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CAPÍTULO 2 – APRENDIZAGEM ORGANIZACIONAL E COMUNIDADES DE

2.2 A DEFINIÇÃO DE COMUNIDADE DE PRÁTICA

2.2.2 O CONCEITO DE PRÁTICA

A teorização sobre a prática, praxis, atividade, o desenvolvimento do conhecimento humano pela participação contínua no mundo, integra uma tradição marxista nas ciências sociais (Lave e Wenger, 1991).

O termo praxis é originário da obra de Karl Marx, na qual adquire dimensão sócio-histórica, representando um processo contextualizado de tomada de consciência para fazer a história, transformar o mundo. Desde Marx, prática tem sido usada em uma variedade de concepções relacionadas tanto à formação da cultura, de maneira mais ampla, quanto a atividades locais (Wenger, 1998).

O educador Paulo Freire usa a noção de práxis como combinação entre ação e reflexão realizada pelos homens sobre o mundo para transformá-lo, numa perspectiva libertadora. Para Freire (1987), os homens se fazem pela ação e reflexão e a palavra, enquanto ação e reflexão, resulta na práxis. Pela palavra se dá o diálogo, que é caminho para os homens terem significação enquanto tais. O autor considera que a palavra sem ação é verbalismo, palavra oca, alienada e alienante, “blablablá”. E palavra sem reflexão é ativismo. Da palavra oca, sem reflexão e sem ação, não se pode esperar o compromisso de transformação (Freire, 1987).

Na antropologia, encontra-se o uso do conceito de prática para falar de estruturas e sistemas sem pressupor efeito determinista nas ações. A prática pode ser encarada como mecanismo de resistência diária às estruturas hegemônicas (Wenger, 1998). O sociólogo e antropólogo Pierre Bourdieu é uma importante referência entre os teóricos que tratam de prática. De acordo com Wenger (1998), Bourdieu usa o conceito de prática para contestar abordagens estruturalistas ou funcionalistas da cultura, ao enfatizar o caráter generativo de práticas culturais que incorporam relações entre classes (posições) sociais. Na sua teoria da ação, Bourdieu (1997) trata da relação de mão dupla entre as estruturas objetivas (dos campos sociais) e as estruturas incorporadas (do habitus). O habitus é um corpo socializado, estruturado, que incorporou estruturas de um mundo ou parte dele (um campo), e que ordena tanto a percepção quanto a ação no mundo.

Bourdieu (1997) procura evidenciar a relação entre posições sociais e as

disposições ou habitus e as tomadas de posição (escolhas) que os agentes fazem, seja no

esporte, na música, na cozinha, na política etc. O habitus ajuda a perceber como a unidade de estilo de um campo vincula as práticas e os bens de um agente ou de uma classe de agentes. Baseado na noção de habitus, Bourdieu (1997) defende que a maior parte das ações humanas não são intencionais, calculadas ou orientadas conscientemente para um

objetivo. São disposições adquiridas que fazem com que a ação pareça intencional: “A prática tem uma lógica que não é a da lógica” (Bourdieu, 1997:145).

Ainda de acordo com Bourdieu (1997), o habitus torna-se o fundamento das práticas, que passam a não ser questionadas. Para ser digno de ser membro do grupo, seu integrante age respeitando as regras, e o grupo exige demonstrações de conformidade. No mercado de ações simbólicas são oferecidas recompensas ou lucros simbólicos pelo comportamento adequado.

Os habitus não são homogêneos; são diferenciados e diferenciadores, gerando práticas distintas e distintivas. Apesar da diferenciação entre os habitus, as rupturas não dependem apenas de tomada de consciência, é preciso também transformação nas estruturas objetivas que produzem as disposições (Bourdieu, 1997).

Wenger (1998) considera que o habitus pode ser entendido como uma propriedade emergente de práticas que interagem e não sua estrutura geradora, com existência própria. Para o autor, prática lembra fazer, agir, não apenas em si mesma, mas num contexto histórico e social que se baseia numa estrutura e confere sentido ao que é feito. Essa concepção de prática inclui tanto o explícito quanto o tácito, ambos definidos socialmente. Inclui linguagem, ferramentas, documentos, imagens, símbolos, regras definidas, critérios específicos, procedimentos codificados, regulamentos e contratos. Também inclui relações e convenções implícitas, pistas sutis, regras não evidentes, intuições, pressupostos e visões de mundo compartilhadas, os quais vão tornando-se explícitas pelas práticas.

Qualquer prática é, assim, uma prática social (Wenger, 1998). Na perspectiva da aprendizagem, a dimensão da prática enfatiza a aprendizagem pelo engajamento, pela experiência da participação direta (Wenger, 2000). Pela prática as pessoas experimentam o mundo, mas não apenas em um sentido mecânico ou funcional. Como numa obra de arte, o mais importante não é a prática enquanto ação manual ou cerebral, mas enquanto experiência de significado. O que importa é o significado da obra produzida, mas não o significado enquanto relação entre um símbolo e sua interpretação, tampouco como grande questão filosófica, mas como experiência na vida cotidiana de cada pessoa que interage com a obra de arte (Wenger, 1998).

O termo prática é muitas vezes usado como antônimo de teoria, idéia, ideal ou discurso. Wenger (1998) esclarece que sua concepção de prática não recai em dicotomias entre ação e conhecimento, saber e fazer, manual e mental, concreto e abstrato, teórico e prático, ideais e realidade. O processo de engajamento na prática envolve a pessoa como um todo. A atividade mental não é desincorporada, e a atividade manual não prescinde de

reflexão. Nem o concreto é sempre evidente e o abstrato transcendente e genérico. Ambos os extremos obtêm seu significado na perspectiva de práticas específicas e podem estar associados a múltiplas interpretações.

Mesmo quando a teoria é um objetivo em si, não está distanciada da prática. Ao contrário, é produzida no contexto de práticas específicas. Na pesquisa acadêmica, por exemplo, a produção e o teste de teorias compreende práticas especializadas, específicas. A distinção entre teoria e prática refere-se, assim, a distinções entre tipos de empreendimentos e não distinções da qualidade de experiências e conhecimentos. Mesmo quando uma prática leva à produção de uma teoria, segue sendo uma prática (Marsden e Townley, 2001; Wenger, 1998). A linguagem em si é uma prática, o que não significa que o que se aprende a dizer reflita nas demais práticas (Lave e Wenger, 1991).

Estudos etnográficos mostram que as práticas efetivas ou as maneiras pelas quais as pessoas realmente agem nas organizações diferem bastante das descrições formais do trabalho, dos manuais, regimentos, estatutos, princípios declarados e dos discursos oficiais. Mas quase sempre os procedimentos e referências formais é que são considerados como base para a elaboração de novos projetos, programas de treinamento, planejamentos para o futuro, inclusive para o aprimoramento das próprias práticas (Brown e Duguid, 1991).

Uma das razões para isso pode ser o fato de que a sociedade costuma atribuir maior valor ao conhecimento abstrato, enquanto os detalhes das práticas são vistos como não essenciais, não importantes, possíveis de ser facilmente desenvolvidos quando as abstrações relevantes são postuladas (Brown e Duguid, 1991)40. Embora as práticas concretas sejam centrais para entender o trabalho, os programas educacionais e de treinamento costumam não explicitar ou dar importância a elas. As práticas divulgadas pelas organizações (práticas canônicas) podem, inclusive, obscurecer as verdadeiras práticas (não-canônicas) (Brown e Duguid, 1991).

Numa mesma organização coexistem, portanto, a organização planejada, estruturada, com papéis, qualificações e distribuição de autoridade definidas, e as práticas que dão vida à organização e que são freqüentemente uma resposta à organização e às práticas planejadas (Smith e McKeen, 2002; Wenger, 1998). Em certos casos, quanto mais detalhado o planejamento de uma prática, mais riscos corre de ser descartado.

40Sartre (1978), defendendo que só há realidade na ação, pergunta como se pode medir o valor de

um sentimento? Responde que “[...] o sentimento constitui-se pelos atos que se praticam [...]” (1978:11). E exemplifica: “Posso dizer: gosto bastante de tal amigo para lhe sacrificar tal soma de dinheiro; mas só o posso dizer depois de o ter feito“ (Sartre, 1978:11).

Brown e Duguid (1991) discutem um exemplo de responsáveis pela manutenção de máquinas numa empresa que improvisam e desenvolvem maneiras criativas para fazer as máquinas funcionarem quando há problemas, indo além dos manuais e, com isso, impedem que o trabalho torne-se um caos. O exemplo evidencia que se manuais fossem seguidos à risca, o processo de manutenção seria inviabilizado. Há vários exemplos de categorias que usam seguir integralmente as regras institucionais como forma de resistência, nas chamadas “operação-padrão”, demonstrando que cumprir estritamente o planejado faz com que a organização não funcione.

Analisando o caso dos técnicos que consertavam máquinas, Brown e Duguid (1991) identificam três características centrais de suas práticas no trabalho:

Recorrendo à metáfora do mapa para se referir às descrições formais de trabalho, instruções e normas, Brown e Duguid (1991) observam que o mapa da organização pode ser muito distorcido em relação à organização real, não refletindo as rotas que as pessoas realmente percorrem. Espera-se que as pessoas nas organizações sejam fiéis aos mapas e não às condições da estrada (Brown e Duguid, 1991). Wenger (1998) argumenta que improvisação e inovação são essenciais para a aprendizagem, que a estrutura da prática é emergente, e ao mesmo tempo perturbável e resiliente, características que serão detalhadas adiante.