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CAPÍTULO 5 JORNAL ESCOLAR E AGÊNCIA SOCIAL 133

5.2 Aprender ensinando em projetos de letramento 143

Como vimos, o projeto de letramento não representou apenas um instrumento para o letramento e a formação do aluno, mas, aos olhos da professora Marisa, era também uma oportunidade para sua própria aprendizagem. Isso ficou claro nas manifestações dessa docente, durante o planejamento das aulas ou o desenvolvimento das atividades, expressando seu contentamento e entusiasmo com a compreensão de novos conceitos, o contato com outros materiais e, mesmo, a percepção de uma maneira nova de ensinar.

A partir das próprias ações da Professora Marisa durante a segunda parte do projeto, quando o coordenou sozinha, e mesmo depois disso, foi possível perceber que ela encontrou uma motivação maior para atuar, e que essa motivação ultrapassava a questão didática para culminar no engajamento de se concretizar coletivamente um projeto. A compreensão mais ampla do processo de ensinar a escrita, sobretudo de textos argumentativos, tais como o artigo de opinião, foi um dos aspectos salientados pela Professora Marisa, do qual são ilustrativos os seguintes excertos da entrevista que me concedeu:

Eu não tinha muito apego a esse tipo de de coisa. Pegava o texto de uma forma geral, mas não específico. Aonde que tá o argumento 1, aonde que tá o argumento 2, aonde que tá o contra-argumento, aonde que tá a refutação, né?! Clareou MUIto! (...) Então, eu achei que valeu bem a pena esse... esse lado; que a gente às vezes... cê passa batido. Manda fazer o texto em linhas gerais, né?! (...) Coloca lá: introdução, desenvolvimento, conclusão. (...) Aquela formulazinha, né?! Então, isso colaborou pra ser mais específico nesses pontos. (...) Isso é interessante, porque é:::. Você vai usar isso na sua vida TOda.

(Fragmento da transcrição da entrevista em áudio realizada com a professora Marisa no dia 17 de junho de 2008)

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Como ocorreu com os alunos em relação à sua aprendizagem, a especificidade do sistema de atividade reproduzido pelo projeto de letramento concedeu à própria Professora Marisa uma perspectiva mais ampla e mais clara para o ensino de Língua Portuguesa. O que efetivamente “clareou” para essa professora não foi simplesmente a compreensão de conteúdos específicos relativos ao ensino da argumentação escrita, ou seja, à forma em si, mas a própria relevância do processo de argumentar, bem como a razão e a finalidade desse processo. Esses aspectos ficaram muito mais claros ao serem inseridos no contexto do projeto do jornal, que trouxe para dentro da escola a situação de produção e circulação característica de outro sistema de atividade, que foi mobilizado e imbricou-se com o Sistema de Atividade Escolar, trazendo para este a sua própria estrutura e especificidade. Essa compreensão é especialmente evidenciada na última sentença do excerto acima, quando Marisa diz que “isso” – esse conhecimento – será útil para “a vida toda”, ou seja, irá muito além de um conhecimento que se restringe à própria escola ou, no máximo, à prova do vestibular, como ocorre com tantos outros, fato que Marisa volta a enfatizar em seguida, conforme se verifica nas seguintes passagens:

M: (...) Então é isso que eu queria assim, também... não sei se eu consigo passar pros alunos, mas eu tô querendo passar isso. Que eles não vão usar só esse Artigo de Opinião... ah, vou fazer o Artigo de Opinião porque interessa.... é um tema da Escola. Eles podem tá trabalhando FOra da Escola.

R: Eu lembro que tem uma gravação sua que alguém dizia assim: “mas professora, eu vou fazer arquitetura, eu não vou precisar ficar escrevendo textos argumentativos”, daí você falou “Olha, até pra pedir o seu pai pra sair, você precisa saber argumentar”.

M: Saber argumentar, exatamente! Então, hoje, tá muito... na vida da gente, tudo é argumento, né?!

(Fragmento da transcrição da entrevista em áudio realizada com a professora Marisa no dia 17 de junho de 2008)

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Marisa também mencionou nessa entrevista que vinha aplicando tudo o que aprendeu durante os dois semestres do projeto do jornal e também reproduzindo o material utilizado em todas as aulas, e que isso vinha sendo muito útil para outro projeto no qual ela

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estava envolvida naquele momento. Tratava-se do projeto “Olimpíadas de Português”85, que tinha como finalidade eleger os melhores textos (entre estes, um do gênero Artigo de Opinião) de alunos de cada cidade. Mais adiante, ela me relatou por telefone, com grande entusiasmo, que uma de suas alunas, que também trabalhou na produção do segundo número do jornal, havia sido premiada em segundo lugar, no âmbito das escolas daquele município, nas “Olimpíadas de Português”, escrevendo um artigo de opinião sobre um problema sério que estava ocorrendo em seu bairro e que dizia respeito a trabalho infantil86.

Esses exemplos são algumas amostras de como a Professora Marisa incorporou em suas práticas não apenas os materiais e conhecimentos mobilizados ao longo do projeto, mas também a perspectiva de ensinar voltada para a realidade dos alunos e suas comunidades (FREINET, 1974; DEWEY, 1947; HERNANDEZ e VENTURA, 1988) e tendo as práticas sociais como ponto de partida (KLEIMAN, 2006b). Assim, a mobilização dentro da escola de um segundo sistema de atividade permitiu à professora Marisa projetar, para os alunos, um contexto específico e relevante para o uso dos saberes que ela ensinava, permitindo-lhe, ao mesmo tempo, desenvolver sua própria capacidade de analisar os contextos de sua ação didática em relação àqueles preceitos. Como salienta Tinoco (2008, p. 179), “mudar a prática pedagógica parece ser um movimento fundante entre os professores que passam a trabalhar com projetos, porque a organização desse processo educativo está ancorada em princípios diferentes dos que compõem o modelo tradicional de ensino”.

Conforme Dewey (1947, p. 49) reafirma, “a atitude mais importante que pode ser formada é aquela do desejo de continuar a aprender”, e isso é válido não apenas em relação aos alunos, mas também em relação aos professores. Apesar de sua larga experiência como professora – mais de vinte anos – a Professora Marisa se viu, ao longo do

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Concurso realizado pelo Ministério da Educação, em parceira com a Fundação Itaú Social e o Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC), cujo objetivo é contribuir para a melhoria da qualidade de ensino e para o aperfeiçoamento da escrita dos alunos do Ensino Fundamento e Ensino Médio, conforme explicitado no site http://olimpiadadelinguaportuguesa.mec.gov.br/olimpiada, acesso em 11.07.2010.

86 Merece ser dito que essa competição não estava inserida no currículo da escola, representando, na verdade,

um projeto que os professores de Português tinham a liberdade de desenvolver ou não, não tendo, portanto, como objetivo primeiro a avaliação da escola, mas a participação efetiva em uma prática social real.

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projeto, aprendendo novas possibilidades e perspectivas de ensinar e revelou uma grande vontade de continuar aprendendo, apesar da sua sobrecarga de trabalho, que compreendia 40 horas de trabalho semanais, em duas diferentes escolas, como professora de Português, Literatura e Inglês, além dos demais papéis - de dona-de-casa, esposa, mãe, filha e avó - que desempenhava na sua rotina diária.

No desenvolvimento desse projeto de letramento, foi-nos possível enxergar na atitude da Professora Marisa aquela descrita por Kleiman (2007) como essencial. Uma atitude esperada de uma professora que se reconhece dentro de um contínuo processo de letramento e que se aventura “a experimentar e, com isso, a continuar aprendendo com seus alunos, através de práticas letradas que motivam o grupo todo e atendem, ao mesmo tempo, a interesses e objetivos individuais” (Ibid., p. 23). De certa forma, o trabalho com projetos possibilitou que a professora Marisa fosse também uma produtora de pesquisa, ou seja, “alguém que gera novas ideias sobre o currículo e sobre a aprendizagem, em vez de ser meramente uma ‘consumidor[a] da certeza e da tradição’” (EDWARDS, GANDINI E FORMAN, 1999, p. 164). Esse aspecto revela o caráter agentivo – autoral - da sua atuação enquanto educadora, com implicações não apenas na sua própria formação, mas também na inserção de novas perspectivas de ensino naquele ambiente escolar.