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4 DIÁRIOS DE VIAGEM: AS NARRATIVAS DOS ENCONTROS DO

4.1 CONHECENDO UM POUCO SOBRE A GRÉCIA QUE QUEREMOS

4.2.2 O peixe nem sempre morre pela boca

No dia 16 de maio de 2017, ocorreu o segundo encontro do Grupo Estratégico de Promoção da Saúde do sujeito que convive com diabetes. Iniciamos o encontro às 15 horas e contamos com mais três integrantes no grupo, como haviam solicitado os(as) agentes comunitário de saúde. Esses já tinham manifestado interesse em participar, mesmo não comparecendo ao encontro anterior. Como de práxis, é importante acolher os novos participantes, recapitular as pactuações do grupo para, então, darmos continuidade. Agora, com 16 integrantes.

A fim de torná-los corresponsáveis pelo cuidado do outro, novamente, achamos importante que os novos participantes relatassem como fora a descoberta da diabetes em suas vidas.

Após esta breve aproximação, fizemos a leitura dos principais pontos identificados no encontro anterior, no intuito de resgatar a memória, em forma de narrativa. Dos

desdobramentos do referido encontro, observou-se que a alimentação adequada era um dos enfrentamentos mais complexos encarados pelo grupo.

Então, o desejo por certos alimentos e o não controle desse desejo, atrelados à frase dita por Atenas no encontro anterior, a saber: “Diabetes é como um peixe em um rio de pesca, morre pela boca”, possibilitaram iniciar o encontro com essa metáfora. Mostrei a foto de um peixe preso pelo anzol e perguntei ao grupo: “para vocês, o que significa isto?”

O “peixe que morre pela boca” está carregado de simbologias para as pessoas que convivem com a doença. Um animal vertebrado, aquático, atraído por uma isca que esconde um anzol dominador: “o peixe que morre pela boca”. Embora simbolizando a opressão do “estar submetido ao desejo pelo alimento”, parece coexistir, algo como um ser independente da imaginação do sujeito. Se “a diabetes é como um peixe”, não seria o sujeito o próprio peixe?

Lembrei-me do Filme “Procurando Nemo”. Dori, melhor amiga de Nemo, e um cardume de peixes estão sendo pescados por uma grande rede de pesca. Dori está presa em meio a todos os peixes. Nemo e seu Pai presenciam tudo. No entanto, o pai de Nemo não parece se preocupar com o coletivo, apenas com Dori, e se desespera para salvá-la, sem sucesso. Motivados pelo ato de salvar Dori, Nemo e seu pai pensam no trabalho em equipe, de modo que se todos tentassem ser salvos, Dori também seria – “Nadem para baixo, nadem para baixo!”.

Dando continuidade, o grupo parece não entender a princípio, mas, posteriormente, todos seguem a orientação e nadam para baixo. A cena fica tensa, a rede sobe e parte dos peixes fica fora da água por alguns segundos, ofegantes, prestes a morrer. Entretanto, com todos nadando para baixo, o mastro do navio não suporta o peso da rede e se rompe. Todos os peixes ficam livres (MOTIVACIONAL, 2015).

A imagem de morrer pela boca tem grande representação para quem tem diabetes. Como é uma doença metabólica, os alimentos consumidos são como drogas que têm dose certa para serem terapêuticas ou veneno. Então, seria possível de o apoio mútuo, em grupo, favorecer um melhor resultado no controle da doença?

Resolvi, então, solicitar que cada um expressasse o que costuma fazer para controlar o desejo de comer certas coisas. Assim, a troca de experiências passou a enriquecer o grupo e o seu foco central: a autonomia pessoal.

Algumas falas perpassaram pelo sentimento de impotência e culpa por não seguir uma alimentação mais adequada, enquanto outros declaravam não seguir uma dieta, conscientemente. Isto me fez levar à reflexão o conceito de autonomia, no sentido de agir de

forma livre e esclarecida. No entanto, é preciso levar em consideração a responsabilidade pelo que se faz.

Por outro lado, a importância de controlar o desejo que gira em torno de ter opções a serem seguidas e as imposições sociais, muitas vezes, prendem-nos em costumes e padrões. Daí a importância de conhecer as opções disponíveis e conseguir escolher o caminho “mais adequado” para cada situação.

O diálogo seguiu entre os participantes do grupo, que comentavam sobre a rotina alimentar e o que costumavam fazer no dia a dia para lidar com os desejos. Até que a discussão centrou-se nos alimentos ligth, diet e zero. Logo, Véria alegou que o sabor diet era diferente, enquanto outros diziam não sentir a diferença significativa de sabor.

Como o assunto gerou destaque, perguntei à Véria, que disse sentir o sabor diferente, se aceitaria o desafio de, no próximo encontro, provar alguns tipos de geleias, de mesma marca e sabor, para identificar quais seriam diet e ligth, apenas com o paladar. O desafio foi aceito.

Foram comuns também os comentários sobre o sabor doce dos alimentos. Ficou notório que os participantes relacionam o “pode e não pode” ao nível de doce dos alimentos. Quanto mais doce, mais perigoso para a diabetes. Quanto menos doce, melhor. Inclusive, o sal, por ser oposto ao doce, supostamente, poderia tratar a diabetes? Esta foi uma inquietação de Micenas.

É importante o reconhecimento que os participantes têm sobre sua doença. Muitas vezes, os próprios profissionais de saúde limitam a orientação sobre não consumir “doce” quando, nem sempre, a glicose está diretamente relacionada ao sabor. Massas, por exemplo, podem ser salgadas e, mesmo assim, terem grande quantidade de glicose em sua composição. No imaginário dos participantes, o doce e o salgado são antagonistas no controle da diabetes.

Por esta razão, segui a dinâmica mostrando algumas placas com: brigadeiro, biscoito e batata frita. Talvez, parecesse tortura, mas o objetivo era captar as sensações em relação ao desejo de coisas bastante calóricas. Neste momento, Rhodes disse que, “alguma vez na vida, podia sim comer aquilo”.

O consumo de qualquer alimento não pode ser considerado como inadequado para todos, visto que pessoas com o índice glicêmico controlado poderão fazer uso de alguns destes alimentos, com moderação. Por outro lado, pessoas com o índice glicêmico “descompensado” não devem consumi-los, até o adequado controle. Afinal, quem tem diabetes não deveria ser considerado um peixe que “morre pela boca”.

No entanto, saber exatamente como está o controle glicêmico perpassa por outra questão que requer autocuidado e autoadministração da diabetes: monitorar a glicemia. Assim, seguimos para este tema, também definido pelo grupo no encontro anterior.

Quando o tema foi anunciado, percebi as várias conversas paralelas: “o meu deu tanto semana passada” (FIRA); “Quando eu vou fazer o exame, nem janto para ver se dá baixo” (ZAKYNTHOS). Isto fez-me lembrar do filósofo Demóstenes quando, em seus escritos, citou: “É extremamente fácil enganar a si mesmo, pois o homem, geralmente, acredita no que deseja” 3. Desta maneira, ao não se alimentar na noite anterior, talvez tenha sido uma tentativa de não mostrar a realidade ao profissional de saúde. Há relação com o pouco vínculo: profissional de saúde versus sujeito “paciente”?

E quando a glicose está baixa? Geralmente, nem é considerado. Mas, quem tem diabetes necessita de estar atento aos extremos. Por isso, mostro uma placa constando o valor 250mg/dl e outra, 60mg/dl. Então, pergunto ao grupo o que acham dos valores. Tanto falamos em medir a glicemia, em valores, em números, e me parece possuir pouco significado para os participantes. Observei que as pessoas anotavam quando dava alto ou baixo, sabiam que estava alto ou baixo; mas, dali, não provocava nenhuma mudança. Também, observei que apenas seis participantes realizam o teste em casa.

Sugeri, então, que algum dos participantes, voluntariamente, explicasse como faz o teste de glicemia capilar: “Eu faço!” (MYKONOS). A participante, rapidamente, anunciou o desejo de compartilhar sua experiência com o grupo.

Disponibilizei, em uma mesa no centro da roda, um aparelho glicosímetro, lancetas, fitas teste, algodão, luvas e álcool. Mykonos, então, posicionou-se na mesa, fez a limpeza do dedo com algodão e álcool, colheu a gota de sangue: ”E não faz aquele barulhinho não? Faz... Olhe! É diferente, o aparelho. Deu 255md/dl... Está alta. Mas, eu não tomei a insulina de manhã ainda hoje. Porque vou tomar só à noite. Por isso! Não tomei porque acabou. Tinha que ter dado 180, não é?” (MYKONOS).

Enquanto pesquisador e participante daquela intervenção, notei que a questão do “me controlar” e “não me controlar” parece ser o foco da discussão. Observei que, nas falas, a autonomia é expressa suavemente, mostrando ainda a fragilidade existente no diálogo com os profissionais de saúde, na questão das opções e imposições, do “obedeço”, talvez alienado, e do desejo pelo doce. Assim, a capacidade de compreender, controlar desejos, escolher

3 Célebre frase de Demóstenes (orador e político Grego, de Atenas - a.C.) que se tornou amplamente difundida no mundo.

livremente e com responsabilidade, mostra que nem sempre o “peixe morre pela boca” ou a isca é uma opção.

Assim como no filme “Procurando Nemo”, Dori não estava em busca da isca quando foi pescada, veio-me - à mente, novamente, Paulo Freire em seu escrito sobre o oprimido. O oprimido diante da isca/alimento e de seu opressor (anzol/desejo). Mas, “se os homens são produtores desta realidade e se esta, na “inversão da práxis”, volta-se sobre eles e os condiciona, transformar a realidade opressora é tarefa histórica, é tarefa dos homens” (FREIRE, 2014, p. 51).

Após o teste de glicemia, houve certo alvoroço, pois todos queriam realizar o exame: - Ah! Sim... o procedimento! E a sugestão de cada um ser orientado a respeito de como monitorar a glicose em casa surgiu imediatamente. Assim, resolvemos agendar este momento de modo individualmente, para que pudesse ser melhor aproveitado.

Também, distribuímos as carteirinhas de identificação que haviam sido confeccionadas. Senti grande empolgação de todos. Inclusive, fizemos o agendamento da orientação sobre glicemia capilar, pactuando que seria ainda na mesma semana deste encontro, com 30 minutos dedicados a cada um, e nos despedimos com um sentimento de empolgação.

Por fim, definimos que o tema do próximo encontro seria justamente este: o monitoramento da glicose e as experiências, além das estratégias usadas por cada um para este monitoramento.