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2 O PESQUISADOR COMO VIAJANTE

3.1 ESCOLHENDO O QUE LEVAR NA BAGAGEM OU CARACTERÍSTICAS

PESQUISA: REFLEXIVIDADE, IMPLICAÇÃO DO PESQUISADOR E PESQUISA

PARTICIPATIVA

Partimos da reflexão sobre as duas últimas pesquisas em que o pesquisador esteve envolvido e o seu esforço na busca pela neutralidade para, logo adiante, entendermos que isso não era possível, haja visto ser algo intrínseco à vivência do pesquisador. Então, tomamos a liberdade de narrar, na primeira pessoa do singular, grande parte deste texto.

A primeira pesquisa relatada trata-se da dissertação do mestrado, quando meu intuito era de identificar estratégias que contribuíssem para mais autonomia e qualidade de vida de pessoas com diabetes, a partir de suas percepções, no âmbito da promoção da saúde, na Estratégia Saúde da Família.

No entanto, devido à complexidade de compreender a produção da autonomia, surgiram os grandes desafios e questionamentos: (i) Como identificar a autonomia nas pessoas? (ii) Qual a minha amostra para conseguir compreendê-la? Sim! Eu imaginei que deveria ser algo grande, uma amostra grande e, então, pensei nos métodos quantitativos, visto que são importantes. No entanto, como falar de autonomia quantificando pessoas e suas experiências? Isto não seria possível! Tinha que ser qualitativo! Mas, qualitativo? Como qualitativo?

Estas inquietações foram angustiando-me de tal modo, que resolvi fazer triangulação de métodos. Então:

1. Entrevistei, por meio de questionário fechado, 65 pessoas (todas) que viviam com a diabetes em determinado território de saúde e, na análise dos dados, usei estatística descritiva.

2. Destas, selecionei seis sujeitos para entrevistas não estruturadas, sendo três que possuíam o maior número de complicações da diabetes e outros três, com o menor número de complicações. Nesta fase, usei a análise de conteúdo proposta por Laurence Bardin (2009).

3. Por fim, resolvi trazer à pesquisa algo que fosse mais próximo do meu sentimento diante da autonomia: uma roda de conversa com todos os participantes das duas etapas anteriores de pesquisa. Gravei em áudio, assim como fiz a análise de conteúdo.

A terceira etapa foi a mais relevante de todas. Não usei uma técnica específica, guiada por manuais metodológicos, e se constituiu de um espaço de partilha, uma roda na qual as pessoas se posicionaram diante das discussões e, da qual, surgiram novas ideias e emergiram novos pressupostos a serem pesquisados, sendo a proposta de Grupos Estratégicos

de Promoção da Saúde, com foco no exercício da autonomia, uma das ideias que, posteriormente, passou a fazer parte do objeto de estudo no doutorado.

O que me fez questionar a neutralidade do pesquisador perseguida nas duas etapas anteriores do estudo? A roda reposicionou-me subjetivamente quanto à compreensão de minha impossibilidade de, naquele momento, ser “neutro” e evidenciou a minha implicação enquanto pesquisador. Eu não era apenas um pesquisador, mas também o enfermeiro da equipe de saúde da família do território, também campo da pesquisa.

Os sujeitos ali entrevistados eram usuários da unidade de saúde, meus “pacientes”, e já tínhamos vínculos afetivos, nas dimensões do cuidado e do vínculo institucional, há mais de dois anos. Essa convivência também me afetava como sujeito que lida com pessoas que vivem com a doença. Embora eu não tenha diabetes, lidar com estas pessoas sempre me chamou a atenção. Além disso, meus avós maternos faleceram de diabetes, fato que representa mais uma implicação com minha própria pesquisa.

A segunda pesquisa a que me referi é esta, sendo parte do doutoramento, e posso citar dois grandes desafios: a devolutiva institucional para um mesmo grupo de sujeitos e a nova implicação do pesquisador. Pois, neste novo cenário, já não sou enfermeiro da equipe, e muita coisa mudou. No momento, ocupo a posição de docente universitário em um campus localizado no mesmo município do estudo e, agora, por ser professor, meu maior desafio é desprender-me da relação de hierarquia que pode ter sido construída com a população. Mas, seria possível desprender-se desta hierarquia? Ela só é possível a partir da educação emancipadora.

Mais uma vez, senti-me reinserido em um campo outrora conhecido e, agora, parecia desconhecido. Fazer e desfazer a própria bagagem foi inevitável. Considerando o componente educacional como foco central da promoção da saúde, passei a questionar-me sobre a relação entre autonomia e opressão, e interroguei-me naquele contexto: quem seria o opressor?

Para Paulo Freire (2014), em sua obra Pedagogia do Oprimido, o opressor hospeda- se, muitas vezes, dentro de nós mesmos e, somente após esta descoberta, é possível emergir a pedagogia de sua libertação (FREIRE, 2014). No mesmo raciocínio, a épica citação de Carl Jung (2001), discípulo de Freud, “quem olha para fora sonha, quem olha para dentro desperta” suscita-me a necessidade de olhar para dentro e descobrir-me reabitando aquele campo. Era indispensável, inclusive, desprender-me de muitas coisas idealizadas na pesquisa anterior, assim como recuperar outras importantes de serem resgatadas.

Vivemos num tempo atónito em que, ao debruçar-se sobre si próprio, descobre que os pés são um cruzamento de sombras, sombras que vêm do passado que ora pensamos já não sermos, ora pensamos não termos ainda deixado de ser, sombras que vêm do futuro que ora pensamos já sermos, ora pensamos nunca virmos a ser (SANTOS, 2010, p. 13).

Habitar um campo previamente conhecido não o torna um espaço de exploração mais fácil. Ao refletir sobre a entrada em campo pelo pesquisador, Souza (2003) compara com o ato de habitar uma ilha desconhecida e justifica que, embora o projeto tenha sido previamente estruturado, nem tudo o que se passa com o pesquisador é passível de ser registrado. Para a autora, deslocar-se do campo teórico (textual) para o campo prático (aproximação física) é permanentemente imprevisível e, aos poucos, amadurecemos a ideia de lidar com as incertezas.

Deixar-me afetar pelo campo, certamente, seria uma forma de descobrir o universo das pesquisas participativas e adotar uma posição epistemológica em que a objetividade não implique neutralidade e o rigor, rigidez. Nesta perspectiva, Santos (2010) resgata a crítica em relação ao paradigma dominante e totalitário das pesquisas, negando o caráter racional, que não segue as regras metodológicas das ciências exatas, pressupondo observação/experimentação para um conhecimento profundo e rigoroso da natureza, já que o conhecer significa quantificar. Porém, a própria precisão quantitativa do conhecimento é limitada quanto à sua estrutura e, seus limites, portanto, são qualitativos (SANTOS, 2010).

Edgar Morin (2003), em sua obra “Ciência com Consciência”, refere-se a estes limites como um paradigma da simplificação que, dentre outros, é regido pelos princípios das leis, invariâncias e ordens, bem como da ideia de que “só há ciência do geral”. Assim, a ideia estruturalista da ciência busca a eliminação do ser e a valorização da existência formalizada e quantificada, rompendo sujeito e objeto. E, ao contrário, o pensamento complexo enfrenta a contradição, incluindo o observador na observação e defesa de verdades provisórias, não teórico-absolutistas (MORIN, 2003).

Na perspectiva da complexidade proposta por Morin (2003), consideramos que a empatia não era suficiente para captar a percepção sobre a autonomia. Embora não seja possível ocupar exatamente o lugar de alguém que vive com diabetes, no campo, eu precisava ocupar o espaço de quem convive com ela – ser afetado – e não me colocar no lugar de alguém – empatia.

Neste misto de sentimentos e do “ser afetado”, compreendi que a minha intenção era experimentar a vivência do grupo e compreender como ela se dava na dinâmica da vida dessas pessoas. Também, ao considerar que inúmeros grupos de pessoas afetadas pela

diabetes necessitam de serem melhor conduzidos para o estímulo da autonomia propor políticas que favoreçam estas estratégias no SUS, sendo esta a maior contribuição científica e social deste estudo.

Sobre a reflexividade e o ser afetado, por mais que eu olhe no espelho e veja minha face direita aparecer no lado esquerdo, quando paro e olho bem para ele, ali, não vejo outro senão eu mesmo. Sobre isto, Boaventura também retoma a discussão sobre termos um sistema visual instável e passível de flutuações na percepção visual (SANTOS, 2010).

Neste sentido, Morim (2008) acrescenta:

Só percebemos o real através da representação. Esta imagem mental se projeta e identifica com a realidade exterior no ato da percepção, mas se duplica e torna-se fantasia no ato da rememoração. A representação rememorada flutua de modo espectral num universo duplicado como uma fantasia, suscitado pelo espirito, que adere ao universo da experiência perceptiva sem o apagar [...] (p. 122).

O que quero dizer com esta relação entre reflexos e refração é que não existem identidades estáveis e que “nenhuma investigação ocorre independente do investigador” (HOELZ; BOTELHO, 2016). A pesquisa é, portanto, uma forma de representar o real, sabendo-se que existem outras formas de representar o mundo, como a relação entre politica e ciência, ética, vida e ideais (ALMEIDA, 2017). Aliás, o reflexo pode existir independente do espelho, diante de um plano, qualquer que seja, e esta inserção no campo é fundamental para que o pesquisador seja afetado.

[...] A reflexividade é orientada para colocar em primeiro plano a dimensão do reflexo, isto é, uma hipótese essencialista que declara a existência de uma ligação unívoca e necessária entre representação e realidade, ligação que deve ser trazida para primeiro plano e traduzida na linguagem da ciência – a dimensão da reflexão – isto é, a atenção para o que se faz e como se faz, a fim de aumentar a autoconsciência e o real conhecimento do mundo (COLOMBO, 2016, p. 18).

Ressalto que, para mim, o processo de identidade do “ser afetado” perpassou por um longo caminho, com idas e vindas, até que se concretizasse em forma de escrita. O afeto, aqui, passa a ser entendido como o constante reexame e o reposicionamento do pesquisador no campo e isto, por si só, implica em minha não-neutralidade. Para Favret-Saada (1990), ser afetado não nos transmite nada sobre os afetos dos outros, mas “realiza ou modifica seu próprio estoque de imagens, sem, contudo, instruir-me sobre aqueles de meus parceiros” (p. 159). Ser afetado me permitiu, portanto, enxergar as pesquisas de uma forma diferente do habitual.

É nesta perspectiva da reflexividade, do ser afetado, que questiono: o que é a autonomia senão a própria vida? Autonomia não é liberdade, não é independência, não é um conceito concreto. A autonomia é construída ao longo da vida das pessoas (SILVA, 2014). Assim, os princípios da reflexividade passam a fortalecer nossa própria autonomia nos rumos da pesquisa atual.

Entende-se que o paradigma emergente das pesquisas atuais requer um conhecimento “compreensivo e íntimo que não nos separe e, antes, una-nos pessoalmente ao que estudamos” (SANTOS, 2010, p. 85). A reflexividade se aplica ao contexto social estudado, uma vez que é o caminho para o pesquisador analisar, questionar e, quando necessário, reposicionar-se na pesquisa (GUILLEMIN; GILLAN, 2004).

Essa reflexividade poderia ser articulada à busca da “ciência da inteireza”, citada na obra “Ciências da Complexidade e Educação”, de Maria da Conceição de Almeida (2017), em que os sujeitos estão implicados, tanto quanto o autor, com as narrativas produzidas, sendo co-construtores da realidade.

Deste modo, sem afastar-se da disciplina e do rigor, neste estudo, o objeto da reflexividade é, justamente, “a capacidade específica do ser humano de fazer de si mesmo e de suas ações objeto de análise” (COLOMBO, 2016, p. 16). Além disso, a reflexividade imerge o pesquisador na dinâmica dos grupos sociais e a interação dialógica afeta o próprio investigador, o seu objeto de estudo, o campo e a própria dinâmica social (MINAYO; GUERREIRO, 2014).

Desta maneira, a reflexividade se expressa com o olhar retrospectivo. Neste aspecto, é possível perceber que o meu reposicionamento enquanto pesquisador, durante os encontros do GEPS, com foco na autonomia, possibilita avaliar e interpretar as próprias ações na condução de cada encontro, justificando a relação entre pesquisa participativa, reflexividade e o ser afetado no campo pesquisado.

Neste estudo, a reflexividade seguiu duas tendências: a reflexividade romântica e a reflexividade crítica. Assim, na tendência romântica, demos ênfase à necessidade de introspecção para o autoconhecimento do pesquisador, com “uma escrita vivida, que encrava na intimidade, que interroga a experiência pessoal e favorece um percurso de amadurecimento” (COLOMBO, 2016, p. 18). Ela estará evidente, especialmente, nas narrativas de cada encontro – Diários da Viagem: as narrativas dos encontros do GEPS.

Na tendência crítica, também sustentada na vertente realista do que ocorreu no campo e na autorreflexão, há a entrada do autor não apenas como sujeito afetado, mas como “expert”. Esta tendência, evidente na apresentação dos resultados e discussão deste estudo,

nada mais é do que garantir a confiabilidade “do texto baseada em citações aprendidas, mostrando o caráter “incomum” de seu autor” (COLOMBO, 2016, p. 18). Por isso, a tendência crítica está mais evidente nas narrativas dos três eixos temáticos – Preparando o regresso da viagem: os três eixos temáticos e a análise compartilhada entre pesquisador e GEPS.

Contudo, a tendência da reflexividade, romântica e crítica, ora apresentada, não foi um processo antecipatório. Este rumo na reflexividade surgiu na análise da imersão em campo e reelaboração permanente dos percursos desta pesquisa. Para essa construção dialógica, optamos pela pesquisa participativa.

Chizzotti (2006) mostra a pesquisa participativa como estratégia de mudança social na qual a pesquisa é um meio para essa mudança efetiva, com a colaboração mútua dos sujeitos que a elaboram e trabalham. Neste caso, a pesquisa participativa constitui-se como prática social.

A partir da década de 1960, a pesquisa participativa caracterizou-se como oposição a uma pesquisa positivista e estruturalista. Ao criticar o rigor matemático, Santos (2010) argumenta que se trata de “um rigor que quantifica e, ao quantificar, desqualifica; um rigor que, ao objectivar os fenômenos, os objectualiza e os degrada; que, ao caracterizar o fenômeno, os caricaturiza. É, em suma e finalmente, uma forma de rigor que, “ao afirmar a personalidade do cientista, destrói a personalidade da natureza” (SANTOS, 2010, p. 54).

Essa oposição decorre da busca da objetividade e neutralidade comum nas pesquisas estruturalistas, as quais destituem o autor-sujeito (ALMEIDA, 2017). “Diferentemente do que é anunciado (...), os cientistas olham o mundo a partir de um observador constituído por sua subjetividade, suas experiências de vida, seus saberes acumulados, sua cultura, sua história pessoal” (ALMEIDA, 2017, p. 18). Em se tratando de cultura, Morin (2007) ressalta que é constituída pelo conjunto de

“(...) hábitos, costumes, práticas, savoir-faires, saberes, normas, interditos, estratégias, crenças, ideias, valores, mitos, que se perpetua de geração em geração, reproduz-se em cada individuo, gera e regenera a complexidade social. A cultura acumula o que é conservado, transmitido, aprendido e comporta vários princípios de aquisição e programas de ação. O primeiro capital humano é a cultura. O ser humano, sem ela, seria um primata de mais baixo escalão” (p. 35).

Considerando que o objeto de nossa pesquisa trata-se da autonomia de pessoas vivendo com diabetes, nada melhor do que as próprias pessoas, investidas de suas histórias de

vida, hábitos, costumes e cultura, para elaborar as propostas mais ajustadas às suas condições concretas de existência.

Mais do que isso, a pesquisa participativa estimula a emancipação dos sujeitos, os quais passam a ser ativos no processo e não objetos de trabalho do pesquisador (FLEURI, 2002; THIOLLENT, 2011; STRECK; ADAMS, 2014). Assim, o processo participativo, neste estudo, vai “...muito além de estar presente. Participar significa tomar parte no processo, emitir opinião, concordar/discordar, enfim, ser um agente ativo” (CORDIOLI, 2010, p. 23). Mas, como operacionalizá-lo na prática?

Bordenave (1983) indica duas bases complementares para a participação: uma base afetiva e uma instrumental. Aquela está relacionada ao prazer em fazer coisas com os outros e esta, com a ideia de que fazer com outros é mais eficaz e eficiente do que fazer sozinho. “Participação é fazer parte, tomar parte ou ter parte” (BORDENAVE, 1983, p. 22). Todavia, participar não é apenas se fazer presente, mas libertar-se da neutralidade e buscar a emancipação em si e nos outros, além de transformar o contexto no qual está inserido, se assim for o seu desejo.

E, se a ação participativa é também a (re)construção social, não é um ato que se resolva individualmente, mas em sociedade. Trata-se de um ato social em busca da hegemonia (GRAMSCI, 2010). Para Colombo (2016, p. 20), “o real é real enquanto partilhado, “público”, e o reconhecimento de tal natureza – e nisto consiste, principalmente, a reflexividade – só pode surgir a partir de múltiplas vozes, do diálogo”, da participação construcionista enquanto produto social.

No contexto desta pesquisa, tanto sou parte dela quanto os sujeitos pesquisados. Afinal não coletamos dados, mas os produzimos em ato. Somos todos participantes, e o ato de participar decorre de reflexões e ressignificações de conhecimentos, valores e possibilidades de mudanças.

Neste estudo, a Metodologia participativa, a reflexividade, a abordagem qualitativa e a autonomia, inevitavelmente, estão articuladas por caracterizarem a pesquisa e comporem a bagagem principal para esta viagem.