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A aprendizagem dos objetos culturais foco do ato de dizer: particularidades do processo de apropriação conceitual

ANO OBJETO DE ESTUDO ÁREA DE PESQUISA

5 APÓS O MERGULHO, A EMERSÃO: EM BUSCA DE ENCONTROS DA PALAVRA OUTRA E DA OUTRA

5.1 ENSINO DE PORTUGUÊS NA ESFERA ESCOLAR: OLHARES FOCADOS NOS RECURSOS GRAMATICAIS DA LÍNGUA

5.1.2 A aprendizagem dos objetos culturais foco do ato de dizer: particularidades do processo de apropriação conceitual

Como vimos discutindo nesta seção analítica, compreendemos haver, nas aulas de Português das duas turmas em que imergimos, um olhar prevalentemente ocupado com questões alusivas à gramática taxionômica e/ou à gramática normativa, tanto em atividades de produção textual e de leitura de textos, quanto naquelas relativas ao ensino de tópicos gramaticais, atividades estas levadas a termo, conforme já apontamos, na maior parte das aulas de que participamos.

Considerando o que nos foi dado vivenciar em campo no tocante aos objetos culturais evocados no ato de dizer nessas mesmas aulas, e concebendo a aula de Língua Portuguesa como encontro – na já mencionada ressignificação do conceito postulado por Ponzio (2010a) –, no nosso caso, espaço de ensino e de aprendizagem, importa, neste percurso analítico, uma reflexão acerca do processo de apropriação desses mesmos objetos culturais por parte dos alunos participantes de pesquisa, considerada a recorrência deles no trabalho nessa esfera da atividade humana, em uma articulação, portanto, entre os constituintes do Diagrama Integrado (ANEXO C). Nesta subseção, assim como na anterior, mantemo-nos atendendo ao desdobramento da questão geral de pesquisa: Em não havendo espaço para o ato de ler pela via do encontro, o que se coloca em lugar dele?

Da nota registrada em (1), dos excertos (2) a (6) e de outros congêneres, entendemos haver um espaço considerável das aulas de

Português para o trabalho com ênfase gramatical, como materializamos nos Quadros sinópticos 5 e 6, resultado da recorrência de conteúdos dessa natureza programados para as seriações escolares em questão, como consta nos planejamentos anuais das duas turmas (ANEXOS D e E). Essa recorrência é ratificada por alunos durante as entrevistas individuais, no momento em que lhes foi solicitado manusear, conosco, seus cadernos de Língua Portuguesa: (56) O caderno de Português é cheio de matéria. (BUT., sétimo ano, entrevista 2015, ênfase em negrito nossa); (57) Tem bastante coisa porque a gente copia matéria do quadro de duas a três vezes na semana, além das atividades. (JAK., nono ano, entrevista 2015, ênfase em negrito nossa); (58) Tem bastante matéria...por isso até tenho DOIS cadernos. (WOH., sétimo ano, entrevista 2015, ênfase em negrito nossa). Compreendemos haver, nesses excertos, uma estreita associação semântica entre ‘matéria’ e conteúdos gramaticais normativos ou taxionômicos. Em nosso entendimento, essa frequência com que se apresentam tais conteúdos materializa o enfoque em um grupo específico de objetos culturais sobre os quais se diz nessas aulas, coadunando com ações metodológicas características da tradição da esfera escolar (com base em SAVIANI, 2008 [1983]): cópia do quadro de giz seguida de exposição oral, posterior realização de exercícios de fixação; por fim, aplicação de prova; após a memorização efetiva de um conteúdo, outro se inicia, conforme relatado no excerto (3): “acaba um conteúdo e já vai pra outro”.

Crucial retomar a inquietação suscitada por essa recorrência e pela natureza desses conteúdos de ensino em alguns alunos com os quais convivemos, como sugerem os excertos (4), (5), (7) e (8). Acreditamos que tal inquietação possivelmente constitua causa – dentre outras – de não endereçamento da atenção seletiva por parte da turma ao foco específico em estudo durante os eventos de letramento que vivenciamos, como indicia a nota transcrita em (20), remetendo à já mencionada dissociação cronotópica entre ‘aula’ e ‘objetos culturais/metodologia a partir da qual eles são tomados’. Importa lançar luzes sobre essa questão novamente, pois entendemos haver uma intrínseca relação entre apropriação conceitual e atenção seletiva, tal qual concebidas por Vygotski (2012 [1931]): o alcance do estado de intersubjetividade de que trata Wertsch (1985) à luz do ideário vigotskiano, que julgamos um dos objetivos centrais das ações docentes no interior da esfera escolar, requer, como condição sine qua non, endereçamento de atenção por parte do sujeito, neste caso, alunos de sétimo e nono anos, ao objeto cultural implicado na aprendizagem em questão. Assim, no que diz respeito ao olhar atento dos estudantes sobre os conteúdos constitutivos do ato de dizer em aula,

apresentamos, em (59) a seguir, uma vinheta narrativa que converge com a nota transcrita em (20), sinalizando o silenciar (com base em PONZIO; CALEFATO; PETRILLI, 2007) de alguns alunos em relação ao convite para o encontro. A vinheta configura, em linhas gerais, as aulas de Português de que participamos na turma 701, visto que as caracterizações do evento de letramento nela descritas reiteraram-se frequentemente nessas aulas.

(59) SHP. inicia a aula deslocando-se pela sala e pedindo para

que os alunos peguem seus livros didáticos de Português, seus cadernos e continuem respondendo às atividades iniciadas na última aula. Os alunos sentados ao fundo da

sala permanecem interagindo entre si. A conversa paralela aumenta e alguns estudantes levantam de suas cadeiras, ficam em pé ou se locomovendo pela sala. A

professora avisa que iniciará a correção, por conta de a

dispersão sinalizar finalização do processo solicitado. Ela

transita pela sala para observar quem está ainda fazendo as atividades; alguns alunos sentados no fundo da sala

continuam dispersos do evento em curso. A segunda aula

começa com a professora pedindo aos alunos que estão em pé que se acomodem em seus lugares. SHP. pega seu livro e chama a turma à atenção, solicitando silêncio, que se

instala lentamente. Assim que a turma se acalma, a

correção é iniciada. Os alunos sentados mais à frente acompanham a professora, mas os do fundo, ainda não o

fazem. Finalizada a correção, SHP. se dirige a mim e

comenta preferir transpor conteúdos no quadro a utilizar o livro didático, uma vez que agindo assim entende

imprimir tranquilidade ao ambiente. Ela, então, pede

para que abram o livro na página 74 e inicia a explicação sobre o objetivo e a estrutura do gênero ‘poema’. Um aluno sentado à frente é solicitado a ler o ‘poema’ em voz alta e, finda a leitura, SHP. trata do assunto do texto – ‘sonho’. Ela conversa sobre os sonhos que cada um alimenta, os objetivos pessoais, explicando que todos têm de enfrentar as dificuldades que aparecem em suas vidas. Enquanto é feita a exposição, alguns alunos mantêm-se

em sintonia com a professora. Finalizada a explanação

acerca do assunto do ‘poema’, SHP. solicita que respondam a questões de interpretação contidas no livro.

As interações paralelas reiniciam e a maior parte da turma tangencia a atividade. SHP. vê-se necessariamente

nominalmente esse tangenciamento em seus documentos de controle avaliativo. (Nota n. 11, Diário de campo,

sétimo ano, 2015).

Considerando o modo como propomos tomar o evento de letramento, tal qual materializado no Diagrama Integrado (ANEXO C), para que as interações descritas em (59) constituam eventos dessa natureza, importam os quatro eixos do Diagrama: o ato de dizer, o cronotopo, a esfera da atividade humana e os interactantes. Em parte de (59), o ato de dizer configura-se por meio da leitura de poema no livro didático nesta esfera escolar e neste cronotopo específico – que, como vimos marcando nesta seção de análise, inferimos apresentar-se distintamente em relação ao cronotopo em que se inserem os alunos participantes de pesquisa quando desincumbidos do exercício de seu papel social (com base em HELLER, 2014 [1970]) de ‘estudante’. Já a professora SHP. é uma das interactantes, e o ato tem como finalidade a apropriação do objeto cultural em pauta – o gênero poema. Para que a interação em questão constitua um evento de letramento, porém, é precípuo que os sujeitos dela participantes assumam a condição de interactantes, condição para a qual chama atenção Irigoite (2015) estudando a aula de Português; ocorre que, em (59), apenas uma parcela da turma reconhece-se como tal, enquanto que boa parte dela não o faz. Trata-se de reações-resposta distintas, no sentido bakhtiniano do conceito, marcadas muitas delas pelo silenciar (com base em PONZIO; CALEFATO; PETRILLI, 2007).

Importa, antes de adentrarmos em questões mais específicas relacionadas à posição dos alunos ante o processo de ensino, apontar o que já fora mencionado em subseção anterior: a abordagem cognitivista e estrutural suscitada no trato com o texto para ler, tal qual orienta o livro didático: são enfocados a estrutura do poema e o assunto sobre o qual se lê (‘sonho’), caracterizações de um trabalho empreendido com gêneros do discurso tomados como objetos ontológicos, tal qual adverte Geraldi (2010a), em distinção a suporte e esfera da atividade humana – remissão que foge ao que Halté (2008 [1998]) concebe como artificialismo constitutivo, inerente à esfera escolar –, para compor a artificialidade que suscita a representação da vida antes da afiguração, no sentido indicado por L. Ponzio (2002) inerente a um gênero do discurso como esse: ele se desloca das razões pelas quais se historiciza nas relações intersubjetivas e ganha ênfase estrutural.

Em se tratando de aspectos mais pontuais, nos foi possível observar uma divisão espacial explícita entre ‘os alunos da frente’ na sala,

interactantes do evento – ainda que em uma notória variabilidade na natureza do engajamento em torno do ato de dizer –, e os ‘alunos do fundo’, tomados sob tal escafandro categorial (com base em PONZIO, 2014), não interactantes, em posição de diferença indiferente, questão também apontada por Irigoite (2015). Nesse sentido, por tensionamentos da palavra outra com a outra palavra se mostrarem incipientes em virtude da condição fugidia de atenção seletiva de grande parte da turma, coloca-se em xeque a constituição da aula como encontro, visto o tangenciamento de incidência sobre a Zona de Desenvolvimento Imediato dos estudantes (com base em VIGOTSKI, 2007 [1978]) no que diz respeito à leitura do gênero poema: neste caso, a equanimidade entre os polos do ensinar e do aprender se mostra um desafio a ser alcançado.

Em relação às respostas dos alunos à professora, encontramos maneiras distintas de realização, tais como evadir-se fisicamente da posição de ausculta, empreender interações que fogem ao evento em curso e posturas afins. Vale registrar que não é nosso intuito qualificar tais posturas como ‘indisciplinares’, pois, como aponta Irigoite (2015), a questão da indisciplina já foi largamente discutida em estudos e pesquisas da área; conceberemos esses comportamentos como materializações do desafio para a acolhida ao outro, postura silente que problematiza a condição dos alunos de interactantes dos eventos em curso. Interpretamos essa diferença indiferente como uma resposta, pois, assim como pontua Bakhtin (2010 [1920/24]), não há álibi para o ser, não há como esquivar- se de resposta, não há possibilidade de não dar um passo, de não dizer nada (com base em PONZIO, 2010a), mesmo que esse dizer se expresse via silêncio, contraface da ausculta. Esse silenciar em detrimento do calar (com base em PONZIO; CALEFATO; PETRILLI, 2007) para a ausculta da voz do outro, sob nosso ponto de vista, constitui componente inviabilizador das possibilidades de encontro.

A violação do silêncio pelo som é mecânica e fisiológica [...] o calar só é possível no mundo

humano [...] pois a constrição do signo no espaço

do silêncio, a sua separação do calar e da liberdade de escuta, da escuta aberta à polissemia, tira ao signo o seu caráter humano e o transforma em algo mecânico e pseudonatural, fazendo-o oscilar entre a convencionalidade do sinal e a naturalidade do som, a naturalidade daquilo que não reivindica um sentido (PONZIO; CALEFATO; PETRILLI, 2007, p. 34).