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ATO DE LER SOB UM OLHAR HISTÓRICO-CULTURAL: A ESCRITA INSTITUINDO RELAÇÕES INTERPESSOAIS

ANO OBJETO DE ESTUDO ÁREA DE PESQUISA

3 ATO DE LER SOB UM OLHAR HISTÓRICO-CULTURAL: A ESCRITA INSTITUINDO RELAÇÕES INTERPESSOAIS

Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou.

(João Guimarães Rosa) Antes de iniciarmos este capítulo referente à fundamentação teórica, importa considerar que é nosso intuito estabelecer um diálogo mais autoral com os estudiosos por nós referenciados, esgueirando-nos da atitude de resenha e exercitando uma postura de ensaio, que entendemos ser mais adequado ao gênero tese. Esse propósito faz com que abdiquemos de resgates conceituais teóricos detalhados, sobretudo considerando que resenhas teóricas da literatura que nos serve como norte em ações empreendidas dentro do grupo ao qual pertencemos – Cultura Escrita e Escolarização, no âmbito do NELA/UFSC – já foram realizadas em vários estudos50 em nível de mestrado e doutorado nesse mesmo

grupo.

Assim concebendo, principiamos esta discussão a partir da consideração de que, na forma como olhamos nosso aporte teórico, empreendemos uma reflexão sobre leitura em uma interface entre três perspectivas teóricas distintas de base filosófica, psicológica e antropológica. Essa proposição deriva de uma busca de conceber a língua à luz da filosofia da linguagem bakhtiniana, da psicologia da linguagem vigotskiana e da antropologia da linguagem no que respeita aos usos sociais da escrita (CERUTTI-RIZZATTI; MOSSMANN; IRIGOITE, 2013), uma vez que entendemos convergir, nesses estudos, a concepção de língua como objeto social, que se materializa em práticas sociais de usos da língua, bem como a concepção de sujeito historicizado, o que implica atenção à inserção social, histórica e cultural específica dos sujeitos.

Essas concepções de subjetividade e de linguagem, em nosso entendimento, imbricam-se – mas não são isomórficas – nessas três diferentes abordagens. Assim, temos ciência de que a filosofia da linguagem bakhtiniana – sobretudo V. Volochínov – e a psicologia da

50 Dentre outros, são exemplos desses estudos: Irigoite (2011; 2015); Pedralli (2011; 2014);

linguagem vigotskiana ancoram-se na atividade humana51 produzindo cultura como categoria fundante, enquanto a antropologia da linguagem dos estudos do letramento ancora-se na cultura como categoria fundante. Ainda que reconheçamos aquelas filiações como historicizadas no que se conhece como modernidade e esta se delineando no que se tem chamado de alta modernidade ou nomeações afins, bem como tenhamos presente que o status teórico dos estudos do letramento não é correlato ao status teórico das outras duas abordagens, as quais entendemos como escolas de pensamento, compreendemos que a articulação é possível pelas razões anteriormente expostas, tanto quanto entendemos que a evocação é teórico-metodologicamente produtiva para as finalidades desta pesquisa, tal qual registraremos, em retomada desse simpósio conceitual, no capítulo dedicado aos procedimentos metodológicos. Apomos, assim, conceitos bakhtinianos, vigotskianos e dos estudos do letramento em dialogia – e não em posposições ou paralelismos –, assumindo os riscos de tal aposição.

Nessa ancoragem teórica importa ter presente que nossa compreensão de leitura é, conforme apontamos anteriormente, a do encontro, da relação que se dá entre sujeitos singulares, “de outro a outro, [...] sem convocações, sem hora marcada, sem ajuntamento, [...] encontro de todo dia, cotidiano. [...] Manifestação de cara limpa, diante da qual cai toda responsabilidade protegida por álibis: manifestação sem representação” (PONZIO, 2010a, p. 158). Leitura como ato responsável (com base em BAKHTIN, 2010 [1920/24]), como encontro da palavra outra e da outra palavra, de diferenças não-indiferentes que se acolhem, se calam para ouvir, que manifestam seu interesse pelo outro. Tal acepção aparece analogamente em Geraldi (2006 [1984]; 1997) e deriva da concepção de língua como interação, cuja origem atribuímos ao alinhamento desse autor com o Círculo de Bakhtin. Compreendemos que essa mesma origem se elicia em Britto (1997) e nos PCNs52 de Língua

Portuguesa (BRASIL, 1998) e, hoje, em alguma medida, faz-se ver na

51 Compreendemos atividade humana, aqui, como trabalho, tomado na perspectiva marxista do

termo; assim concebendo, entendemos que o pensamento de V. Volochínov aproxima-se mais efetivamente do pensamento vigotskiano, como registra Brandist (2012), do que o faz o pensamento de M. Bakhtin, cuja base é o dialogismo. De todo modo, alinhamo-nos a Amorim (2013), para quem o pensamento bakhtiniano, dado o enfoque na ética e a consideração da istina na relação com a pravda, não pode ser tomado sob a perspectiva da chamada alta modernidade ou pós-modernidade.

52 Assim como os PCNs, os critérios da Proposta Curricular do Estado de Santa Catarina – que

passou por um processo de atualização reiterando fundamentos de documentos dos últimos 25 anos no Estado – endossam reflexões sobre ensino e aprendizagem de Língua Portuguesa à luz da literatura da área, cuja base teórico-epistemológica são os estudos dos usos sociais da língua.

Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2015), na área das Linguagens, documento em fase de consulta pública no momento de produção desta tese. Vemos, pois, no ideário dialógico bakhtiniano a gênese das discussões que redundaram na proposta de um trabalho com leitura como prática social, da qual nos ocupamos no capítulo anterior desta tese.

No que diz respeito aos estudos do letramento, importa explicar que lançamos mão de conceitos desse escopo teórico, mas nos posicionamos contrariamente à gaseificação conferida, sob vários aspectos, ao conceito nos últimos anos – especialmente no enfoque dado pelo chamado Grupo da Nova Londres, em conceitos como ‘multiletramentos’ ou a expressão ‘múltiplos letramentos’ (conforme crítica de STREET, 2000) –, contudo, em um estudo como este que aqui se desenha, com eixo no uso social da modalidade escrita da língua, assumimos a produtividade de conceitos advindos desse campo – no que tange ao grupo do Reino Unido53 – na discussão dos processos de ensino

e de aprendizagem de Língua Portuguesa, conceitos como ecologia da escrita (BARTON, 1994), práticas de letramento (STREET, 1988), e eventos de letramento (HEATH, 2001 [1982]). Assentaremos nossa discussão nos limites desse quadro conceitual base que compreendemos distinguir-se da volatilização que entendemos ter havido nesse campo de estudos nos últimos anos.

Tratar de leitura – objeto desta pesquisa – requer, em nossa compreensão, evocar também conceitos base do construto bakhtiniano como cronotopo, alteridade e dialogismo. Esses conceitos, no entanto, devido a sua natureza linguístico-filosófica, não se prestam a modelizações analíticas em se tratando dos estudos da escrita, o que nos faz lançar mão do campo conceitual antropológico dos estudos do letramento, os quais parecem favorecer esse movimento, como em Hamilton (2000) e Barton (1994), do que trataremos à frente. Quanto ao ideário vigotskiano, entendemos haver nele proposições teóricas que facultam discussões mais efetivamente comprometidas com a aprendizagem e o desenvolvimento (VIGOTSKI, 2007 [1978]), a exemplo de discussões sobre a apropriação intrassubjetiva de representações culturais que se erigem e se ressignificam em relações intersubjetivas.

Assim, reiteramos conceber haver compartilhamentos e não isomorfias nas concepções de língua e de sujeito desses três construtos,

53 Nosso enfoque limita-se a autores que convergem com proposições teóricas de Brian Street, a

interessando-nos estudar como os sujeitos estabelecem relações interpessoais nos processos empreendidos nas instituições formais de ensino em aulas de Língua Portuguesa, mais especificamente por meio da leitura, e como se dá a relação entre sujeitos (neste caso, professores de Língua Portuguesa e autores de livros didáticos) e artefatos (livros didáticos da disciplina) no que concerne a proposições para a educação que o ato de ler exige. Um modo de observação fundado em um olhar que vimos chamando de histórico-cultural nos impõe uma preocupação com um sujeito corpóreo, situado no tempo e no espaço, em relação com a alteridade por meio da modalidade escrita da língua, processo este que lhe faculta ressignificações em sua constituição subjetiva, singular, bem como em suas representações de mundo, sempre no âmbito das relações com o outro.

Enquanto os estudos do letramento nos oferecem uma compreensão acerca da maneira com que os distintos grupos culturais lidam com a escrita, enfocando, portanto, os usos sociais dessa modalidade da língua, entendemos necessário lidar também com uma perspectiva mais efetivamente relacionada à discussão das implicações das relações intersubjetivas que têm lugar nesses mesmos grupos em se tratando do encontro do ‘eu’ e do ‘outro’ nas interações mediadas pela escrita – discussão para a qual evocamos base teórica no ideário bakhtiniano –, especialmente no que diz respeito aos encontros de sujeitos, o que se institui por meio da leitura.

Em nossa compreensão, tomar o ato de ler como encontro implica discutir leitura necessariamente na relação da subjetividade com a alteridade e, em se tratando dos usos da escrita, fazê-lo na tensão entre aqueles usos conhecidos e familiares e usos outros, provocadores porque não pertinentes ao cotidiano de um grupo cultural específico e dos encontros que têm lugar nele; eis a demanda por uma ponderação acerca de usos/leituras caracterizados como vernaculares ou como dominantes (com base em BARTON; HAMILTON, 1998). Dessa maneira, este estudo, reiteramos, propõe-se a discutir leitura como encontro, na relação da subjetividade com a alteridade; um encontro mediado pela modalidade escrita da língua, situado na sociedade, na cultura e na história e, sendo assim, em grupos culturais específicos, requerendo, pois, um olhar atento aos usos da escrita que são particulares desses mesmos grupos, tanto quanto aqueles usos que não fazem parte de seu entorno, mas que tendem a tentar se impor, porque legitimados como dominantes.

3.1 CONCEPÇOES DE LÍNGUA E DE SUJEITO: IMPLICAÇÕES EM SE TRATANDO DO ATO DE LER

Pensar a educação para o ato de ler demanda, em nossa compreensão e conforme já apontamos anteriormente, uma reflexão que contemple tal ato de ler como encontro (com base em PONZIO, 2010a) do ‘eu’ e do ‘outro’ no âmbito das relações sociais, encontro este instituído pela língua. E assim considerando, importa compreender língua, na abordagem histórico-cultural em que nos assentamos, como lugar de interação. Ela é o instrumento54 por meio do qual as relações

interpessoais são instauradas, relações essas em que os sujeitos agem sobre si mesmos, sobre os outros e sobre o mundo, em um processo de ressignificações, provocando transformações sociais e individuais (GERALDI, 2010a). A língua, assim concebida, não tem existência concreta fora dessas mesmas relações interpessoais, fora da interação; medeia tais relações, as institui, e, ao fazê-lo, está implicada na constituição dos sujeitos. Sob essa perspectiva, importa compreender que a língua é dinâmica, naturalmente heterogênea. De acordo com Volóshinov55 (2009 [1929], p. 163), “El linguaje vive y se genera

históricamente en la comunicación discursiva concreta, y no en un sistema linguístico abstracto de formas, ni tampoco en la psique individual de los hablantes56.”

Entendemos que não é a língua por si mesma que nos constitui em nossa subjetividade, quem o faz é o outro com quem interagimos por meio dela; na relação com o outro, nos encontros, via mediação semiótica, institui-se tal constituição. Eis, aqui, a necessária remissão ao que Bakhtin (2010 [1952/53]) evoca como alteridade; o outro, numa situação de interação social, é um sujeito ativo que constrói representações acerca de seu interlocutor, as quais são de algum modo compartilhadas com ele e incidem na constituição de sua subjetividade. Segundo Geraldi (2006, p.

54 Instrumento definido, aqui, não como objeto que se encontra à disposição dos indivíduos que

o utilizam como se ele não tivesse história. Tomamos instrumento no sentido vigotskiano, como instrumento psicológico de mediação simbólica construído no plano das relações interpessoais que se estabelecem nas vivências historicamente delineadas (com base em VIGOTSKI, 2007 [1978]; VYGOTSKI, 2012 [1931]).

55 Compartilhando com compreensões de Carlos Alberto Faraco (informação oral) acerca da

qualidade da tradução, temos usado, em nosso grupo de pesquisa, esta obra na versão para o espanhol. Ainda sobre este autor russo, manteremos a grafia que figurar na obra objeto de consulta, daí eventual variabilidade gráfica.

56 Considerando proficiência nas línguas inglesa e espanhola como requisitos para pós-

graduandos, abdicamos de traduções ao longo desta tese, salvo citações em línguas estrangeiras outras.

187), “Somos cada um com o outro na irrecusável continuidade da história”. É o outro que, em sua posição exotópica, tem um excedente de visão sobre o ‘eu’ que lhe permite dar um acabamento provisório, uma completude – na origem inalcançável; nesse sentido afirma-se que o ‘eu’ é, em certa medida, uma concessão do outro, um privilégio seu.

Nesta abordagem, em que língua institui o encontro de sujeitos, encontro da palavra outra e da outra palavra, ela é concebida, reiteramos, como instrumento psicológico de mediação simbólica (VIGOTSKI, 2007 [1978]) – no sentido de que é um artefato cultural e histórico que medeia a relação entre homem/mundo e entre homem/homem –, tomado na cadeia ideológica. Importa mencionar que compartilhamos com Kleiman (2006) a impressão de que o conceito de mediação, da maneira como ganhou espaço no senso comum escolar, remete “àquele que se coloca entre”, em um enviesamento da dimensão semiótica que o conceito nos apresenta. Na perspectiva histórico-cultural por nós assumida nesta tese, a mediação seria o todo dessa relação, isto é, o encontro tal qual tomado por nós implica/é mediação, o que se dá na/pela linguagem indubitavelmente.

Volóshinov (2009 [1929]) explicita que, o uso dos signos, nos enunciados, remete aos elos da cadeia ideológica que se forma entre consciências individuais, marcadas por conteúdos axiológicos. A constituição e a modificação dos signos e, portanto, da língua, dão-se socialmente, no bojo das diferentes atividades humanas em distintas esferas da atividade humana. E “la propia conciencia sólo puede realizarse y convertirse en un hecho real después de plamarse en algún material sígnico” (VOLÓSHINOV, 2009 [1929], p. 30). Desse modo, na concepção bakhtiniana, o signo é um fenômeno do mundo exterior – do outro – que reflete e refrata a realidade, fazendo parte da interação social, ideológico por excelência; ao mesmo tempo em que emerge das relações sociais, da outridade, a qual um sujeito constantemente está encontrando, ele é sempre orientado, dirigido para o outro (VOLOCHÍNOV, 2013 [1930]). Nesse sentido, é possível afirmar que a língua se move ininterruptamente e seu desenvolvimento segue aquele da vida social, sendo sua essência efetiva representada pelo fato social da interação verbal, que é gerada por uma ou mais enunciações (VOLOCHÍNOV, 2013 [1930], p. 158). Isso posto, compreendemos língua como objeto social que faculta a instituição de encontros e, em o fazendo, incide na constituição subjetiva.

Compreendendo que a língua e, por conseguinte, o signo ganham sentido única e exclusivamente na relação com o outro, nos encontros situados em um tempo e espaço específicos e, portanto, irrepetíveis dado

seu caráter evêntico, temos a relação inseparável entre signo, consciência e ideologia proposta por Volóshinov (2009 [1929]).

Ideologia é tomada, nos apontamentos do Círculo de Bakhtin, como o conjunto de interpretações sobre o mundo e sobre a vida que se delineia nas relações interpessoais – no âmbito da história, da cultura e da sociedade – e é por elas e nelas modificado constantemente. Tais interpretações são fixadas por meio de palavras ou outras formas sígnicas e nos caracterizam como sujeitos históricos (VOLOCHÍNOV, 2013 [1930]) que apropriam e reverberam objetos culturais. Sob essa ótica, a ideologia é social e se constrói nas inúmeras esferas de atividade humana, se dando na/pela língua. Nesse sentido, a ideologia necessita da língua para poder se expressar e é caracterizadamente constituída por signos, sempre ideológicos. A ideologia, nesta perspectiva, seria o elemento constitutivo da vida social, requisito de existência da própria consciência. A consciência, assim, constitui-se por meio de signos nas interações sociais das quais participam os sujeitos: de consciência individual em consciência individual, emergem os signos linguísticos que vão constituindo elos entre tais consciências num processo contínuo e ininterrupto. A consciência é de natureza social e vai adquirindo forma nos signos que são criados pelos diferentes grupos humanos nos encontros de que participam. “La conciencia individual se alimenta de signos, crece en base a ellos, refleja en sí su lógica y sus leyes. La lógica de la conciencia es la de la comunicación ideológica, la de la interacción sígnica en una colectividad” (VOLÓSHINOV, 2009 [1929], p. 33). A consciência, sendo social, é ideológica, semiotizada e integrante da ideologia social de certa comunidade, de determinado grupo, de certa classe.

Cada conteúdo da consciência individual não é nunca algo imediato, espontâneo, privado, um dado primário e original; esse é sempre, ao mesmo tempo, resultado e momento, parte ativa, de uma elaboração ideológica segundo códigos sociais, é já mediado por certa organização cultural, por certa tradição histórica; é um anel da mesma cadeia da criatividade ideológica da qual fazem parte os mais refinados produtos da cultura (PONZIO, 2013, p. 157-158).

A linguagem, instituidora dos encontros, constituidora das consciências individuais e, por implicação, das subjetividades, “é produto da atividade humana coletiva e reflete em todos os seus elementos tanto

a organização econômica como a sociopolítica da sociedade que a gerou” (VOLOCHÍNOV, 2013 [1930], p. 141). Ela não reflete as oscilações psicológico-subjetivas, mas inter-relações sociais estáveis entre os falantes. De acordo com Ponzio (2013, p. 151-152),

o signo verbal constitui o material do qual são feitas todas as relações sociais em qualquer nível, das relações de trabalho àquelas de nível artístico- literário, e que estabelece a relação de inter-relação entre o nível das ideologias institucionalizadas, dominantes, e aquele das ideologias não oficiais ou ainda em formação.

Sob essa perspectiva, “la palabra es el fenómeno ideológico por excelencia” (VOLÓSHINOV, 2009 [1929], p. 34) e, portanto, só pode ser compreendida pela sua função de signo, uma vez que ela permeia toda a criação ideológica, como o modo mais puro e sensível de relação social, no qual melhor se expressam as formas ideológicas da comunicação. A essa característica, soma-se sua neutralidade, que resulta de a palavra não ser/estar obrigatoriamente vinculada a qualquer esfera ideológica particular.

Essa ubiquidade da palavra lhe permite introduzir-se em todas as relações humanas servindo de “instrumento” da comunicação cotidiana, visto que “está presente en todo acto de comprensión y en todo acto de interpretación” (VOLÓSHINOV, 2009 [1929], p. 38), constituindo, assim, o indicador mais sensível das mudanças sociais. Certamente, quando entra no jogo da enunciação, a palavra perde sua neutralidade ao ser penetrada por cargas valorativas ideológicas. O signo ideológico é marcado pelos grupos sociais de uma determinada época e pelos horizontes sociais/axiológicos, ou seja, ideologia e interação estão entrelaçadas ao signo.

Se a palavra é assinalada, em qualquer atividade humana, pelo horizonte axiológico, é tomada como neutra quando isolada, fora do enunciado. Quando enunciada, a palavra assume sua condição de signo ideológico, conforme mencionado anteriormente, compreensão que decorre de uma concepção de língua como interação social. Nas palavras de Volóshinov (2009 [1929], p. 161),

La realidad concreta del lenguaje en cuanto discurso no es el sistema abstracto de formas linguísticas, ni tampoco una enunciación monológica y aislada, ni el acto psicofísico de su

realización, sino el acontecimiento social de interacción discursiva, llevada a cabo mediante la enunciación y plasmada en enunciados.

La interacción discursiva es, entonces, la realidad principal del lenguaje.

No que diz respeito aos recursos expressivos de uma língua, à luz da perspectiva bakhtiniana, compreendemo-los como ‘em aberto’, profundamente vinculados ao uso da língua e, portanto, à mudança. A língua, como atividade, interação, implica indeterminação, movimento e, como instrumento construído no processo de interlocução com o outro, carrega as precariedades do irrepetível e do singular, expondo sua vocação para a mudança (com base em GERALDI, 2010b). Participam da constituição de tais recursos expressivos – sejam eles elementos estilísticos ou de ordem puramente gramatical – a situação da enunciação e a orientação social, visto que a organização do projeto de dizer se dá na dependência do peso sócio-hierárquico do auditório, isto é, da inserção de classe dos interlocutores, de sua condição econômica, profissional etc. (VOLOCHÍNOV, 2013 [1930]), o que suscita a dimensão extraverbal da língua e dos signos.

A realidade da língua, então, é social, marcada por uma dimensão histórico-cultural que a constitui e que funciona como seu cerne. Entender a língua dessa forma é assumir sua dinamicidade decorrente, sobretudo, dos usos sociais a que está sujeita. É compreender que ela nasce, constitui- se e se modifica nas interações vivenciadas pelos sujeitos sócio-