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APRENDIZAGEM PELO ENGAJAMENTO, IMAGINAÇÃO E ALINHAMENTO

CAPÍTULO 2 – APRENDIZAGEM ORGANIZACIONAL E COMUNIDADES DE

2.5 APRENDIZAGEM PELO ENGAJAMENTO, IMAGINAÇÃO E ALINHAMENTO

O engajamento em comunidades de prática é fonte de aprendizagem, mas não é a única forma de aprender, até porque o engajamento enfrenta limites. As pessoas não podem engajar-se nas práticas de muitas comunidades ao mesmo tempo e em diferentes lugares. Essa característica limitada do engajamento constitui tanto sua força quanto sua fraqueza como modo de pertencimento (Wenger, 1998).

O engajamento pode ser fonte de poder, permitindo negociar empreendimentos e influenciar contextos nos quais são construídas e experimentadas identidades. Mas esse poder também pode ser estreito, limitado. Além do engajamento em comunidades de prática, Wenger (1998) destaca outros dois modos de pertencimento a comunidades - imaginação e alinhamento – os quais contribuem para o processo de aprendizagem e para a formação de identidades. Apresentam-se, a seguir, cada um desses termos, para depois discutir as relações entre engajamento, alinhamento e imaginação como oportunidades para a aprendizagem.

Imaginação

Dois homens trabalhavam quebrando pedras quando foi lhes perguntado o que estavam fazendo. Um deles respondeu que estava cortando a pedra num perfeito quadrado. O outro disse que estava construindo uma catedral (Wenger, 1998:176).

A diferença entre o sentimento que cada um experimentava é uma questão de

imaginação, usando o termo proposto por Wenger (1998). Pode-se aprender coisas

diferentes pela mesma atividade, dependendo da experiência e da imaginação, do sentido que é dado a tal atividade. A imaginação contribui para criar novas imagens do mundo e de si mesmo, redefinindo identidades (Wenger, 1998:176).

A imaginação é um importante componente da vivência de cada pessoa no mundo e de seu senso de localização nele. É um processo criativo de produção de sentidos e visões. Não significa que sejam aspectos menos reais ou menos significativos de nossa

identidade do que aqueles baseados em engajamento mútuo. São tipos diferentes de esforços que contribuem para definir a identidade, processos diferentes para a construção da realidade.

Imaginação requer a habilidade de desengajar-se, de olhar para o próprio engajamento com olhos de quem é de fora. Requer a habilidade de explorar, correr riscos, criar diferentes conexões. Normalmente, a imaginação envolve processos como (Wenger, 1998:185): 1) reconhecer a própria experiência em outros, colocar-se no lugar do outro; 2) definir uma trajetória que conecta ações a uma identidade estendida; 3) localizar o engajamento em sistemas mais amplos de tempo e espaço, percebendo as múltiplas constelações que são contextos para as práticas; 4) compartilhar histórias, explanações, descrições; 5) acessar práticas distantes por meio de excursões e contatos, visitas, encontros, conversas; 6) assumir a significação de ações e artefatos estranhos, estrangeiros; 7) criar modelos, reificar padrões, produzir artefatos representativos; 8) documentar desenvolvimentos, eventos e transições históricas, reinterpretar histórias e trajetórias em novos termos, usar histórias para ver o presente como apenas uma possibilidade e o futuro como um número de possibilidades; 9) gerar cenários, explorar novas maneiras de fazer o que faz, outras palavras e outras identidades.

Há um potencial infinito de assuntos e questões com as quais uma pessoa pode identificar-se, relacionadas a uma infinidade de potenciais comunidades. A indústria do entretenimento e as tecnologias de comunicação expandem infinitamente as possibilidades para o processo de identificação, em dimensões planetárias45. A imaginação não é apenas um processo individual, pois envolve imaginação coletiva. Não se trata de uma visão individual da realidade, mas é um modo de pertencimento que sempre envolve o mundo social para expandir o escopo da realidade e a identidade. Ao definir o que reificar publicamente a respeito de uma comunidade ou uma organização, escolhe-se o que servirá de material para a imaginação.

A imaginação pode envolver estereótipos a respeito de povos, etnias, países e, até mesmo, interesses. Costuma-se recorrer a estereótipos para definir o outro, enfatizando as diferenças e não percebendo semelhanças. Quando se conhecem melhor, no entanto, muitas vezes as pessoas percebem ter mais pontos de contato com o “inimigo” (Wenger, 1998).

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As ciências sociais também contribuíram para gerar categorias de análise que podem ser fonte para identificação, como etnicidade, gênero, classe, faixa etária.

Alinhamento

Pelo alinhamento, um indivíduo pode tornar-se parte de algo maior, no sentido de que sente estar “fazendo a sua parte”. O alinhamento estabelece pontes entre tempo e espaço para formar empreendimentos mais amplos nos quais os participantes tornam-se conectados pela coordenação de suas energias, ações e práticas. Alguém pode apoiar certa causa sem envolver-se com ela por meio de ações concretas. Se, todavia, faz um depósito em dinheiro pela causa, alinha recursos de alguma maneira, mas não necessariamente envolvendo-se em uma comunidade de prática que trabalha por essa causa (Wenger, 1998). O alinhamento expande o escopo e amplia os efeitos das ações, oferece oportunidade para novas dimensões ao pertencimento. Uma pessoa pode alinhar-se a uma causa, uma organização, um movimento social, um método científico, a uma fé religiosa, bem como aderir a modas, a padrões educacionais, a estilos artísticos, ao investir recursos ou energia que a aproximem de seus estilos, discursos ou ações.

O alinhamento mobiliza energias e ações das pessoas e amplia nelas a sensação de possibilidade. Provocar alinhamento de pessoas ou comunidades em torno de uma idéia ou ação implica o poder de influenciar, de inspirar (Wenger, 1998)46, o que requer habilidade para comunicar propósitos, necessidades, métodos e critérios. Pode, além disso, obscurecer e enfraquecer o poder dos indivíduos e das comunidades, quando relacionado a processos prescritivos, que limitam a habilidade da comunidade de agir por si mesma e negociar seu lugar nos sistemas mais amplos.

O alinhamento costuma ser mais focalizado do que a imaginação, pois implica um investimento de energia pessoal. O alinhamento conecta esforços locais a estilos e discursos mais amplos, de maneira a permitir ao aprendiz investir sua energia neles. Geralmente, o alinhamento envolve processos de: 1) investir energia em certa direção e criar um foco para coordenar o investimento de energias; 2) negociar perspectivas, encontrando base comum; 3) impor visões, usando poder e autoridade; 4) convencer, inspirar, unir; 5) definir visões amplas e aspirações, propondo histórias de identidade; 6) desenvolver procedimentos, quantificação e controle de estruturas que podem ser usadas entre fronteiras; 7) caminhar entre fronteiras, criar práticas de fronteira e reconciliar diversas perspectivas (Wenger, 1998:186-7).

Pode-se gerar alinhamento em processos de negociação caracterizados pelo compartilhar da propriedade de significados, ao negociar, persuadir, inspirar, confiar e delegar. Mas é possível gerar alinhamento, também, com pouca abertura para negociação,

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Wenger (1998) discute poder como condição para a possibilidade de ações socialmente organizadas, em termos de negociação de significado e formação de identidades, como uma propriedade de comunidades sociais.

estabelecendo procedimentos rígidos e exigindo conformidade, ou, então, pela submissão, coerção. Um programa de computador é um exemplo de reificação que gera alinhamento sem possibilidade de negociação. Alinhamentos gerados com baixa negociação, por um lado tornam as coisas mais estáveis; por outro, permitem pouca adaptabilidade, flexibilidade, criatividade e podem mesmo inviabilizar o alinhamento ou levar à evasão.

Se o nível de participação em empreendimentos mais amplos é muito baixo, as relações com esses empreendimentos tendem a ser apenas proforma, formais. Assim, a tendência é concordar mais do que participar na definição de significados (Wenger, 1998:187). Outra forma de alinhamento ocorre quando uma certa categoria não entende exatamente o que os níveis gerenciais superiores esperam, mas procura alinhar-se às expectativas que identifica nesses níveis e no sistema como um todo. Esse alinhamento com as expectativas do empregador revela que pertencem a um sistema social maior no qual sua atividade acontece.

Artefatos comuns reificados costumam ser necessários para o alinhamento, como discursos que ajudem a reificar o empreendimento mais amplo e pelos quais as práticas locais possam ser interpretadas como ajustadas a um contexto maior. Com reificação insuficiente, a coordenação entre as partes, em diferentes lugares e tempos, pode depender muito da parcialidade de participantes específicos ou ser muito vaga para criar alinhamento.

Wenger (1998) destaca, ainda, o papel da tradução nas fronteiras entre comunidades de prática nas relações de alinhamento. O alinhamento requer pessoas que intermediem a participação nas fronteiras e que articulem múltiplos pertencimentos, conforme será detalhado adiante. O alinhamento, da maneira como o compreende Wenger (1998), pode ser associado ao que se discutiu no capítulo um desta tese a respeito do trabalho de tradução e de articulação entre práticas dispersas em prol de um objetivo comum.

Tanto o engajamento, quanto a imaginação e o alinhamento são modos de pertencimento a comunidades. Comunidades de prática não são, portanto, o único tipo de comunidade a considerar na formação de identidades. Pode-se falar de vários tipos de comunidades: profissionais, epistêmicas, de prática, de afinidade, de interesse, de discurso, de proximidade geográfica, de experiência, de padrões estandardizados etc. (Fischer e Mac- Allister; Haas, 1992; Wenger, 1998). Não se tratam de categorias excludentes. Uma comunidade de prática pode corresponder a uma comunidade profissional, por exemplo, mas no âmbito de uma comunidade profissional pode haver mais de uma comunidade de prática.

Esses três modos de pertencimento e suas inter-relações permitem um quadro de referência para entender a formação dos diversos tipos de comunidades. Embora se admita que o engajamento em comunidade de prática oferece amplo potencial para a aprendizagem, a imaginação e o alinhamento também permitem a aprendizagem e geram impactos nas identidades das pessoas. Cada modo de pertencimento influencia a própria formação de comunidades de prática, assim como envolve dilemas, ou “trade offs”. Combiná-los pode compensar os limites de cada um. Essas combinações permitem a uma comunidade mover-se de várias maneiras entre participação e não participação para criar um contexto rico para a aprendizagem. A maior parte do que se faz envolve uma combinação das três formas, e a aprendizagem ancorada na prática e articulada a outras comunidades, seja pela imaginação ou pelo alinhamento, torna-a mais ampla, criativa e efetiva no mundo ampliado.

Pode haver relação mais estreita ou menos estreita entre os modos de pertencimento. A imaginação pode formar um tipo de comunidade e contribuir para a definição de uma identidade, sem envolver práticas compartilhadas: uma comunidade de pessoas que lêem o mesmo tipo de publicação, os adeptos de um esporte, os que ouvem o mesmo tipo de música, os obesos. Pode-se dizer que todos que assistem certo programa de televisão fazem parte de uma comunidade, mas dizer que formam uma comunidade de prática seria exagerado.

É possível engajar-se com outros em uma comunidade de prática, desenvolvendo práticas e aprendizado, sem ligar isso a uma causa ou instituição maior, sem alinhamento. Pode, outrossim, haver conexão entre pessoas ou comunidades pela imaginação, sem relação com uma causa ou empreendimento comum. Pode haver diferentes pessoas interessadas num tema ou ação, com perfis ou identidades semelhantes, mas não haver nada concreto em relação a isso, a estabelecer essa conexão, a juntar energias em prol de um mesmo objetivo. Já o alinhamento em torno da preservação da natureza, por exemplo, pode criar uma vasta comunidade unida por um propósito comum e mobilizar energias em torno da causa. E pode acontecer que, a partir do apoio a uma causa, algumas pessoas engajem-se em sua prática, em uma comunidade de prática.

A combinação entre engajamento e imaginação costuma gerar práticas reflexivas. O engajamento oferece um lugar para a imaginação pousar, para ser negociada na prática e realizada em identidades de participação. É um processo que requer uma abertura da participação que permita à imaginação ter efeitos sobre si mesma, de forma que seja possível aprender por meio dela e trazer essa aprendizagem de volta enquanto forma de engajamento, de forma que se aproprie o que se aprende fora das comunidades de prática. Não faria sentido sair para uma visita, um intercâmbio, se as novas perspectivas

percebidas nesse processo não pudessem ser realizadas de alguma maneira em novas formas de engajamento após o retorno: ”E nossas comunidades precisam ter um lugar para nós que faça justiça às transformações de identidade que as reflexões e excursões podem produzir” (Wenger, 1998:217).

Uma comunidade de prática é um bom lugar para as pessoas explorarem idéias novas e radicais sem serem vistas como estúpidas (Wenger, 1998). Ao permitir experimentação, as comunidades de prática são espaços privilegiados para a criação de conhecimento. A relação entre engajamento e imaginação permite, também, que as práticas ofereçam recursos para definir uma imagem do mundo, e essa imagem influencia a forma de perceber o engajamento numa prática. No alinhamento com certa descontinuidade, pode- se perceber posições de novas maneiras, formular novas questões, ver as coisas de formas nunca antes pensadas e definir, a partir disso, novos critérios de competência que reflitam o alinhamento das práticas (Wenger, 1998).