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6 MEMÓRIAS DE VIAGEM: COMPARTILHANDO LIÇÕES

6.2 LIÇÕES APRENDIDAS COM A VIAGEM: CONTRIBUIÇÕES PARA O

6.2.2 Aprendizados para as pesquisas qualitativas em saúde com enfoque

Entre aprendizados e contribuições já referidas nos capítulos anteriores, destacamos o próprio modo de fazer a pesquisa. A ideia de campo como espaço em movimento e o pesquisador, na condição de sujeito participante, aqui metaforizado na imagem de pesquisador-viajante, intrínseco na reflexividade, certamente, trazem aportes para pesquisas qualitativas, em especial, fortalecendo-as na área da saúde.

A reflexividade ainda é uma abordagem pouco utilizada no Brasil. Há poucos estudos nesta perspectiva e, nas pesquisas em saúde, são ainda mais raros. Talvez, a busca incessante pela neutralidade – que objetiva colocar o pesquisador como observador distante de seu “experimento” - na maioria dos estudos publicados, na lógica do produtivismo científico-acadêmica, seja o principal desafio deste tipo de estudo.

No entanto, as poucas iniciativas publicadas, numa perspectiva de abordagem participativa e interventiva, inspiraram-nos à realização deste estudo e nos provocaram a ter coragem de experimentá-las. Salientamos que esta pesquisa, apesar da busca incessante para desprender-se da rigidez, não deixa de garantir o rigor necessário para investigações em saúde.

Para Minayo e Guerriero (2014), a reflexividade inclui o pesquisador na dinâmica dos grupos sociais que afetam o investigador, o seu estudo que, “por sua vez, afeta o campo e a vida social” (p. 1104), de modo a contribuir com o campo pesquisado e com o próprio ato de pesquisar.

Em pesquisas de cunho participativo, com características também avaliativas, e na perspectiva de cogestão, o processo de análise incluiu também o próprio ato de pesquisar, e o pesquisador e suas práticas também foram postos em análise, já que estão implicados no processo e ambos passam pelas transformações promovidas (PASSOS et al., 2008).

De igual modo, este estudo contribui para repensar a lógica acadêmico-produtivista. Pois, ainda segundo Minayo e Guerriero (2014), há uma tendência de buscar universalizar e hegemonizar as pesquisas, como nos moldes biomédicos.

Inclusive, o presente estudo necessitou reorganizar-se por várias vezes - novamente aqui cabe a reflexividade - para encaixar-se em “padrões” pré-estabelecidos. Essa crítica não deve ser considerada como enfrentamento às normas previstas. Contudo, há uma necessidade de refletir sobre o papel da Universidade enquanto espaço de criticidade e criatividade, que não aprisione os pesquisadores dentro de modelos pré-moldados.

Poderíamos dizer, em resumo, que o labor científico caminha sempre em duas direções: numa, elabora teorias, métodos, princípios e estabelece resultados; noutra, inventa, ratifica seu caminho, abandona certas vias e encaminha-se para outras direções (MINAYO; GUERRIERO, 2014, p. 1104).

Isto também vai ao encontro das ideias de Boaventura de Sousa Santos (2006), ao destacar que a produção do conhecimento tem relação com o momento histórico, em uma dada sociedade. Por isto, a ideia de que pressupõe, de que “a ciência é feita no mundo, mas não é feita de mundo”, não condiz com as necessidades sociais atuais, as quais requerem proatividade e participação ativa na sociedade, na defesa de seus próprios direitos.

Assim, este estudo também abre margem ao debate sobre a pluralidade das pesquisas em saúde, como prática científica e social, pois “as práticas sociais são afetadas pelo constante reexame a que estão submetidas, com base em informações produzidas sobre elas” (HOELZ; BOTELHO, 2016, p. 281).

Desta forma, o percurso metodológico descrito demonstrou coerência com o modo de fazer das pesquisas participativas, ou seja, daquelas em que os sujeitos são produtores de conhecimento e não sujeitos passivos, dos quais se coletam os dados. Isto tem forte relação com o objeto central do estudo - a autonomia dos sujeitos – visto que, para o exercício desta, a participação é inevitavelmente necessária.

E, corroborando isto, sabe-se que “a validade da pesquisa qualitativa deve estar relacionada com o objetivo da pesquisa proposta pelo investigador” (OLIVEIRA; PICCININI, 2009, p. 93) e na transparência com que a pesquisa é conduzida (CAMPOS, 2011).

Cabanillas e Böschemeier (2014) destacam a ideia de produção e não de colheita de dados enquanto momento de “desconstrução dos microprocessos que fazem da produção de conhecimento um procedimento meramente extrativo” (p. 667).

Os sujeitos deste estudo participaram de sua produção e, embora não constem seus nomes como colaboradores do trabalho – isto seria incorrer em uma contravenção do ponto de vista das normas que regem os comitês de ética em pesquisa, uma vez que se romperia com o anonimato dos sujeitos – eles, de fato, são colaboradores, pois os dados foram coproduzidos, as narrativas elaboradas pelos pesquisadores foram apreciadas em leitura coletiva, modificadas e aprovadas junto aos próprios participantes do estudo.

As pesquisas participativas, além dos pressupostos apresentados anteriormente, caracterizam-se pelo respeito aos sujeitos participantes, valorizam as contribuições destes e retornam para a comunidade (STACCIARINI, 2014) como contribuição social do estudo.

A produção de narrativas também contribui para pesquisas qualitativas em saúde, em que “eu entrei no texto em primeira pessoa”, no capítulo 4 “para tornar mais verdadeira a própria narrativa” (COLOMBO, 2016, p. 18). Para Colombo (2016), esta técnica é usada para que o autor aprofunde sua compreensão sobre os fenômenos e torne sua experiência pessoal fonte confiável de informações.

As narrativas do capítulo 4, apresentadas em cada encontro subsequente, e as do capítulo 5, apresentadas em cada encontro de transição do GEPS, ratificam o que, nas pesquisas deste tipo, segundo Campos (2011), adentra no espaço político e estimula à participação.

Para essa autora, a elaboração das narrativas possibilita que, num dado momento, as pessoas têm uma concepção ainda incipiente sobre determinadas questões, posteriormente, quando da leitura das narrativas, elas apontam uma análise mais detalhada sobre o fenômeno do primeiro debate. Essa mesma experiência ficou evidente no GEPS, em especial, nos encontros de transição.

No entanto, é claro que o pesquisador ocupa uma posição privilegiada na escrita das narrativas, o que não é uma limitação do método, mas uma característica do protagonismo que lhe é atribuída pelo lugar de propositor do estudo.

Neste sentido, em pesquisas que envolvem reflexividade, deve-se assumir e não ocultar a participação na escrita das narrativas (COLOMBO, 2016), pois o que determina o rigor em metodologias qualitativas é o desenho sistematizado e consciente da pesquisa, as estratégias durante a produção e análise dos dados e sua descrição aprofundada (PEARCE, 2012).

Para Maluf (1999), o que faz sentido, numa dada narrativa, é buscar os sentidos e os significados dos diálogos e da situação narrada. Nesta perspectiva, buscamos expressar, nas narrativas apresentadas, não apenas o que foi dito, mas aquilo que foi expresso, dentro de um

contexto de diálogos no próprio GEPS.

E, por fim, tomamos de Morin (2003) a noção de ciência com consciência, para ressaltar que é preciso fazer pesquisas que provoquem transformações sociais, seja nos participantes diretamente envolvidos no estudo, na relação da rede de cuidados com os sujeitos participantes, seja também entre pesquisador e participantes, sem abrir mão da perspectiva de aplicabilidade do estudo em outras realidades.

Neste sentido, faz-se necessário reconhecer o dever ético e político que temos como pesquisadores, ainda mais na condição de professor de universidade pública e profissional de saúde, o que requer mais que pesquisar para atender metas de indicadores de produção institucionais, pesquisar em respostas às necessidades sociais que nos são postas, cotidianamente. “Em geral, quem pesquisa nesses campos não busca somente compreender, mas também transformar, propor alternativas, buscar soluções” (CAMPOS, 2011, p. 1277).

Deste modo, ressaltamos também o ponto de vista ético das instituições, como bem lembrou Morin (2003, p.30), “as ciências ainda não têm consciência de que lhes falta uma consciência” e, com isso, ainda nos prendem à eliminação de subjetividades, especialização em massa e ao reducionismo que não se insere na complexidade dos sujeitos e de suas experiências com a saúde.

Essas reflexões, mais que lições aprendidas durante a produção do GEPS, com a finalidade de estimular o exercício da autonomia de pessoas vivendo com diabetes, parecem ser também de grande valia para novos aprendizados e para a realização de outras pesquisas desta natureza, para o SUS, em especial, – diante de contextos atuais de ameaça de desmonte - e das demais políticas públicas que asseguram direitos humanos constitucionais, no Brasil.