixo, a ditadura impôs um destino brutal - visto às “[...] execuções de presos rendidos [...], embora crianças ainda, desmembramento de corpos, em 1974, para fazê-los ‘desaparecidos’.” (KUCINSKI, 2012, p. 138, grifo nosso, “O livro da vida militar”) - e distante de qualquer possibilidade de escolha ou defesa – como ficaria provado na predileção pelo uso de uma expressão na voz passiva (“foram desaparecidos”) em detrimento daquela na voz ativa (“desapareceram”):

Um senhor levantou-se, disse que viera de Goiânia especialmente para a reunião. Seus dois filhos, um de vinte anos e outro de apenas dezesseis, foram desaparecidos. Esse senhor gaguejava, parecia em estado catatônico. Foi o primeiro a usar a expressão ‘foram desaparecidos’. (KUCINSKI, 2012, p. 26, grifo nosso, “Sorvedouro de pessoas”)

Já ao outro segmento, os militares infligiram um sofrimento psicológico e emocional, resultante primordialmente da ausência de explicações e da supressão dos corpos das vítimas:

O que trazia aquele grupo à reunião era algo insólito. O Exército alegava que nada disso tinha acontecido, apesar de um dos presos apenas um, ter escapado e testemunhado tudo. Os familiares queriam enterrar seus mortos – que eles já sabiam mortos, mais de cinquenta, diziam [...] mas os militares insistiam que não havia corpo nenhum para entregar. (KUCINSKI, 2012, p. 26, grifo nosso, “Sorvedouro de pessoas”).

A impossibilidade de prestar os ritos fúnebres e de oferecer uma sepultura (e,

por que não, um descanso) a seus entes queridos, fariam com que muitas

famílias experimentassem uma dor e um desespero sem precedentes e um

estado de luto constante, presentificado a cada novo instante e distante de

qualquer oportunidade de transposição (TELES, 2009b; TELES, 2010b)

A jornada, longa e repleta de percalços, depreendida por muitos pais em busca de seus filhos ou de qualquer tipo de notícia que lhes faça referência é exposto ao longo de toda a narrativa “Imunidades, um paradoxo”, abaixo sintetizada:

O pai que procura a filha desaparecida não tem medo de nada. Se no começo age com cautela não é por temor, mas porque, atônito, ainda tateia como um cego o labirinto inesperado da desaparição. O começo é um aprendizado, o próprio perigo precisa ser dimensionado, não para si, porque ele não tem medo de nada, mas para os outros [...] Depois, quando se passaram muitos dias sem respostas, esse pai ergue a voz; angustiado, já não sussurra, aborda sem pudor os amigos, os amigos dos amigos e até desconhecidos; assim vai mapeando, ainda como um cego com sua bengala, a extensa e insuspeita muralha de silêncio que o impedirá de saber a verdade [...] Quando os dias sem notícia se tornam semanas, o pai à procura da filha grita, destemperado; importuna, incomoda com a sua desgraça e suas exigências impossíveis de justiça [...]Qualquer um pode ser engolido pelo vórtice do sorvedouro de pessoas, ou atropelado e despejado num buraco qualquer, menos ele. Com ele a repressão não mexe, mesmo quando grita. Mexer com ele seria confessar, passar recibo [...] Quando as semanas viram meses, é tomado pelo cansaço e arrefece, mas não desiste. O pai que procura a filha desaparecida nunca desiste. Esperanças já não tem, mas não desiste. Agora quer saber como aconteceu. Onde? Quando exatamente? Precisa saber para medir sua própria culpa. Mas nada lhe dizem [...]. Alguns anos mais e a vida retomará uma normalidade da qual, para a maioria, nunca se desviou [...]. O pai que procura a filha desaparecida já nada procura, vencido pela exaustão e pela indiferença. Já não empunha o mastro com a fotografia. Deixa de ser

um ícone. Já não é mais nada. É o tronco inútil de uma árvore seca. (KUCINSKI, 2012, p. 89-91, grifo nosso).

Na passagem transcrita, percebemos a progressão temporal acompanhada por uma intensificação de emoções e atitudes: no início do percurso, o personagem não sente medo por si próprio - nada pode lhe provocar mais temor e angústia do que a situação experimentada no momento; sua voz, antes comedida, necessita elevar-se gradativamente a fim de fazer-se presente e conhecida (“sussurra” – “fala” – “grita”); à sua resistência e não desistência mesclam-se e interpõem-se , invariavelmente, o cansaço, o desmantelar da esperança, o crescimento da culpa e a desilusão. Ao final do caminho, não há respostas, não há o encontro tão esperado com seu ente querido, somente a desolação e a perda de si mesmo e de toda uma vida (“Já não é mais nada. É o tronco inútil de uma árvore seca”).

Assim sendo, torna-se plausível afirmar que, para o pai de um desaparecido político, o tempo dificilmente continua a ser medido e vivenciado de modo regular e cronológico (horas, dias, meses e anos). O que passa a prevalecer é o seu mundo interior e a gama de sentimentos, muitas vezes conflitantes, que nele se desenvolve.

É interessante ainda observar uma crítica dirigida ao próprio comportamento da

sociedade: para grande parte dela, a atmosfera de normalidade – que provavelmente

nunca mais será experimentada por essas famílias marcadas pelo regime pela ditadura – nunca deixou de existir, pois ou desconhece a ocorrência de fatos tão macabros e obscuros ou prefere mostrar-se indiferente a fim de que não se torne mais um alvo da repressão. Nas palavras de Kehl (2004, p. 160)

É insuportável, tanto para as vítimas quanto para seus herdeiros, que uma violência traumática permaneça não nomeada, insignificante para o resto do mundo. São os casos em que o esquecimento fere como uma segunda violência, mais duradoura do que a primeira.

Em paralelo a essa luta particular e pessoal, nasce também uma de caráter mais coletivo,

O arcebispo havia convocado uma reunião com ‘familiares de

desaparecidos políticos’.

Estava escrito assim mesmo: ‘familiares de desaparecidos políticos’ [...]

Mais relatos de sumiços, todos queriam falar. E queriam ouvir. Queriam entender. Talvez do conjunto de casos surgisse uma explicação, uma lógica, principalmente uma solução, um maneira de pôr fim ao pesadelo. (KUCINSKI, 2012, p. 26, grifo nosso).

Ao falar da ditadura, K. lembra-se com desgosto da Comissão de Diretos humanos da OEA que rejeitara sua petição de modo muito cínico. Disseram que, segundo o governo brasileiro, nada constava sobre a filha. É claro: foram perguntar aos bandidos se eles eram bandidos. A Cruz Vermelha recebeu-o bem, anotáramos dados e prometeram iniciar uma busca. Mas ao que parece não esperam muito de sua seção brasileira. (KUCINSKI, 2012, p. 61, grifo nosso, “Jacobo, uma aparição”).

No primeiro fragmento, pertencente a “Sorvedouro de pessoas”, K vê-se diante de outros tantos que, como ele, desconhecem o paradeiro de seus filhos. Mesmo de origens e experiências de vida tão destoantes entre si, ao assumirem uma designação própria (“familiares de desaparecidos políticos”), esses indivíduos adquirem a conotação e a imagem de um grupo, de uma só entidade munida de força e legitimidade para exigir respostas que lhe são de direito:

Através de sua luta, provocam, perturbam, interrogam e redimensionam o presente. Como sobreviventes de um tempo difícil de rememorar, ao colecionarem os fragmentos que fazem lembrar os seus, assumem-se como os herdeiros da dor que representa e evoca a experiência-limite de possuir um parente desaparecido ou assassinado sob tortura. (TELES, 2009b, p. 173).

É perceptível, agora em ambos as passagens, a procura porapoio e sustentação junto a organismos reconhecidos e oficiais (a Cúria Metropolitana, a Comissão de Direitos

Humanos, a Organização dos Estados Americanos – OEA -, a Cruz Vermelha)

objetivando que essas possam proporcionar qualquer informação, visto possuírem maior influência e estarem mais próximas das células governamentais.

Como destaca Teles (2010a), em confluência a esse comportamento, seguiam-se também os pedidos de habeas corpus, o contato com advogados, a escrita e o envio de cartas destinadas a importantes nomes, nacionais e internacionais, do período a fim de que tais autoridades conhecessem e aderissem a essa homérica batalha.

Por fim, Mezarobba (2010) defende que a luta desencadeada pelos familiares das vítimas da repressão atravessaria décadas e gerações, pautando-se, a cada novo e diferente momento, em uma demanda específica e central; como a exemplificar tal concepção, cita a localização e identificação dos despojos das vítimas ainda durante o regime ditatorial e a responsabilização dos envolvidos e a busca por justiça já nos primeiros anos de redemocratização nacional. Com a formação da Comissão Nacional de Desaparecidos Políticos (Conadep) no governo de Fernando Henrique Cardoso,

tais reivindicações conquistariam – segundo Soares e Prado (2009) – a condição de

medidas legais e oficiais a serem cumpridas pelas autoridades brasileiras e a eles unir-se-iam outros três pontos de relevada importância: a formação de uma Comissão Especial, constituída por membros do governo e da sociedade civil, sob a coordenação do Ministério da Justiça, objetivando o estudo de cada episódio levado a seu conhecimento; o pagamento de indenizações como uma das formas de reparação moral; e o comprometimento governamental da não indicação de indivíduos envolvidos com a repressão para cargos de confiança.

Ainda hoje, contudo, a questão dos desaparecidos recebe um tratamento irrisório - tanto das esferas governamentais como cívico-sociais - frente àquele que lhe caberia lhe seria de direito: foram muito poucos os casos solucionados, os culpados condenados, as respostas e explicações dadas, os corpos devolvidos e as retratações realizadas. E é justamente a denúncia e a crítica a esse comportamento o foco de fragmentos como os transcritos abaixo:

[...] lastimava ter acreditado que em troca de dinheiro fosse possível derrubar o muro de silêncio em torno do sumidouro de pessoas, o que nem gente muito importante havia conseguido. Ele não podia saber que quarenta anos depois esse muro ainda estaria de pé, intocado. Mas já sabia que estava tudo muito amarrado, para ninguém saber de nada. (KUCINSKI, 2012, p. 142, grifo nosso, “Os extorsionários”)

[...] é obvio que o esclarecimento dos sequestros e execuções, de