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CAPÍTULO 3 O JORNAL ESCOLAR COMO SISTEMA DE ATIVIDADE 65

3.1 A teoria de sistemas de atividade de Russell 66

3.1.2 Reproduzindo a dinâmica de um Sistema de Atividade Jornalístico 75

Ainda que saibamos serem diversificadas as motivações e os condicionamentos que definem suas linhas de atuação, pode-se dizer que o Sistema de Atividade Jornalístico, por sua natureza investigativa, seja especialmente propício a dinamizar a participação de seus sujeitos no “diálogo social”, em que os diversos discursos, julgamentos e entonações convivem de forma tensa e perturbada (BAKHTIN, 2002). Por isso mesmo, a reprodução desse sistema na escola por meio de um projeto de letramento multiplica para seus participantes – especialmente para os alunos – as situações de interação e, consequentemente, as relações dialógicas inerentes a ambos os sistemas.

Segundo Noblat (2000, p. 21) “um jornal é ou deveria ser um espelho da consciência crítica de uma comunidade em determinado espaço de tempo. Um espelho que reflita com nitidez a dimensão aproximada ou real dessa consciência. E que não tema jamais ampliá-la”. Ampliar essa realidade ou possibilitar que mais matizes, mais nuances, mais complexidades, mais discursos e vozes sejam aí retratadas é o que torna o jornalismo um instrumento a favor da consolidação da democracia. Conforme esclarece Melo (2003, p. 145), “é no bojo das democracias construídas pela Revolução Norte-Americana (1976) e pela Revolução Francesa (1789) que a liberdade de imprensa ganha legitimidade política,

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ensejando modelos que se reproduziriam em várias partes do mundo”. Entretanto, esse autor ressalva que, no Brasil, essa liberdade constitui um privilégio das elites nacionais, uma vez que a esmagadora maioria da população permanece à margem desse processo, pois “deixam de usufruir tanto da prerrogativa da livre expressão quanto do direito de ter acesso à informação que os habilita à plena cidadania e consequentemente à participação integral na vida democrática (MELO, 2003, p. 147).

Além disso, outra questão limitadora da democracia no trato da informação refere-se ao conteúdo ou à “pauta” em torno da qual são elaborados os jornais. Para Melo (1994, apud RODRIGUES, 2000, p. 214):

Uma constatação é a de que os grandes jornais e outros veículos jornalísticos geralmente estruturam sua cobertura no sentido de legitimar os núcleos de poder (...) O fluxo noticioso rege-se pela atuação das instituições hegemônicas e marginaliza os núcleos de arregimentação e mobilização comunitária. Tais entidades, evidentemente mais próximas da vivência dos leitores, ficam excluídas do fluxo noticioso, passando a figurar apenas quando surgem problemas de grande repercussão (greves, acidentes, catástrofes).

Isso nos remete a Barton e Hamilton (2000, p. 07), quando enfatizam que as práticas de letramento são modeladas por instituições sociais e por relações de poder, e que, por isso mesmo, alguns letramentos são mais dominantes, visíveis e influentes que outros. Nessa linha, Gee (1996, p. 9-10) defende que a lingua(gem) está inarredavelmente ligada à ideologia e, por isso, não pode ser analisada ou compreendida fora dela. Dessa forma, qualquer ação social humana (prática social) está inerentemente atrelada a teorias tácitas que fortalecem ou enfraquecem pessoas e grupos de pessoas.

Durante o projeto do jornal, não apenas o fluxo noticioso foi definido pelos próprios alunos, mas também a direção, o alinhamento desse fluxo. Em um contexto em que, geralmente, a hierarquia é bem marcada, havendo uma tendência para a monologização, representada pelas vozes dos sujeitos posicionados em uma posição dominante, no caso, direção e professores, os alunos puderam, de certa forma, desafiar essas relações de poder. Isso já ficou evidente no início do projeto do jornal, quando eu e a

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professora colaboradora pensávamos que o jornal iria girar em torno da problemática da biblioteca da escola, tema que havia sido definido pelos professores e direção para ser desenvolvido desde o início do ano. Entretanto, o curso seguiu por outro caminho, no qual os alunos agiram como timoneiros que iam rumando os objetos das matérias jornalísticas para questões que julgavam mais urgentes ou que pareciam movê-los de uma forma mais vigorosa. Essa motivação, como se verá mais adiante, envolvia quase sempre um engajamento pessoal traduzido seja pela vontade de denunciar, seja pelo desejo de questionar, reivindicar ou, simplesmente, de se fazer escutar.

Faraco (2006) nos lembra, citando as “forças centrípetas” aludidas por Bakhtin, que as vontades sociais de poder tentarão sempre estancar, por gestos centrípetos, o movimento centrífugo, por meio da submissão da heterogeneidade discursiva à monologização, ao estancamento do diálogo. A produção do Jornal Escolar, ao mobilizar um sistema de atividade jornalístico, orienta-se por um movimento centrífugo, uma vez que favorece a multiplicação de relações dialógicas, pois é da própria natureza desse sistema a busca de versões diversas, a procura pelas diferentes perspectivas, pelas posições antagônicas em relação a uma mesma questão. Assim, a reprodução desse outro sistema acaba por favorecer a subversão de poderes no sistema de atividade em que os alunos de fato atuam. Acostumados a cumprir determinações, a receber ordens, a seguir regras, sem espaço para questionar, os alunos inserem-se em um ambiente de grande heterogeneidade discursiva, cuja decorrência é a reflexão para a tomada de posição.

Por isso, concordo com Rodrigues (2000, p. 214), quando diz que a entrada dos diferentes gêneros jornalísticos na escola como objetos de ensino-aprendizagem cria “condições para que os alunos construam os conhecimentos linguístico-discursivos requeridos para a compreensão e produção desses gêneros, caminho para o exercício da cidadania, que passa pelo posicionamento crítico diante dos discursos”. Reproduzir um Sistema de Atividade Jornalístico na escola representa, portanto, uma oportunidade rica para democratizar não apenas a informação, mas a própria produção dela, permitindo a seus realizadores eleger os temas e as questões cuja divulgação lhes parece relevante, interessante ou necessário para sua realidade particular.

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De acordo com Russell (1997, p. 533), “um conjunto central de problemas na pesquisa atual sobre a escrita é analisar como os escreventes desenvolvem e exercem agência, identidade, voz – e Poder – em face do que parecem ser forças hegemônicas sociais ou linguagens sociais”49. Esse autor sugere, por meio da teoria da atividade de gênero que ele desenvolve, que

Alunos enquanto indivíduos sentem as contradições entre e dentro dos sistemas de atividade da escola e da sociedade como duplos impasses sobre se devem se envolver primariamente como consumidores de ferramentas (conhecimento) comodificadas em gêneros distantes de uma profissão ou disciplina, para se colocarem na periferia desses sistemas de atividade, ou se se tornam envolvidos ativamente na vida desse sistema por meio de uma participação intensa – jogando-se de cabeça por meio da leitura/escrita desses gêneros, para fazer a diferença tanto quanto para tirar uma nota50 (Ibid., p. 533-534).

O que estou sugerindo aqui é que, ao invés de estar na periferia de outro sistema de atividade, os alunos se tornem parte dele – mesmo que não em um sentido formal -, e não apenas leiam ou escrevam seus gêneros, mas também façam isso como ação social, ou seja, tendo um propósito/motivo outro que não a escolarização e buscando um resultado real além de uma nota. Acredito que os Projetos de Letramento são o caminho para reproduzir esses sistemas de atividade dentro do sistema de atividade da escola.

Reproduzir na escola novos sistemas de atividade com suas próprias práticas sociais por meio de projetos de letramento implica dizer que os reais interesses da vida dos alunos e os usos da escrita devem ser os dois parâmetros para a concretização do projeto. Segundo a publicação “Apprendre la citoyenneté avec la presse et la télévision”

49 No original: “One central set of problems in current writing research is analyzing how writers develop and

exert agency, identity, voice – and Power – in the face of what appear to be hegemonic social forces or social languages”

50 O autor refere-se, aqui, mais especificamente a estudantes universitários, os quais já se veem às voltas com

as especificidades de uma carreira potencialmente escolhida. Entretanto, creio ser possível expandir a assertiva para alunos de ensino médio e fundamental, especialmente no Brasil, onde não há um período de tempo institucional próprio dedicado a preparar os alunos para a escolha de uma carreira, tal como ocorre em outros países. No original: “(...) individual students feel the contradictions between and among activity systems of school and society as double binds about whether to involve themselves primarily as consumers of a discipline’s or profession’s commodified tools (knowledge) in distant genres, to place themselves on the periphery of its activity system, or to become involved actively in its life through deeper participation – to throw themselves into it through the reading/writing of its genres, to make a difference as well as make a grade”.

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(DUPOIZAT et al, 1996, p. 71), as pessoas se interessam primeiramente por aquilo que lhes diz respeito, que é próximo de si, sendo isso o que, em jornalismo, significa a chamada “lei da proximidade”. Portanto, no caso do Sistema de Atividade Jornalístico-Escolar reproduzido, foram os estudantes que decidiram sobre o que escrever, quem seriam os leitores, quantas sessões o jornal teria, quais fotos e quais manchetes seriam apropriadas para seus propósitos, qual design preferiam etc. Da mesma forma, a grande maioria dos gêneros eram escritos ou envolviam a escrita e a leitura de textos, os quais eram, em grande parte, relacionados à vida, à rotina e à realidade dos alunos.