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A alfabetização é um conteúdo central e relevante no trabalho dos professores e das professoras investigados neste estudo. O ensino da leitura e da escrita na modernidade, a que hoje se denomina alfabetização, resulta em uma aprendizagem essencial para a ascensão ao mundo letrado, como afirma Mortatti (2006, p.19):

Os processos de ensinar e de aprender a leitura e a escrita na fase inicial de escolarização de crianças se apresentam como um momento de passagem para um mundo novo — para o Estado e para o cidadão —: o mundo público da cultura letrada, que instaura novas formas de relação dos sujeitos entre si, com a natureza, com a história e com o próprio Estado; um mundo novo que instaura, enfim, novos modos e conteúdos de pensar, sentir, querer e agir.

Esse processo de acesso ao mundo letrado está sob a responsabilidade dos docentes que atuam nos anos iniciais do Ensino Fundamental – doravante denominados, nesta pesquisa, “professores alfabetizadores” –, pois, na modernidade, a alfabetização passou a ser associada diretamente aos processos de escolarização (MORTATTI, 2006). E os professores são os principais responsáveis pela organização desse processo de aprendizagem, a fim de iniciar os estudantes na escrita que, durante um longo período na história, esteve acessível apenas às classes dominantes.

desenvolveu-se inicialmente em função da necessidade do registro de propriedade e ou do fluxo comercial. Nessa perspectiva, ela “surge com e para o poder. Surge para garantir a propriedade, a posse, o conhecimento, o controle da mercadoria, o estabelecimento de normas e procedimentos” (COLELLO, 2007, p. 11).

A relação entre o poder e a escrita ainda hoje pode ser observada, se nos ativermos à forma como esta é produzida, difundida e conduzida, principalmente pelos segmentos detentores do poder, pois a alfabetização é compreendida na sociedade como um importante pilar da cultura contemporânea, já que o valor atribuído, tanto à escrita quanto à leitura, adquiriu centralidade no modo de vida das sociedades urbano-industriais imersas no desenvolvimento científico e tecnológico (GALVÃO; DI PIERRO, 2007).

Ferraro (2009), em sua obra A história inacabada do analfabetismo, trata da construção social do analfabetismo como uma questão nacional, abordando os aspectos ideológicos e políticos que acompanharam historicamente a trajetória do analfabetismo no Brasil. Afirma que, apesar dos esforços empreendidos no processo de escolarização e alfabetização, findamos o século 20 e adentramos no século 21 com 17.552.762 pessoas com mais de 10 anos ainda não alfabetizadas. O censo de 2010 aponta leve retração dos números 14.612.183, mas ainda assim indica que parcela expressiva da população continua não alfabetizada. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2011, o total de analfabetos com mais de 15 anos é de 12, 9 milhões.

No primeiro censo demográfico brasileiro, realizado em 1872, o índice de analfabetismo na época era de 80,2% entre os homens e 88,5% entre as mulheres. Em torno desta condição, instaura-se o estigma do analfabeto. Para Goffman (1988), o estigma está associado a atributos depreciativos que conferem uma espécie de classificação social negativa, pela qual um indivíduo passa a ser identificado.

Os estereótipos atribuídos a alguém que, de alguma forma, não corresponde ao modelo social predefinido a tornam estigmatizada. Assim se concretiza o conceito de estigma. Segundo Goffman, os indivíduos estigmatizados possuem duas identidades: a real e a virtual. A identidade real estaria, para o autor, relacionada a todos os atributos que a constituem, enquanto a identidade virtual se relaciona àquilo que lhe é imputado pelo outro

e ou pela sociedade. Nessa perspectiva, o indivíduo estigmatizado passa a ser visto, não por meio de sua identidade social real, mas acaba se reduzindo exclusivamente ao atributo que o diferencia dos demais.

De acordo com Goffman (1988, p. 14), há três categorias de estigmas: a primeira estaria relacionada às deformidades físicas; a segunda, vinculada aos vícios adquiridos, aos diversos tipos de instabilidade emocional, elencados pelo autor, entre eles, o homossexualismo, o desemprego e até mesmo as tentativas de suicídio; e, na terceira categoria, encontram-se os estigmas tribais relativos à raça, à religião e à nação.

Não saber ler e escrever, com o tempo, passou a ser entendido como um atributo depreciativo que expressava uma marca distintiva incompatível com a categoria socialmente prevista, forjando, assim, o estigma do analfabetismo.

Em 1827, por exemplo, quando se instituiu a primeira Lei Geral de Instrução Pública no Brasil, a maior parte da população ainda não sabia ler e escrever. Nesse período ainda não era necessário ser alfabetizado para inserir-se nas diferentes esferas sociais. Porém, 54 anos depois, o Decreto nº 3029, de 9 de janeiro de 1881 (BRASIL, 1881), no artigo 8º, que tratava sobre o alistamento eleitoral, afirmava que seriam nele incluídos apenas os cidadãos que viessem a requerer e que provassem ter adquirido as “qualidades de eleitor” e, em conformidade com a lei, soubessem ler e escrever.

Rui Barbosa, redator do texto final da Lei, era também contra o voto dos analfabetos. Segundo Galvão e Di Pierro (2007, p. 39), o discurso sobre o analfabeto era entendido a partir de uma visão sempre antagônica: “entre a capacidade e a perspicácia; entre a incompetência e a dignidade, entre a miséria e o conhecimento, entre a servilidade e a inteligência”.

Na segunda metade do século 19, ainda segundo o estudo de Galvão e Di Pierro (2007), o trabalho de alfabetização para as classes populares era feito, pelos professores, sem remuneração. Nas casas que funcionavam como escolas para crianças durante o dia, à noite eram recebidos os maiores de 15 anos, para serem alfabetizados por docentes que não recebiam por essas aulas, pois sua remuneração baseava-se apenas no ensino para crianças;

a alfabetização de adultos não era considerada como atividade docente a ser remunerada. Desse modo, o trabalho do professor alfabetizador com adultos tem, na sua origem, um caráter filantrópico, desvinculado das obrigações do Estado e distante da noção de educação como direito. Tal aspecto enseja indagações acerca da própria história da política destinada à Educação de Jovens e Adultos, invariavelmente preterida pelas políticas públicas em relação ao ensino regular.

O ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita passaram a chamar a atenção da administração pública de forma mais contundente somente algumas décadas antes da Proclamação da República. Contudo, foi a partir da primeira década republicana, por meio das reformas em torno da instrução pública, que a leitura e a escrita se institucionalizaram como práticas escolarizadas, conforme assinala Mortatti (2010, p. 330), ou seja, passaram a ser “submetidas à organização metódica, sistemática e intencional”.

Somente na primeira década da República, com o surgimento das reformas de instrução pública, o processo de alfabetização tornar-se-ia uma ferramenta estratégica tida como essencial ao processo de modernização do País.

A primeira Constituição Republicana, ao se referir às qualidades do cidadão, já mencionava o analfabeto e o instituía juridicamente. Segundo Silva (1998, p. 24), historicamente:

É nesse espaço que o cidadão-analfabeto é instalado pela República: um lugar enunciativo de negação da própria cidadania. Todos são iguais perante a lei, diz o texto, porém, nem todos dizem as práticas sociais. A escrita assim passa a ser um critério de seleção e de exclusão dos indivíduos da nossa sociedade, adquirindo estatuto jurídico. O analfabeto adquire visibilidade e a escrita traz a possibilidade de uma solução nova para a manutenção de antigas desigualdades, para homogeneizar a heterogeneidade em uma ordem burguesa, urbana e industrial.

As reformas educacionais paulistas passaram também a considerar a aquisição do sistema de escrita como questão central para o desenvolvimento político, econômico e social, em consonância com os ideais republicanos, para os quais o analfabetismo passou a ser compreendido como uma “vergonha nacional” pelos políticos da época. Contudo, foi a partir da década de 1930 que a alfabetização ganhou espaço estratégico nas ações governamentais estaduais e federais, a fim de alavancar o desenvolvimento nacional.

No Brasil, a história da alfabetização envolveu, desde o final do século 19, os embates e as disputas acerca dos métodos de alfabetização utilizados pelos professores, o que, ao longo do tempo, foi instaurando no trabalho desses profissionais uma diversidade de concepções, materiais, prescrições, normas e regras (MORTATTI, 2006). Assim, essas disputas metodológicas fomentaram novas divisões entre os especialistas e os professores, o que, de certa forma, acabou expropriando os saberes constituídos pelos professores, sobretudo com a entrada de especialistas que passaram a pensar, planejar, supervisionar e prescrever o trabalho a ser realizado pelos docentes (FRIGOTTO, 1989).

Também as mudanças sociais envolvidas nos processos de longa duração impuseram à escola novos desafios, tornando necessários constantes ajustes do trabalho docente, no que diz respeito à organização do tempo, do espaço, dos conteúdos, dos modos de exercer sua atividade.

Um exemplo específico das mudanças sociais que afetaram o processo de alfabetização pode ser o ensino da letra cursiva. Durante longos períodos na história dos métodos de alfabetização, ela ocupou um espaço importante, sobretudo em tempos em que documentos como certidões de casamentos, de propriedade, de nascimento, convites e cartas eram registradas a mão, com letras escritas a mão, muito bem grafadas, que evidenciavam o valor social da escrita, em tempos em que a maioria da população se mantinha analfabeta.

Não obstante, com o surgimento da máquina de escrever e, posteriormente, com o avanço das tecnologias da informação, especialmente a partir do surgimento do computador, a letra cursiva foi aos poucos perdendo o seu status social de outrora. A ocupação de calígrafo, inclusive, foi aos poucos se extinguindo, já que se conseguia produzir, por meio do computador e de impressoras, letras cada vez mais sofisticadas em menos tempo, ou, como diria o sociólogo norte-americano Richard Sennett, em sua obra O artífice (2009), ao discutir sobre a habilidade artesanal a partir da lógica da sociedade mecânica e produtivista: “a aplicação da medida de qualidade absoluta à coisa propriamente dita, a máquina é melhor artesã que uma pessoa” (SENNETT, 2009, p. 60).

de coordenação motora fina que fizeram parte da trajetória profissional e de formação dos professores enquanto alunos e, posteriormente, permearam sua formação inicial, em um dado momento se tornou um conteúdo dispensável, como ocorreu em 2011, nos Estados Unidos, com a Lei que tornou opcional às escolas seu ensino. Assim afirma o diretor do Distrito escolar de Indiana: “Se olharmos antigos documentos ou se virmos a escrita de mão dos tempos da guerra civil, eles eram verdadeiros trabalhos artísticos e certamente perderemos parte disso. Mas temos de levar em conta o progresso”. (CHACRA, 2011, p. 9). O principal argumento daqueles que defenderam esta lei se pauta na ideia de que, na atualidade, as crianças não precisariam mais escrever a mão no papel, e seria mais adequado ensiná-las a digitar mais rapidamente, já que a principal forma de comunicação ocorre por meio de teclados dos celulares, tablets e computadores.

Apesar de o diretor norte-americano reconhecer a importância que a letra cursiva ocupou historicamente, ele afirma que, com o passar do tempo, ela se transformou em algo obsoleto, que não precisa mais ser ensinado nas escolas. Mas, diante desse relato, vale a pena indagar em que medida a análise que faz toma como referência a realidade estadunidense e não o conjunto da população do planeta, o qual não tem acesso a esses equipamentos; e se, por conseguinte, a escrita não é efetivamente algo obsoleto.

Consideramos pertinente explicitar aspectos relativos ao processo de alfabetização que compõem o trabalho docente dos professores do segmento analisado – anos iniciais do Ensino Fundamental –, porque se faz necessário considerar a diversidade do próprio processo de profissionalização da categoria docente que é heterogêneo, pois, como afirma Souza (2005, p. 208), “a forma como a profissão é vivida não é igual para todos os professores, assim como não é igual para os profissionais em geral”. Inclusive no tocante às relações entre os professores alfabetizadores e os que atuam nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, percebem-se clivagens que serão aqui discutidas.