• Nenhum resultado encontrado

Após a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996 (BRASIL, 1996), os documentos curriculares destinados à formação de professores foram revistos e passaram a ter como cerne a lógica das competências, a fim de enfrentar o “novo paradigma educacional”, como salientam Dias e Lopes (2003, p. 1157); ou seja, para enfrentá-lo fazia-se necessário investir na formação de professores em exercício, já que estes, de acordo com documentos oficiais, não estariam preparados para tal desafio. Assim, a solução para esse processo formativo deveria, então, apoiar-se na construção de competências, conforme expresso no Referencial de Formação de Professores:

[...] a proposta de formação expressa neste documento se orienta pelo propósito da construção de competências profissionais – possibilidade de responder

adequadamente aos diferentes desafios colocados à atuação do professor. Ainda que possam ter valor em si mesmos por serem saberes relevantes, os conteúdos da formação não terão qualquer utilidade, do ponto de vista profissional, se não favorecem a construção das competências (BRASIL, 2002, p. 85).

A lógica das competências garantiria, então, as condições necessárias à formação de professores, objetivando, porém, o desenvolvimento de conhecimentos úteis e práticos, instituindo o que Newton Duarte (2004, p.5) denominou de “a pedagogia do aprender a aprender”.

Tanto os Referenciais de Formação para Professores (BRASIL, 2002), quanto as Diretrizes Curriculares para Formação de Professores (BRASIL, 2001), em âmbito nacional, passaram a indicar à escola “novas tarefas e demandas, entre as quais a ressignificação do ensino em resposta aos desafios contemporâneos” (DIAS; LOPES, 2003, p. 1164) e, a partir dessa análise, os docentes estariam despreparados para atender a eles e necessitavam, portanto, da formação em serviço para reajustar sua prática pedagógica.

Precisamos considerar, contudo, que se, por um lado, a formação continuada deve consolidar-se como um direito intrínseco do trabalhador, favorecendo a constituição de sua profissionalidade, por outro, ela se apresenta, muitas vezes, com o intuito de adaptar os docentes às novas demandas pelas quais ele passará a ser avaliado. Nesse sentido, outro aspecto relevante a ser destacado nos Referenciais para Formação de professores é a articulação entre a formação (inicial e/ou continuada) e a avaliação, conforme expresso no documento: “Tomando-se como princípio o desenvolvimento de competências para a atividade profissional, é importante colocar o foco da avaliação na capacidade de acionar conhecimentos e de buscar outros, necessários à atuação profissional” (BRASIL, 1999, p. 40).

A dimensão avaliativa, pautada na noção de competências, ganhou centralidade nesta lógica, como discutimos no capítulo III.Desse modo, “as competências profissionais a serem construídas pelos professores em formação, de acordo com as presentes diretrizes, devem ser a referência de todos os tipos de avaliação.”( BRASIL, 1999, p. 50). E, assim, as competências destinadas à formação dos professores ganharam, segundo Dias e Lopes (2003), o status de objetivos da formação.

Faz-se necessário, porém, ao tratarmos da noção de competência, atrelá-la à discussão da formação continuada e a sua relação com formação-emprego, forjada por Lucie Tanguy em seus estudos sobre o processo de modernização e a formação profissional, desencadeados na França após a Segunda Guerra (1999).

A noção de qualificação surgiu no Pós-Guerra, a fim de organizar as relações sociais de trabalho e educativas no mundo produtivo, o que, segundo Ramos (2002), cedeu lugar para a noção de competência, em função dos aspectos que passaram a ser valorizados em nome da eficiência produtiva. Nessa perspectiva, os problemas da educação passaram a ser interpretados como problemas de formação, ancorando-se em experiências subjetivas que promovem um processo de individualização, em detrimento do coletivo de trabalhadores.

Apesar de todos os seres humanos terem como inerentes inúmeras competências que são ampliadas durante seu desenvolvimento, a ênfase específica em torno de perfil previamente delineado e ajustado especificamente à melhoria da qualidade dos processos produtivos surgiu como um dos elementos históricos do processo de reestruturação capitalista (MACHADO, 2007), ou seja, como uma distinção competitiva, em que são mais valorizados os conhecimentos relativos a situações práticas e concretas.

Se buscarmos apreender as alterações levadas a efeito ao longo do tempo, como sugere Elias (2000), veremos que as configurações históricas se alteram continuamente. Tanguy (1999) ressalta que a relação entre formação e emprego se desenvolveu por um longo período, no qual a tônica da formação ganhou vulto, a partir dos anos 1950, e passou a ser veiculada como instrumento capaz de promover a mudança pretendida nas instituições produtivas, visando alterar a organização do trabalho e as relações hierárquicas nas empresas. Nos “anos 1960 também foram definidas políticas de emprego que se traduziram pela criação de dispositivos e de instituições em cujo âmago estava inscrita a formação” (TANGUY, 1999, p.50).

No Brasil, esta ótica foi incorporada à política educacional dos anos 1990, e nela se observa o mesmo deslocamento observado por Tanguy na França: da noção de educação para formação, evidenciando-se a supervalorização desta última, que

supostamente seria capaz de desenvolver as capacidades profissionais necessárias para adequação aos novos tempos. No estado de São Paulo, os conteúdos da formação foram atrelados, principalmente, às metas propugnadas às escolas, às exigências do mercado de trabalho, distanciando-se, assim, das questões relativas à formação integral reflexiva e crítica.

Surgiu, então, nessa perspectiva da competência, a necessidade de estabelecer novas regras, currículos, prescrições e métodos, a fim de garantir processos passíveis de avaliar o alcance, ou não, das competências pretendidas, levando a escola se distanciar da lógica dos conhecimentos e adentrar a das competências, como afirma Laval (2004).

As mudanças advindas da lógica das competências podem ser observadas de forma mais concreta também nas alterações curriculares instituídas na rede estadual a partir do Programa São Paulo faz Escola, implementado no ano de 2007,cujo objetivo era a implementação de um currículo padronizado para todas as escolas estaduais, o qual se organizava por meio de competências e habilidades a serem desenvolvidas em cada ano escolar. Esse programa contou com a distribuição de materiais didáticos destinados aos alunos e professores das mais de cinco mil escolas pertencentes à rede estadual.

O currículo dos anos iniciais também passou por uma reformulação e pautou-se pela transposição dos conteúdos na forma de competências e habilidades, porém foram estabelecidas para cada ano as “expectativas de aprendizagens”a serem alcançadas. Com a reorganização curricular realizada pela Seesp em 2007, os conteúdos destinados a cada ano do Ensino Fundamental organizaram-se a partir das competências e habilidades, porém determinavam-se, no documento curricular, as expectativas de aprendizagem para cada ano, ou seja, o que os alunos devem saber ao seu final. Nesse sentido, elas anunciam, de certa forma, as metas de aprendizagem a serem atingidas pelos professores.

Assim, redefiniu-se o currículo a partir da somatória de competências que seriam checadas ao final de cada ano, por meio das avaliações externas. A avaliação, nesse processo, visa validaras competências desenvolvidas em sala de aula pelos professores, movimento que procura modificar o olhar do professor acerca de seu trabalho, como ilustra uma das professoras entrevistadas:

Nós ficamos reféns das Expectativas de Aprendizagem e do SARESP, se formos seguir o currículo ficamos só naquilo, mas tem outros conhecimentos que precisam ser trabalhados, vai olhar se as escolas particulares estão trabalhando assim, lá os alunos estão aprendendo as outras matérias também. Mas aqui isso é esquecido e isso é uma angústia para gente (professora 7, 09dez. 2011). Foi possível apreender, nas entrevistas realizadas ao longo desta pesquisa, que os professores se sentem angustiados pelo fato de o currículo focar o trabalho nos anos iniciais do Ensino Fundamental apenas com língua portuguesa e matemática, minimizando outros campos do conhecimento, segundo eles, também relevantes à formação integral dos alunos. Vale salientar que o maior número de programas de formação continuada destinados a professores dos anos iniciais focou, tradicionalmente, a alfabetização no âmbito do ensino de Língua Portuguesa e, em menor grau, o da Matemática.

Na consolidação das reformas educacionais da SEE-SP, desencadeadas a partir da década de 1980, a formação continuada justificava-se, invariavelmente, a partir de dois aspectos: por um lado, o dito “fracasso escolar”, sempre acompanhado dos índices de alunos não alfabetizados, reprovados ou evadidos; e, por outro, a formação inicial dos professores, que passou a ser tida como insuficiente, justificando a necessidade de investir em ações de formação em serviço, subsidiadas por organismos internacionais.

A partir dos anos 1980, foram muitas as ações que envolveram processos de formação continuada desenvolvidos pela Seesp, destinadas aos professores que atuavam nos anos iniciais do Ensino Fundamental, a fim de reverter o chamado “fracasso escolar”. Essas se desenvolviam por meio de orientações técnicas26 ou de cursos certificados. Fizemos uma reconstituição dos principais programas e/ou cursos destinados a professores alfabetizadores da rede estadual desde os anos 1980, em ordem cronológica:

 1988 – Por uma alfabetização sem fracasso

26

De acordo com a Resolução SE nº 58, de 23/08 de 2011 (SÃO PAULO, 2011), alterada pela Resolução SE 61 de 6-6 de 2012 (SÃO PAULO, 2012), em seu “Artigo 2º – Entende-se por Orientação Técnica todo e qualquer espaço de reuniões de caráter pontual, sistemático ou circunstancial, que objetive o aprimoramento da prática profissional do servidor, com vistas a subsidiá-lo com informações específicas que aperfeiçoem seu desempenho. Artigo 3º – As atividades propostas para cada Orientação Técnica deverão totalizar, no mínimo, 4 (quatro) e, no máximo, 8 (oito) horas diárias, podendo ser realizadas em horário regular de trabalho dos servidores envolvidos, sendo que, no caso de Orientação Técnica destinada a docentes em sala de aula, seu desenvolvimento não poderá exceder a 1 (um) dia de atividades por trimestre”.(SÃO PAULO, 2012)

 1993 – Alfabetização: teoria e prática  2001 – Letra e Vida

 2007 – Ler e Escrever

Fonte: Lectura y Vida, dez.2010, p. 20

Apreendemos, durante a pesquisa, que as pressões que surgem em torno do trabalho docente dos professores dos anos iniciais são mais intensas e refinadas do que nos demais segmentos, como os anos finais do Ensino Fundamental. Isso porque elas ocorrem de diversas formas e abarcam inúmeras dimensões do trabalho docente, repercutindo, inclusive, nos processos de formação continuada que se pautam na relação estabelecida entre o chamado “fracasso escolar” e a “formação inicial precária”, os quais estão presentes nos discursos oficiais, na tentativa de justificar os altos níveis de repetência e a evasão escolar. Assim:

[...] as nomenclaturas de formação, ferramentas elaboradas com fins técnicos de administração, pensadas em termos de níveis que anulem diferenças, entretanto fundamentais entre ensino geral, técnico e profissional, impuseram-se progressivamente como categoria de percepção e de organização social; guiam políticas do Estado [...] são utilizadas pelas organizações profissionais patronais e pelos sindicatos de assalariados nadefinição de grades de classificação e também contribuem para a configuração das representações de docentes, famílias e alunos quanto a diversas formas de ensino, seus lugares e suas funções (TANGUY, 1999, p.50).

Somente no Programa “Alfabetização: Teoria e Prática”, realizado com financiamento do Banco Mundial entre os anos de 1993 e 1994, formaram-se em torno de dez mil professores. No caso do Programa Letra e Vida, somente em 4 anos, de 2003 a 2006, foram certificados em São Paulo aproximadamente 900 Coordenadores Gerais do Programa e de Grupos, que multiplicaram os programas de formação para cerca de 38 mil cursistas (WEISZ, 2010).

Para discutirmos mais detalhadamente as ações de formação continuada instituídas na SEESP a partir dos anos 2000, apresentaremos dois programas — Letra e Vida e Ler e Escrever — destinados ao segmento de ensino tratado nesta pesquisa, a fim de explicitar os elementos empíricos nos quais centraremos nossa análise.