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CAPÍTULO 1 – RELAÇÕES ENTRE UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

1.1 CONHECIMENTO, CIÊNCIA E PLURALIDADE DE SABERES

1.1.3 O TRABALHO DA TRADUÇÃO

De acordo com Santos (2005a), a teoria política da modernidade ocidental, tanto em sua versão liberal quanto na versão marxista, prega a unidade da ação, uma teoria geral da transformação social. O movimento simbolizado pelo Fórum Social Mundial recusa, segundo ele, a idéia de uma teoria geral, preferindo a diversidade, o que o liberta de falsos universalismos ou estratégias únicas. O mundo é visto, nessa perspectiva, como uma totalidade composta por infinitas totalidades parciais. A alternativa a uma teoria geral seria o trabalho da tradução, um procedimento para criar inteligibilidade, coerência, articulação entre as diversas experiências de práticas sociais contra-hegemônicas pelo mundo, sem afetar sua identidade ou autonomia e sem homogeneizá-las. A tradução pretende evitar o desperdício da experiência, desperdício esse que legitima e contribui para a injustiça.

Cada organização não governamental, movimento ou governo local cria práticas específicas, especializa-se e, assim, se distingue de outros (Santos, 2005a), cria identidade em torno de práticas compartilhadas no contexto de um empreendimento comum. Spink, P. (2001b) atesta que o impacto de organizações não-governamentais, movimentos sociais, grupos de defesa de direitos, tanto local quanto globalmente, acontece não somente por sua capacidade de pressão, mas pelos conhecimentos práticos que desenvolveram e são capazes de articular.

Santos (2005a) observa que a articulação permitida pelo Fórum Social Mundial e fóruns correlatos, no entanto, é de baixa intensidade, pois se limita à divulgação de práticas entre os participantes. O autor percebe que para aprofundar a articulação entre as experiências pelo mundo, é necessário dispor de formas de articulação e agregação mais ecologia das trans-escalas; 5) monocultura dos critérios de produtividade e de eficácia capitalista x ecologia das produtividades.

intensas, tanto para a articulação de lutas e reivindicações, quanto para a promoção de alternativas mais abrangentes e consistentes.

Promover articulações que preservem as identidades exige esforço de “[...] reconhecimento recíproco, de diálogo e de debate” (Santos, 2005a: 120). Freire (1987) reforça que pela palavra – ação e reflexão – se dá o diálogo, que é caminho para os homens terem significação enquanto tais. O diálogo é, pois, uma exigência existencial, o que implica que ninguém pode ser depositário de idéias de outro, e não se resume à troca de idéias a serem consumidas por um ou outro. O diálogo é, para Freire (1987), um ato de criação.

O diálogo exige respeito mútuo dos usuários de diferentes sistemas de conhecimentos na formação de relações horizontais de discussão e debate, aprendendo a relacionar conhecimentos diferentes (Spink, P. 2001b). É um trabalho que exige identificar o que une cada organização, movimento ou iniciativa e o que as divide, baseando as articulações nas práticas e saberes que as unem (Santos, 2005a). E o que divide, da mesma forma, também pode ser fonte de aprendizagem. O confronto, o questionamento, também provoca mudanças. Outro desafio para a realização desse trabalho é a democratização dos processos decisórios no âmbito das próprias organizações e movimentos (Santos, 2005a) que pretendem participar desse processo de diálogo, de partilha de saberes.

São necessários, portanto, espaços para o diálogo, zonas de contato em que haja porosidade, permeabilidade a novas práticas, discursos e saberes, para a compreensão e conhecimentos mútuos, possibilitando combinações práticas para a ação. São importantes, também, espaços de avaliação coletiva de aspirações normativas, de práticas e saberes. Nessa zona de contato, a atitude propícia é, ao mesmo tempo, cosmopolita, de reflexão e de auto-reflexão (Santos, 2005a).

Na concepção dialógica de Freire (1987), não há diálogo sem amor ao mundo e aos homens, sem fé no homem e na sua vocação de ser mais, em seu poder de fazer e refazer, de criar e transformar estreiteza em profundidade (Freire, 1987; Gutierrez et al., 2004). A fé nos homens é condição básica, apriorística: “Sem esta fé nos homens o diálogo é uma farsa. Transforma-se, na melhor das hipóteses, em manipulação adocicadamente paternalista” (Freire, 1987:81).

O diálogo requer, ainda, humildade, pois a recriação do mundo não pode ser arrogante (Freire, 1987). Para que seja possível um diálogo intercultural, é fundamental que haja reconhecimento não só das virtudes próprias e do outro, mas da incompletude e das fraquezas das diferentes perspectivas (Santos, 2005a). “A auto-suficiência é incompatível

com o diálogo” (Freire, 1987: 81). Qualquer cultura e qualquer saber podem ser enriquecidos pelo diálogo e pelo confronto com outras culturas e outros saberes.

Admitir essa incompletude e relatividade das culturas não implica relativismo, considerar que todas as culturas são igualmente válidas e que não é possível fazer a respeito delas qualquer juízo de valor. É importante assinalar que ecologia de saberes não significa relativismo, já que há pessoas, como Lobo (2005), que revelam preocupação com a onda de relativismo nas ciências sociais que, para ele, teria “passado dos limites19”. Lobo (2005) observa que na antropologia, por exemplo, o relativismo cultural é um recurso para superar as limitações da visão de mundo dominante. O relativismo pode, no entanto, facilmente escorregar para o nivelamento de valores, e resultar em estagnação e justificativa para qualquer ação ideológica, alerta Lobo (2005).

Santos (2005a) aponta, como exemplo de incompletude e divergência, que há concepções de mundo que ocultam injustiças e menosprezam o valor do conflito enquanto etapa necessária para uma harmonia mais rica. Outras concepções sobrevalorizam o conflito como meio para chegar à paz. A idéia de incompletude entre diferentes concepções gera motivação para o trabalho de tradução entre grupos sociais, buscando o que cada um tem de melhor e, ao mesmo tempo, mantendo os valores essenciais de cada cultura. A tradução caracteriza-se como um trabalho que combina dimensões políticas, dialógicas, subjetivas e emocionais. O tradutor é alguém que reconhece os limites de seus próprios conhecimentos ou práticas e abre-se para aprender e surpreender-se com o conhecimento e a prática do outro. O desejo de transformar-se seria a base da motivação para a transformação do mundo (Santos, 2005a). Nas palavras de Freire (1987:81) “Neste lugar de encontro não há ignorantes absolutos nem sábios absolutos: há homens que, em comunhão, buscam saber mais”.

Uma das condições para que se estabeleçam acordos para a articulação, ou para o alinhamento de práticas, é que o conhecimento e a aprendizagem sejam recíprocos (Santos, 2005a). Como na educação libertadora proposta por Freire (1987), supera-se a contradição educador-educandos, numa relação dialógica na qual todos são tanto educadores quanto educandos. Para a promoção do alinhamento, um alinhamento que seja livre, sem alienação ou dominação de um pelo outro, é preciso que as partes compartilhem aprendizado, o que implica compartilhar práticas ou conhecimentos (inseparáveis) em algum grau.

19 Lobo (2005) refere-se a essa questão em reportagem a respeito de Albert Einstein, que costuma ter

sua “Teoria da Relatividade Especial”, de 1905, confundida com o relativismo. Einstein teria dito, ao contrário: “A minha teoria é absoluta”, mas o senso comum e o “relativismo anticientífico e

preguiçoso”, nas palavras de Lobo (2005:81), costumam interpretar as idéias de Einstein

Santos (2005a) acredita que só existem saberes e práticas a serem traduzidas se são efetivamente usadas por grupos sociais. Os tradutores precisam estar enraizados nas práticas e saberes que representam, que desejam compartilhar, inclusive para conhecer seus limites e motivar-se a buscar completude em outros saberes e práticas. A tradução pode ser realizada, de acordo com o autor, entre dirigentes, ativistas ou intelectuais orgânicos desses grupos20, comunidades, movimentos ou organizações, ou ainda por artistas ou intelectuais que se solidarizam com os movimentos. E não basta ser um simpatizante que observa superficialmente, é preciso estar engajado nas práticas de alguma maneira. Gramsci (1978) já dizia que o “novo intelectual” não se baseia na eloqüência, mas no envolvimento ativo na vida prática, como construtor, organizador, persuasor, continuamente, usando a ciência em sua concepção humanista para exercer sua função.

1.1.3.1 Tradução na universidade

Sendo o trabalho de tradução um dos meios fundamentais para a construção da ecologia de saberes, seria possível pensar na universidade enquanto espaço de tradução, ou nos universitários como tradutores de práticas e saberes distintos?

Santos (2005a) vê na universidade muitos limites para que se exerça em seu contexto um bom trabalho de tradução, pois entende que a sociologia das ausências não é convencional e, portanto, “não pode ser exercida nos lugares convencionais de produção do saber científico hegemônico, as universidades e os centros de pesquisa” (2005a:135). O autor admite que é possível construir saber científico contra-hegemônico nesses lugares, mas, em geral, não se consegue produzir ecologias de saberes, diálogos entre diferentes tipos de saberes, sendo a ciência um deles, com critérios e objetivos alternativos de saber, com objetivos partilhados de transformação (Santos, 2005a). Para ele, a ecologia de saberes exige proximidade com as práticas, com a aplicação, e que os protagonistas da ação e da produção de conhecimento sejam os mesmos.

A ecologia de saberes confronta, portanto, o senso comum científico convencional (Santos 2005a), exigindo revolução epistemológica no seio da universidade. Não pode, pois, ser decretada por lei. A ecologia de saberes seria uma forma de extensão ao contrário, de fora para dentro da universidade, promovendo diálogos entre o saber científico produzido pela universidade e saberes leigos, populares, tradicionais, filosóficos,

20 Gramsci (1978) distingue duas categorias gerais de intelectuais: os tradicionais e os orgânicos. Os intelectuais orgânicos seriam pessoas com capacidades dirigentes e técnicas, criadas no contexto de

um determinado grupo social, com a função de dar homogeneidade e consciência da própria função do grupo nos campos econômico, político e social. A característica essencial de um intelectual orgânico é que surge do próprio grupo, representa-o e domina capacidades técnicas e gerenciais do grupo. Corresponde à especialização de aspectos da atividade típica de um grupo ou classe.

religiosos, urbanos, camponeses, provindos de culturas não ocidentais - indígenas, de origem africana, oriental etc. – que circulam na sociedade (Santos, 2004b:76).

A ecologia de saberes que é permitida pela dupla ruptura epistemológica, de acordo com Santos (2004b), pode repercutir na universidade pela transição do modelo de conhecimento universitário para o conhecimento pluriuniversitário. Como tipo ideal, o conhecimento pluriuniversitário é contextual, tendo como princípio organizador de sua produção a aplicação que lhe pode ser dada. A formulação dos problemas e a definição de seus critérios de relevância são resultado de um processo compartilhado entre pesquisadores e quem utiliza o conhecimento. É também heterogêneo e transdisciplinar, baseado no diálogo com outros tipos de conhecimento. Sua produção demanda sistemas organizacionais mais abertos, flexíveis, menos perenes e menos hierárquicos (Santos, 2004b: 41).

O modelo original da universidade, e que define sua institucionalidade, é baseado em relações unilaterais com a sociedade. No conhecimento pluriuniversitário, a unilateralidade é substituída pela interatividade, potencializada pelas tecnologias de comunicação. A sociedade deixa de ser objeto da ciência, e ambas compartilham a condição de sujeitos (Santos, 2004b).

Spink, P. (2001b) concorda que na convencional sabedoria do mundo da universidade há pouco espaço para a idéia de que uma boa teoria possa vir de outro lugar que não dela própria. É a idéia de que a periferia não tem o que ensinar ao centro, embora os que enfrentam os problemas na prática precisam ser capazes de desenvolver conhecimentos a partir de seu próprio contexto, seus recursos disponíveis. Spink, P. (2001b:219) lembra que “universidade não é sinônimo de conhecimento”. A universidade é um dos espaços sociais, entre muitos, de construção e transmissão de conhecimentos, embora costume comportar-se como se estivesse sozinha, o que se reflete, inclusive, pela linguagem da arquitetura do campus. Se a universidade pode ser vista como a casa do conhecimento, é preciso considerar as várias outras casas na vizinhança, defende ele.

Spink, P. (2001b) propõe a questão: terá a universidade condições de absorver as atuais e futuras tensões entre conhecimentos e seus distintos mecanismos de explanação e disseminação, em especial no contexto das contradições da modernidade tardia? Para Delanty (2001:151), “o limitado universalismo que é preservado na universidade e que justifica o uso continuado do termo ‘universidade’, a despeito da pluralização e mesmo da maior diferenciação, é o da interconectividade”, o que tem relação com o papel da tradução.

A universidade pode ser um espaço público de mediação cultural entre leigos e especialistas, de mediação de conhecimentos acadêmicos e de conhecimentos enquanto cultura, de mediação e conexão de diversos discursos na sociedade, um espaço de interconectividade, de comunicação, acredita Delanty (2001), por meio de ligações múltiplas e recíprocas. É uma visão universalista da universidade, cujo papel-chave está ligado à comunicação reflexiva e à cidadania (Delanty, 2001). A universidade pode, assim, contribuir para expandir a reflexividade da capacidade discursiva da sociedade, e, por meio disso, fortalecer a cidadania. Nesse sentido, um professor entrevistado para esta tese sugere que a universidade desempenhe um papel de articuladora de diversos espaços de comunicação (educação, televisão, sistemas de busca, de pesquisa), ao invés “de ser uma torre isolada de conhecimento de papel”.

A familiaridade com diferentes linguagens também pode facilitar o exercício da tradução. O cineasta Fellini teria declarado certa feita que para fazer cinema não costumava inspirar-se em cinema. Lia muito (Nicolini, 2004; Ribeiro, 2003), num processo de criação sinestésica, pela constante migração de uma forma de percepção para outra. A capacidade de freqüentar várias linguagens e de traduzir uma em outra seria uma característica de grandes artistas, criadores, inovadores (Ribeiro, 2003). Assim como Fellini não via filmes para fazer cinema, a universidade pode buscar inspiração em outras linguagens, ser menos fechada em si mesma e na sua linguagem própria, absorver mais de outras linguagens e chegar a outros públicos (Nicolini, 2004; Ribeiro, 2003; Siqueira, 2004), aprimorando suas capacidades de tradução. “À medida que a ciência se insere mais na sociedade, esta insere- se mais na ciência” (Santos, 2004b:43).

É importante, para isso, criar espaços institucionais que permitam ou facilitem a ocorrência de ações diversas de valorização dos diferentes tipos de conhecimentos, o que passa por imaginação epistemológica e democrática. O compartilhar, o diálogo, o confronto, por pesquisadores, estudantes, integrantes de grupos e comunidades as mais diversas, pode gerar comunidades epistêmicas mais amplas, fazendo da universidade um espaço público de conexão, de interconhecimento, no qual todos possam ocupar a posição de aprendizes.

Spink, P. (2001b) acredita que se a universidade não entende essa necessidade de diálogo, baseado no reconhecimento e no respeito mútuo, por meio de relações horizontais, torna-se cada vez mais desconectada das comunidades. Um dos professores entrevistados reforça a idéia da universidade como um lugar de encontro, ao mesmo tempo em que reconhece que a disciplina da qual faz parte é incapaz de viver ou lidar com alguns outros saberes. Reitera, no entanto, que não há alternativas: “Para mim, não é uma questão se a universidade tem esse papel. Ou ela tem, ou ela pára de existir”. Ele acredita que ao

desempenhar o papel de servir de base para o encontro, a universidade encontra a oportunidade de retomar seu nome base universidade, universitas. Diz que tem procurado realizar esse trabalho no âmbito da universidade de forma a, efetivamente, dar voz às pessoas e “... eu tenho gostado muito dele, embora é complicado, exaustivo, você leva bordoada de todo o lado...”.

Mas não adianta, segundo este entrevistado, criar espaços para que as pessoas tenham voz. O problema não seria esse, pois muitos já têm voz, como os movimentos sociais, que nunca tiveram dificuldades para descobrir o que estava acontecendo, sempre tiveram facilidade para o diálogo e fazem isso constantemente. Certamente os movimentos sociais podem aproveitar espaços de discussão na universidade, “... mas nosso problema é outro, é tentar dizer o que nós podemos adicionar horizontalmente a esta discussão, não verticalmente”, enfatiza.

Uma professora entrevistada menciona a importância da universidade definir sua identidade para que possa trocar, contribuir para a discussão. Ela considera que a universidade tem uma característica própria, uma formação específica anterior, que deve ser valorizada. E tem a obrigação de contribuir com essa outra forma de olhar. Outro entrevistado faz um comentário nesse sentido, dizendo que, durante todo o século XX, os acadêmicos lutaram para evitar que as ciências fossem novas religiões, mostrando seus limites, mas também suas contribuições.

Nos discursos oficiais e nas plataformas de muitos governos, universidades e projetos, o respeito a outros conhecimentos e a disposição para o diálogo e para a construção conjunta estão presentes. Analisando relatos de experiências desenvolvidas no âmbito do Programa Universidade Solidária21, Carrijo e Moraes Filho (2002) observam como característica geral o fato de que a universidade não se posiciona como única detentora de conhecimento e as relações baseiam-se em propostas de ouvir a comunidade. Para conhecer como essa disposição para a escuta é exercida na prática, seria necessário conhecer o cotidiano de cada projeto, de cada ação.

Nas intenções, pelo menos, essa proximidade e disposição para a troca estão em evidência em diversos espaços. Pelo que se discutiu até aqui, no entanto, sabe-se dos limites para que se exerçam na prática. Nesse sentido é que se propõe olhar para as práticas de programas de relação entre universidade e sociedade para verificar como a aprendizagem e as relações entre diferentes saberes articulam-se entre si. Pode-se debater, a partir disso, o desempenho do papel de tradução de saberes e práticas no âmbito das atividades típicas da universidade.