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Normalistas em frente ao Prédio do Instituto de Educação “Caetano de Campos”

A Escola Normal e a docência feminina

Foto 9 Normalistas em frente ao Prédio do Instituto de Educação “Caetano de Campos”

em 1954

Fonte: http://www.iecc.com.br/historia-da-escola/denominacoes-da-escola/90/denominacoes-da-escola- normal-da-praca

A concretização do processo de feminização da carreira docente, segundo Codo (1999), intensificou-se entre 1870 e 1930. No século XX,observou-se a entrada massiva das mulheres no magistério. De acordo com Vianna (2002), sobretudo no magistério primário, notou-se a expansão da presença feminina nesta atividade quando as mulheres já eram

maioria, entre o final da década de 1920 e o início da década de 1930. O censo demográfico de 1920, por exemplo, já indicava que 72,5% dos docentes da escola pública primária brasileira eram mulheres que assumiam o processo de alfabetização dos alunos.

Conforme afirma Gouveia (1970), até a década de 1930, a única profissão feminina tida como respeitável para a mulher de classe média era o magistério. Posteriormente, foram abertas outras oportunidades de trabalho em escritórios, a princípio nas repartições públicas e, em seguida, em firmas particulares (GOUVEIA, 1970). Nesse sentido, foram-se consolidando socialmente os aspectos que seriam relativos ao “ser- mulher e que carregam consigo as qualidades tradicionalmente atribuídas ao sexo feminino” (VENCO, 2006, p. 89).

A docência foi-se consolidando a partir do século XX como principal ocupação para as mulheres. A escola de formação para o magistério criada para os homens no século XIX começou a enfrentar a redução de ingresso de alunos do sexo masculino: estes partiam em busca de outras oportunidades profissionais que surgiam, com melhores remunerações e, por isso, iam, gradativamente, abandonando as salas de aula, em função do processo de industrialização. Em contrapartida, as mulheres assumiam o magistério, ocupando novos postos de trabalho que ali surgiam.

Cabe lembrar as constatações das entrevistadas acerca da permanência dos homens na carreira docente, posto que estes alcançaram rapidamente outros cargos mais elevados, marcados por maior prestígio e melhor nível salarial, como o de inspetores escolares, assim denominados à época; e, posteriormente, como diretores de escola ou supervisores de ensino, como nos informa a professora entrevistada que começou a lecionar na década de 1930:“Eram sempre os homens no cargo de direção. Era difícil achar uma diretora, eram mais diretores.” (Professora 5, 02 out. 2011).

Dentre os professores entrevistados nesta pesquisa, contamos com a participação de um único professor que atuou como alfabetizador e iniciou sua carreira como professor no interior de São Paulo na década de 1950. Era casado com uma professora e afirma que sempre buscou se aperfeiçoar, a fim de prestar novos concursos e galgar novos cargos; para tanto, participava de inúmeros cursos que eram realizados em

outras cidades, o que lhe permitia afastar-se da sala de aula, mudando-se, muitas vezes, para outras localidades:

Eu podia fazer o curso comissionado, podia me afastar para fazer o curso. E eu era meio bonzão, então, eu passei. Foi por aí. E fui fazer o aperfeiçoamento. Então, eu venho para Jaú. Nesse meio tempo, a minha mulher ficou grávida do meu primeiro filho e eu fiquei morando na casa da minha mãe. Eu voltei, fiquei morando na casa da minha mãe e fazendo o aperfeiçoamento (Professor 4, 22

set. 2011).

Enquanto ele se aperfeiçoava em busca de um melhor posto de trabalho, sua esposa continuava na docência, conciliando o trabalho doméstico, o cuidado com os filhos e o magistério. Ele se aposentou como Supervisor de Ensino e trabalhou como assessor na Secretaria de Estado da Educação de São Paulo (Seesp), mesmo após sua aposentadoria, porém sua mulher aposentou-se como professora primária, pois nunca buscou ascensão profissional.

As mulheres passaram a assumir a docência como alternativa ao trabalho fora da esfera doméstica, porém houve, desde esse período, uma maior valoração em torno do trabalho masculino não só no que se refere à remuneração, mas também ao próprio reconhecimento social de seu trabalho, como salienta Venco (2006, p.63): “[...] a hierarquização entre homens e mulheres no mundo do trabalho está arraigada entre as trabalhadoras, revelando posições marcadas por certo conformismo, quanto a uma sociedade que privilegia o homem”.

Na análise de Almeida (1998), a ideia de associar a mulher à responsabilidade pela educação das crianças, no Brasil, esteve fortemente ancorada tanto no âmbito político como intelectual, pautando-se em um modelo cultural português. Segundo o autor:

A cultura lusitana foi determinante para esculpir na sociedade brasileira os contornos extremamente definidos dos papéis sexuais. Para os portugueses, a responsabilidade feminina nunca deveria transpor as fronteiras do lar, nem ser objeto de trabalho remunerado, o que era defendido em todas as instâncias sociais (ALMEIDA, 1998, p. 31-32).

Porém, não devemos restringir a análise deste processo docente somente ao aspecto quantitativo do ingresso de mulheres no magistério. É importante atentar também

para a relação com as características de gênero atreladas a essa profissão, que constituem um modelo escolar orientado pelo cuidado e pela disciplina, que é conquistada pela persuasão, assim: “[...] quanto mais o trabalho docente com crianças é idealizado como não-intelectual, enfatizando suas dimensões relacional e afetiva, mais se aproximam as imagem da escola primária e seu trabalho docente das características tidas como femininas” (CARVALHO, 1999, p. 71).

A imagem da mãe passa a ser associada à da professora primária, que assume no ideário social a representação da “segunda mãe” e, por consequência, da escola como o segundo lar. Nesse sentido, a concepção pedagógica nacional legitima esse modelo de escola primária como extensão do lar. O conjunto das entrevistas realizadas com professores que estão em sala de aula expressa uma concepção de magistério ancorada na relação entre docência e maternidade. Alguns depoimentos chegam a relacionar a docência a uma forma de sacerdócio, como citado abaixo:

Eu tinha desejo de trabalhar na rede pública por eu ter trabalhado em creche, como professora substituta e por eu ter feito esse trabalho voluntário no abrigo. [...] É óbvio que o trabalho oferece um rendimento e oferece benefícios. Eu não trabalho por prazer, simplesmente. Mas é mais do que isso. Eu já tinha trabalhado na escola privada e eu não me sentia como contribuindo muito com as crianças da rede. Então, eu me sentia mais útil se eu estivesse na rede pública. Então, o que me motivou a ir para a rede pública foi isso, eu me sinto contribuindo com algum conhecimento, além do que é proposto pela própria rede para essas criança.(Professora 7, 09 dez. 2011).

Durante a pesquisa, foi possível reunir diversos documentos oficiais e também particulares, pertencentes aos professores entrevistados, tais como: fotos, diários de classe, semanários, certificados e também alguns bilhetes de alunos endereçados a eles, docentes, evidenciando como a relação “professora-mãe” permeava seu trabalho, conforme expresso nas figuras 4 e 5.

Figura 4 – Bilhete de aluno para professora, produzido no início da década de 1960.

Figura 5 – Bilhete de aluno para professora, produzido na década de 1960.

Fonte: Acervo pessoal da Professora Esther Elisa Molento Chequin.

Ambos os bilhetes, produzidos entre as décadas de 1960 e 1970, foram documentos coletados do arquivo pessoal de uma das professoras entrevistadas e expressa a relação estabelecida entre a professora e os seus alunos, na qual a relação maternal é evidente.

Elias, ao nos apresentar o processo de civilização ocidental, ressalta a importância de considerar o desenvolvimento conjunto da cadeia de relações constituídas pelos indivíduos em sociedade, que interiorizam também as mudanças produzidas no espaço social. E, assim, é possível observar como a organização do trabalho docente nos anos iniciais do Ensino Fundamental, outrora realizado apenas por homens, foi abarcando aspectos relacionados à construção social do feminino, que passou a ser compreendida

também como uma forma de qualificação, como observa Liliana Segnini (1994), em relação ao trabalho das mulheres nos bancos.

As bancárias passaram a ser mais contratadas para assumir atividades que, de acordo com os bancos, exigiam maior grau de atenção e responsabilidade, atributos atrelados ao ser-mulher, ou seja, tidos como femininos. Essas tarefas atribuídas a elas, em geral, não implicavam em alto grau de qualificação e eram atividades repetitivas realizadas em tempo predefinido e em jornadas de tempo parcial, uma das características do trabalho precário (CASTEL, 1998).

O processo de ampliação das escolas, bem como o acesso das mulheres ao magistério, é acompanhado pari passu também por outras mudanças acerca da concepção de infância e de escola. Estudos como os de Pestalozzi, Rousseau e Froebel, que defendiam um modelo de escola como extensão do lar e da família, também fomentavam uma perspectiva de que “à escola não cabe apenas transmitir conteúdos institucionais, mas também zelar pelo desenvolvimento moral da criança, tal como se supõe que as mães façam nos lares” (CARVALHO, 1999, p.70).

Os materiais destinados à formação dos professores normalistas também expressam o ideário acerca do trabalho docente, conforme advertência destinada aos alunos-mestres em Livro de Escrituração que encontramos durante a pesquisa.

Figura 6 – Página do Livro de Escrituração Escolar para uso das Escolas Normais, década

de 1950.

Sob a influência dessas concepções que consideravam as mulheres como únicas responsáveis – e compreendidas como biologicamente dotadas para esse fim – pela socialização das crianças, a educação primária aos poucos foi considerando o magistério nos anos iniciais como uma extensão das atividades maternas, entendidas como inatas; ou seja, essa concepção foi se naturalizando, ao mesmo tempo que eram estreitados os laços entre a escola e o ambiente familiar; entre a docência nos anos iniciais e as qualidades tidas como femininas e a noção de cuidados, na perspectiva do habitus social criada por Elias.

A noção de habitus refere-se, assim, aos aspectos comuns aos membros de uma mesma comunidade, características construídas socialmente, sem qualquer aspecto que possa ser naturalizado. Apesar das singularidades que constituem cada sujeito, todos os indivíduos de uma sociedade possuem uma composição que também é compartilhada com os outros, por meio de normas e comportamentos que são introjetados culturalmente.