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O DISCURSO INDIRETO E DIRETO E O QUE REVELAM DA

3. AS PERSONAGENS FEMININAS EM FOCO

3.2.4. O DISCURSO INDIRETO E DIRETO E O QUE REVELAM DA

Analisados os desdobramentos e as diferentes significações decorrentes do silêncio da personagem feminina, voltemo-nos agora para os momentos em que sua voz começaria a ser ouvida. Observemos o seguinte fragmento:

[...] não custa nada agitar as idéias da organização, fazer umas ações de caráter político, voltadas para a massa. Principalmente agora, quando a ditadura se desmascara. Dar uma resposta, qualquer resposta. A companheira de Fernando aprovou com frases curtas e secas essas opiniões e reforçou a necessidade de organizar mais grupos armados, aproveitar o pessoal disponível [...]” (TAPAJÓS, 1979a, p. 46, grifo nosso)

A fala hipoteticamente proferida pela protagonista é reproduzida de forma indireta no final do parágrafo e inserida no próprio discurso do narrador: não temos acesso às palavras literalmente utilizadas e nem ao modo como as mesmas foram organizadas e apresentadas, somente conhecemos qual seria sua opinião e a posição política diante do contexto cada vez mais opressivo em que se encontrava a luta armada. É relevante notarmos, também, a adjetivação dada pela voz narrativa às frases da companheira de militância: a secura e o tamanho poderiam indicar a tentativa desta manter a praticidade, a naturalidade e objetividade frente a situações adversas. Esses mesmos traços podem ser visualizados nas citações seguintes, nas quais temos pequenas amostras de colocações diretas feitas por “ela”:

Aquela maneira de nunca se surpreender. Alguém dava a ela a

notícia mais espantosa, contava o acontecimento mais inesperado –

ela apenas olhava com uma expressão neutra e dizia: ‘Ah.’ Um “ah” seco, sem ponto de exclamação, sem ironia. Como se tudo fosse sempre a coisa mais natural do mundo [...] (TAPAJÓS, 1979a, p. 164, grifo nosso)

Falou preocupado: ‘O chato é que com todos esses recuos eles estão desmoralizando o sequestro como forma de luta. Capaz de não dar mais certo depois disso.’ Ela olhou para ele, gravemente. ‘Pode ser. Mas nós encontraremos novas formas de luta.’ Ele franziu a testa. Quem sabe? Ainda assim era preciso continuar tendo confiança. (TAPAJÓS, 1979a, p. 131, grifo nosso)

Já em outro momento da narrativa temos menção a uma noite de ano novo que, como averiguaríamos, constitui-se como a primeiro momento de contato direto e particular entre o casal protagonista:

A cortina se afastou lentamente e, naquela noite de ano novo, conversamos até quase o amanhecer. Uma conversa lenta, de frases que hesitavam em quebrar o silêncio mas que revelavam, em cada palavra, uma sede de vida, uma tristeza, uma alegria encoberta. Frases suaves, naturais, ditas em voz baixa, quase um murmúrio. (TAPAJÓS, 1979a, p. 165, grifo nosso)

Percebe-se que em nenhum momento a conversa sustentada por eles é exposta; descreve-se, sob a ótica do narrador-personagem, apenas a atmosfera de hesitação, de naturalidade, de timidez e de emotividade e na qual os participantes encontravam- se envoltos. Tais características, ligadas primeiramente à ambientação, refletiriam também os sentimentos experimentados pelo par naquele encontro inusitado e singular.

Dentre as passagens nas quais o narrador delega voz ativa à figura feminina, duas delas merecem maior atenção devido à quantidade de elementos que poderiam atuar como pares opostos. Na primeira delas:

Na sala fechada, o ar estava pesado e carregado de fumaça. Sérgio explodiu: ‘Eles cederam de novo. Desse jeito não vai dar certo.’ Ela respondeu com um meio sorriso: ‘Agora não tem outra saída. Desde que eles cederam a primeira vez só tem mesmo essa alternativa. Ou continuam cedendo para ver se ainda conseguem alguma coisa ou matam o homem.’ Marta se levantou, atravessou a sala, nervosa [...]. Desde o primeiro dia daquele sequestro interminável eles tinham resolvido se recolher ao aparelho e evitar as ruas. Muito menos fazer

ações ou outras atividades [...]. Mas aquela reclusão forçada de vários dias já começava a mexer com os nervos de todos [...]. Sérgio voltou a criticar: ‘Eles não podiam ter aceito nenhuma restrição aos nomes. Nenhuma. A gente tem que colocar sempre uma posição de força.’ Ela concordou: ‘Mas a gente tem que reconhecer que a repressão, dessa vez, estava preparada. Eu acho que eles já tinham um esquema montado. Já esperavam o sequestro. Eles atacaram tanto em nível policial, ocupando a cidade, quanto no plano político, procurando enfraquecer a posição do pessoal: eles aceitaram as exigências pela metade e, com isso, criaram um problema – nem rejeitaram, o que deixa a gente sem força para tomar represálias, nem aceitaram totalmente, o que enfraquece a gente’. (TAPAJÓS, 1979a, p. 128-130, grifo nosso)

Pertencente ao bloco narrativo voltado ao passado do narrador protagonista, no qual a guerrilha urbana encontra-se em seu ápice, esse fragmento desenvolve-se em meio a uma atmosfera de temor e incerteza: os membros da organização clandestina experimentam a reclusão total e a tensão em virtude do inesperado desenrolar tomado por um sequestro político. Contrapondo-se às frases curtas, exaltadas e descrentes de Sérgio, os posicionamentos críticos e longamente expostos pela personagem feminina (quando comparados ao seu habitual silêncio) pautam-se pela praticidade, racionalidade, coerência e lógica; o desespero e a angústia que atingem as ações de seus companheiros (a descrença e a “explosão” verbal de Sérgio, o nervosismo de Marta), não parecem alcança-la: sua postura corporal permanece inalterável, chegando até ao ponto de abrir um “meio sorriso” frente ao abalo dos demais.

As mulheres que optaram por unir-se às agremiações de esquerda (especialmente aquelas defensoras da luta armada), ademais das dificuldades e percalços comuns aos militantes, deparavam-se com o preconceito e com a necessidade de provarem constantemente suas aptidões. Goldenberg (2008) alude ao fato de os atributos ressaltados em um bom revolucionário coincidirem justamente com qualidades socialmente relacionadas aos homens – a força, a praticidade, a racionalidade, a ousadia e o discurso seco e direto. As falas da protagonista viriam a confirmar e representar tal tendência: a supervalorização de posturas masculinas – sejam elas expressas verbal ou fisicamente - em detrimento daquelas ligadas comumente ao discurso feminino, apresentadas por Bakhtin (2003, p. 328) como

[...] enquanto representação de relações sociais,está na maior parte das vezes refletindo os papéis assimétricos internalizados, onde o

‘ser mulher’ é marcado por atributos tais como: ‘tímida’, ‘passiva’, ‘doce’, ‘frágil’, ‘dependente’, ‘insegura’, ‘fiel’, ‘emocional’.

Destoando-se das longas colocações acerca da guerrilha e da postura inabalável, temos o trecho abaixo, dotado de uma significativa carga emocional para o casal central: a revelação da morte de Fernando e uma escolha amorosa a ser feita pela protagonista – relembrada pelo narrador e inserida por um flash back:

Ela abriu a porta e teve um sobressalto quando o viu entrar cambaleando. Ele sentou-se pesadamente no sofá e ela se dirigiu, tensa, a ele. “Você está ferido?” Ele respondeu quase numa voz inaudível: ‘Fernando morreu.’ Ela parou no meio da sala, a boca entreaberta, como se tivesse levado um soco. Ele olhava para ela, imaginando o choque. Ela tinha vivido com Fernando até o dia em que este viajara para Cuba. Depois tinha ficado com ele, e Fernando era uma sombra nunca apagada. Quando Fernando voltou, ela foi encontrá-lo. Ele esperou angustiado, temendo perdê-la, mas sabia que essa era a única maneira honesta de encarar o problema. Alguns dias depois, ela chegou de volta ao aparelho. Entrou em silêncio. Depois disse: “Eu ainda gosto de Fernando.” Ficou em silêncio, ele nada comentou. “Mas também gosto de você.” Outro silêncio, carregado. “Vou ficar com você.” Uma decisão tranquila, como se não estivessem em jogo sentimentos tão complicados. Depois conversaram diversas vezes sobre o assunto: a decisão dela permanecia com a mesma firmeza, embora ela dissesse claramente que Fernando continuava sendo extremamente importante em sua vida. Agora ele a via, parada no meio da sala, absorvendo o sentido da notícia definitiva. Ela engoliu em seco, fechou os olhos por um momento e perguntou: “Como foi?” Sérgio, que tinha ficado em pé, encostado na porta, contou para ela tudo o que havia acontecido. Ela ouviu em silêncio. Estava pálida, o rosto contraído, mas os olhos brilhavam, sem derramar uma lágrima, sem nem mesmo ficarem úmidos. Suas mãos estavam fechadas com força, as unhas se enterrando na carne. Sérgio parou de falar e, no silêncio que se seguiu, ela disse, com uma voz, dura, gutural, cortante: “Eles vão pagar por isso.” Não havia queixa em sua voz. Apenas uma promessa. Ela ainda ficou parada por alguns momentos. Depois se voltou para ele e, ainda pálida, pediu: “Deixa eu ver teu ferimento.” (TAPAJÓS, 1979a, p. 108)

O discurso verbal da figura feminina continua a definir-se pela praticidade e a secura (“Você está ferido?”; “Eu ainda gosto de Fernando.”; “Como foi?”; “Eles vão pagar por isso.”); entretanto, períodos de silêncio absoluto passam a acompanhar suas frases

(“‘Eu ainda gosto de Fernando.’ Ficou em silêncio, ele nada comentou. ‘Mas também gosto de você.’ Outro silêncio, carregado. ‘Vou ficar com você’ ”; “Ela ouviu em silêncio”) e alterações em sua postura física tornam-se perceptíveis (“Ela parou no meio da sala, a boca entreaberta, como se tivesse levado um soco”; “Ela engoliu em seco, fechou os olhos”; “Estava pálida, o rosto contraído”).

Nas sociedades ocidentais – embasadas em princípios e estruturas tradicionais e patriarcais – cabia às mulheres a assunção de comportamentos onde deveriam refletir a fragilidade, a sensibilidade e o sentimentalismo (BASSANEZI, 2007; BAUER, 2001; SARTI, 2001). No fragmento citado, notamos a tentativa de emersão de tais características por meio das respostas corporais da protagonista; no entanto, com a mesma naturalidade com que aparecem, essas posturas seriam rechaçadas ou substituídas por outras indicativas de força, agressividade e racionalidade (“Uma decisão tranquila, como se não estivessem em jogo sentimentos tão complicados.”; “Estava pálida, o rosto contraído, mas os olhos brilhavam, sem derramar uma lágrima, sem nem mesmo ficarem úmidos. Suas mãos estavam fechadas com força, as unhas se enterrando na carne”; “ela disse, com uma voz, dura, gutural, cortante”).

Se a construção e a consolidação do ser ficcional ocorrem, como afirma Candeias (2012, p. 23, grifo nosso) - “[...] principalmente através do que ela diz e faz, das reações que provoca e do que é dito a respeito dela.”- e se a linguagem, tanto verbal como corporal, sobressaem-se como “reveladora de nossa essência” (ZÉRAFFA, 2010, p. 427) inferimos ser “ela” uma personagem a abrigar dentro de si, como muitas

mulheres no decorrer das décadas de 1960 e 1970, uma “coexistência de contrários”

(OLIVEIRA, 1999, p. 69): ao transitar entre a esfera particular e pública, respectivamente associadas aos conceitos de feminino e masculino, deveria internalizar e adaptar-se a essas duas formas, por vezes tão distintas, de comportamento e expressão.

Na realidade, o discurso da nossa cultura é o discurso de uma sociedade patriarcal. Localizada dentro dele na posição de objeto, a fala da mulher é a fala do oprimido. Na relação de poder entre os sexos, ela adota o discurso masculino e através dele se descreve, se atribui, se avalia. Ao mesmo tempo, este discurso dominante é retraduzido, modificado, através da experiência cotidiana da dominação. A mulher constrói assim uma fala própria. (BAKHTIN, 2003, p. 314).

Observamos, assim, que diante de um acontecimento crítico, público e coletivo (as dificuldades vivenciadas pelos militantes) tanto a postura como a fala da protagonista tendem a uma masculinização; já em ocasiões pessoais e privadas (a morte de um ente querido, uma decisão amorosa), a mesma experimentaria um embate entre masculino, representado por suas colocações discursivas e a busca por refrear suas emoções, e feminino, expresso em suas reações corporais.

Por fim, julgamos necessário ressaltar o trecho abaixo, destoante dos demais ja comentados em virtude de sua organização narrativa:

Depois de um momento ela o olhou, notando uma distância em sua expressão. “O que foi?” Um sorriso contrafeito. “Nada.” Ela insistiu: havia alguma coisa que vinha de fora da praia, do dia, do momento, “Amanhã...” Ela não o deixou continuar: amanhã, é claro, eles estariam de volta, as tarefas todas que precisavam ser feitas. Mas por que se preocupar? Ele disse que havia um monte de problemas para resolver, as coisas não andavam bem ultimamente: “Você não consegue desligar.” A praia, a pausa de um dia no meio da atividade constante. Só para descansar um pouco, ou será que ele estava sem condições de retomar o trabalho. Para ela, pelo menos, era a mesma alegria: as tarefas da organização, o mar – a vida é uma coisa só. “Não é bem isso.” Ele sentiu um vago mal estar. Depois das quedas de alguns companheiros, a situação se tornava difícil. Cada vez mais se sentia acuado. A organização lutava para sobreviver, os objetivos políticos pareciam muito distantes. “Sei lá. A gente pára um dia para tomar fôlego e parece que é impossível sair do buraco. Quando a gente está no meio da atividade, sente menos isso.”. Ela o censurou

com uma ponta de zombaria: “Vacilando, hem?” Bobagem, o negócio

é tocar para a frente. Quando tudo vai bem, nem tem graça. É preciso ser mais forte justamente quando se sofre alguns golpes. Na voz dela havia o mesmo tipo de vitalidade que seu corpo demonstrava quando os músculos ondeavam suavemente sob a pele. “E daí? Eu sei que a qualquer hora a gente pode cair.” Mas não faz mal. Enquanto for possível vamos realizar as tarefas, levar a luta pra frente. Nisso existe alegria, a alegria de estar fazendo o que é certo, a mesma alegria que a gente sente na pele quando o sol seca a água do mar. (TAPAJÓS, 1979a, p. 93)

A praia como espaço central indica ser esse um dos raros períodos de descanso e afastamento do casal do centro urbano; em contraste com o ambiente de lazer e descontração, afigura-se o tema da conversa: a tensão emanada da guerrilha armada, com suas tarefas a serem cumpridas e seus riscos iminentes.

Ainda que muitas falas apareçam claramente sinalizadas pelo uso das aspas e por aquele que as teriam proferido, outras surgem inseridas no fragmento como discursos - diretos e indiretos - que não nos permitem uma identificação segura de quem seriam os seus autores. O emprego de tal recurso estilístico suscita interpretações variadas, no qual poderíamos destacar a seguinte: o narrador apresentaria um vinculo emocional tão extremo com a figura feminina, a ponto de buscar que suas vozes mesclem-se de tal forma a não existir limites entre um e outro.

Sob outro prisma, a definição de quem seriam os responsáveis por algumas das afirmações fundamentar-se-ia nos comportamentos contrastantes assumidos pelo par frente à temática do diálogo: o narrador coloca-se constantemente em uma posição mais teórica, insegura e emocional ao andamento da luta armada (“Cada vez mais se sentia acuado. A organização lutava para sobreviver, os objetivos políticos pareciam muito distantes”), não a enxergando em relação aos demais campos de sua vida (“A praia, a pausa de um dia no meio da atividade constante. Só para descansar um pouco, ou será que ele estava sem condições de retomar o trabalho”); já a protagonista feminina demonstra praticidade, confiança e racionalidade, assim como a certeza de sua ideologia militante entrelaçar-se e aproximar os diversos aspectos de sua trajetória pessoal (“É preciso ser mais forte justamente quando se sofre alguns golpes”; “Mas não faz mal. Enquanto for possível vamos realizar as tarefas, levar a luta pra frente. Nisso existe alegria, a alegria de estar fazendo o que é certo, a mesma alegria que a gente sente na pele quando o sol seca a água do mar”). É interessante observar que as características associadas a cada um deles seriam inversas aos papéis e conceitos tradicional e socialmente impostos aos gêneros (OLIVEIRA, 1999; ALVES e PITANGUY, 1985).

Mesmo tendo sua voz expressa e destacada em variadas situações e

contextos, é plausível concluirmos que a essência feminina do discurso da

protagonista estará constantemente camuflada, sublimada ou submetida ao

discurso masculino.