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O referencial desta pesquisa ancora-se no sociólogo alemão Norbert Elias (1897- 1990), que nos oferece um manancial teórico pautado na sociologia dos processos, apoiado em estudos sobre os de longa duração, o qual contribuiu para a análise da questão central desta pesquisa, qual seja: o trabalho docente de professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental.

O modelo de interpretação sociológica desenvolvido por Elias é sustentado pelo conceito de processos sociais. Tal conceito se refere às transformações amplas e contínuas em períodos de longa duração, permitindo-nos diferenciar as complexas teias e os laços que, por meio do conceito de interdependências entre os indivíduos, unem os sujeitos de uma figuração e formam o que o autor denomina “configuração” ou “figuração” (ELIAS, 1994). Embora Elias tenha feito uso dos dois termos (configuração e figuração) de forma indistinta em suas obras, ele próprio optou, ao final de sua carreira, pelo termo “figuração” e, por essa razão, aderimos a ele nesta tese. As razões para tal decisão são explicadas por Landini (2005, p.5):

O ponto que incomodava Elias é que, no latim, o prefixo con significa exatamente “com”, ou seja, se figuração (figuration) quer dizer padrão (em inglês, pattern), con-figuração (configuration) quereria dizer com padrão (with pattern). Entretanto, como o objetivo do autor era entender o padrão em si, o prefixo con passou a ser visto como redundante e ele passou a preferir o uso de figuração.

Todo grupo social constitui uma figuração específica, construída a partir das relações que estabelece. Nesse sentido, a análise sociológica feita por Elias nos permite ponderar sobre a figuração da categoria profissional docente. A noção de figuração construída pelo autor surgiu de sua crítica a uma teoria social que dissociava indivíduo e sociedade, desconsiderando as dependências mútuas que se alteram e modificam também as relações de poder nelas instituídas, haja vista que, na perspectiva elisiana, toda relação humana envolve poder.

compreensão das figurações e das distinções constituídas no trabalho dos professores, considerando as relações de poder que se estabelecem entre eles, pois se trata de uma estrutura de pessoas que se orientam mutuamente, sendo dependentes umas das outras.

Elias oferece importantes contribuições às investigações dos processos educativos, bem como à análise do trabalho docente, pois, como afirma Leão (2007, p. 10):

No campo dos estudos educacionais, o trabalho de Norbert Elias abre caminhos para a compreensão da formação dos indivíduos e suas implicações com as apropriações dos objetos de cultura. Também propicia a análise dos efeitos produzidos pelos bens simbólicos no espaço social e dos processos de interiorização dos constrangimentos que permitem o aprendizado da vida em grupo.

As teias de dependência entre os professores que formam uma figuração se apresentam como um importante mote de análise para o presente estudo. Elias coloca em primeiro plano a questão da relação entre as ações individuais e os processos sociais, que, para ele, são indissociáveis: “dessa interdependência contínua resultam permanentemente transformações de longa duração na convivência social, que nem um ser humano planejou e que decerto também ninguém antes previu” (ELIAS, 2006, p. 31) e toma o tempo como uma dimensão essencial para a análise sociológica. Elias a considera sob três aspectos: como experiência de duração, como elemento de referência e também como consciência de mudança, tornando-se, na compreensão de Heinich (1997) uma contribuição original à sociologia.

Elias superou as polarizações comuns nas interpretações de cunho sociológico, ao instituir a articulação entre o desenvolvimento processual e o figuracional, que se tornam importantes ferramentas para análise tanto das estruturas individuais quanto das ações sociais, apreendendo o que une os indivíduos uns aos outros e evidenciando que possíveis singularidades se originam nas figurações sociais e vice-versa.

Embora a proposta da presente pesquisa não seja tecer uma análise de longa duração em torno do trabalho docente de professores alfabetizadores, devido às delimitações inerentes ao objeto de pesquisa, bem como a sua delimitação temporal, apoiamo-nos neste referencial, a fim de compreender o processo de organização e de reorganização do exercício do trabalho das escolas vinculadas ao governo do estado de São

Paulo. Oliveira alerta sobre a escassez de estudos nesse segmento, apontando a importância de ampliar tais investigações, pois, segundo ela:

Carecemos de maiores estudos para a compreensão das interferências que tais reformas exerceram sobre as relações de trabalho dos profissionais da educação, abarcando desde aquelas concernentes ao processo de trabalho na escola aos procedimentos normativos que determinam a carreira e a remuneração docente (OLIVEIRA, 2003, p. 13).

Elias salienta que todas as profissões ou ocupações se constituem, de certa forma, independentes dos indivíduos que a praticam num determinado tempo, ou seja, as mudanças ocorridas na atividade docente não se devem exclusivamente às ações ou aos pensamentos de um professor, em particular, mas ao coletivo dessa categoria, uma vez que um professor solitariamente não teria a força necessária para determinar o curso do desenvolvimento de sua categoria profissional. Para ele, a evolução da atividade profissional supera a simples somatória das ações individuais, dado que o coletivo delineia seu próprio modelo (ELIAS, 2006).

Esses aspectos nos remetem à noção de habitus elaborada por Elias, pois, com a incorporação de normas relativas ao grupo, modos, comportamentos e as próprias normas vão sendo introjetados, inclusive na cultura do corpo, nos modos de falar, nos comportamentos cotidianos, e vão se naturalizando, o que dificulta sua erradicação.

Assim, aquilo que se tornou tradição torna-se também um hábito, ou seja, uma parte integrante do habitus social. A noção de civilização, na concepção de Elias, expressa um habitus nacional, posto que reflete as características culturais de uma dada sociedade. Assim, as figurações estruturadas em períodos de longa duração ancoram-se no habitus.

A fim de melhor explicitar a importância da análise de longa duração para compreendermos as transformações sociais, Elias faz alusão à profissão naval, que se constituiu quando a Marinha se resumia a uma frota de barcos a vela, em uma época em que as tarefas, os treinamentos, os instrumentos de trabalho eram muito diferentes dos utilizados na atualidade. Trabalhar nas embarcações a vela exigia que se utilizassem as mãos por muito tempo, e os livros tinham pouca serventia no domínio da técnica requerida à arte de navegar. Hoje, para comandar um navio da marinha, faz-se necessário conhecer

profundamente uma série de instrumentos de alta tecnologia e equipamentos sofisticados que exigem anos de leitura e estudo, diplomas e certificações.

Estabelecemos aqui uma analogia com o trabalho de docentes alfabetizadores: se, antes, para que um professor ensinasse a aquisição do sistema de escrita, uma única cartilha era o suficiente e a disciplina era mantida com o amplo uso da palmatória, por exemplo, hoje, atitudes dessa natureza são consideradas inaceitáveis e configuram, até mesmo, um ato criminoso, o que levou, inclusive, à criação de dispositivos legais3 que proibissem atos violentos contra crianças nos âmbitos escolar e doméstico.

Referência teórica igualmente importante é Christian Laval, sociólogo francês, especialista em história do pensamento liberal nos Estados Unidos da América, que, em sua obra A escola não é uma empresa – o neoliberalismo em ataque ao ensino público (2004), contribui, também por meio da perspectiva histórica, para compreender e analisar os processos de transformação nos quais a escola e o trabalho docente se inscrevem, sobretudo em função do “novo modelo escolar e educativo que tende a se impor fundamentado, inicialmente, na sujeição mais direta da escola à razão econômica” (LAVAL, 2004, p. 3).

Nesta obra, o autor destaca três grandes eixos de análise: o primeiro trata da teoria do capital humano, essência da permanência do trabalho alienado; o segundo analisa as formas como a lógica do mercado invade o campo educacional; e o terceiro trata especificamente do que o autor denomina o “novo gerenciamento educativo”, ou seja, os efeitos da lógica de pensar e gerir as escolas como empresas, conforme será discutido nos capítulos II e IV.

Para Laval, uma das principais mudanças que afetaram a esfera educativa nas últimas décadas foi o processo de monopólio da ideologia neoliberal e de seu discurso reformador. Para o autor,

algumas das principais evoluções desses últimos vinte anos, quer se trate da lógica gerencial, do consumismo escolar ou das pedagogias de inspiração individualista, relacionando-as tanto às transformações econômicas quanto às

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Para maior aprofundamento consultar Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 que dispõe sobre o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) – Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990.

mutações culturais que afetaram as sociedades de mercado, é possível perceber por que e como a instituição escolar se adapta sempre mais ao conceito de escola neoliberal. (LAVAL, 2004, p. 11)

Por meio da concepção de escola orientada pela lógica neoliberal é que analisamos alguns fenômenos que envolvem as mudanças em curso na organização da atividade docente na escola pública estadual, advindas de políticas que intensificam parcerias com instituições privadas incorporadas pela esfera educativa pública; o avanço dos processos de terceirização de serviços relativos à reorganização curricular e de ações de formação em serviço sem a participação de docentes da própria rede; os contratos temporários de professores, entre outros aspectos caros à lógica empresarial, aproximando a escola “de uma ideologia dócil às lógicas de mercado, a ponto de, por uma operação de metaforização eficaz, assimilar a escola a um mercado escolar” (LAVAL, 2004, p. 107).

Partindo dos pressupostos de Laval, consideraremos os efeitos da lógica gerencial no trabalho docente, bem como sua influência nos conteúdos, nos procedimentos e nas relações de poder no interior das escolas, especificamente nos anos iniciais do Ensino Fundamental.

Outro conceito importante para este estudo refere-se à noção de competência no âmbito educativo, que será abordada na perspectiva dos estudos organizados por Ropé e Tanguy (1997), Saberes e competências – o uso de tais noções na escola e na empresa. Na concepção das autoras, a noção de competências articula-se às noções de desempenho e eficiência, instaurando uma forte aproximação da esfera educativa ao mundo das empresas e à lógica de produtividade, conforme será analisado no capítulo II.