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PRÁTICAS DE ARTICULAÇÃO DE SABERES NOS PROGRAMAS ANALISADOS

CAPÍTULO 3 – PROGRAMAS DE RELAÇÃO ENTRE UNIVERSIDADE E

3.4 PRÁTICAS DE ARTICULAÇÃO DE SABERES NOS PROGRAMAS ANALISADOS

Pode-se falar da articulação entre saberes a partir de diferentes perspectivas e em diferentes níveis. Em relação às comunidades de prática, pode-se analisar a maneira como os saberes são construídos e compartilhados no interior de cada comunidade. Pode- se analisar essa articulação nas fronteiras entre comunidades de prática, geralmente no âmbito de uma constelação de comunidades de prática (Wenger, 1998). A análise pode ser enriquecida pela perspectiva da ecologia de saberes, que enfatiza os diferentes tipos de saberes presentes na sociedade, pensando na possibilidade de a universidade cumprir um papel de tradução de práticas distintas (Santos, 2004a).

Há inúmeros mecanismos para a articulação de saberes, tanto dentro da própria universidade, quanto entre universidade e sociedade, os quais exigem diferentes tipos e graus de engajamento ou participação, e de reificação. Pode-se articular saberes em eventos pontuais, por meio do diálogo entre as pessoas, ou pode-se realizar projetos e atividades em conjunto para construir algo ou alcançar um objetivo comum, o que costuma envolver participação e maior proximidade entre os participantes. Diferentes saberes também podem ser compartilhados por meio de documentos, informações sistematizadas, artigos etc. Além de elementos primordiais, como a linguagem, e elementos estruturais, como meios de comunicação e mecanismos de gestão que permitem a interação entre pessoas e conhecimentos, um aspecto fundamental que pode facilitar ou inibir a troca e a construção compartilhada de novos saberes é a maneira como são conduzidas as práticas cotidianas; seja em projetos compartilhados por várias pessoas, em eventos ou debates que são promovidos, ou quando se realiza uma publicação, em função da linguagem e dos meios utilizados para disseminá-la.

De acordo com o que foi discutido no capítulo anterior, as situações que fomentam o surgimento de comunidades de prática compostas tanto por universitários quanto por não-universitários tendem a ser especialmente ricas enquanto oportunidades de

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In: CALDERÓN, Adolfo Ignacio e SAMPAIO, Helena (orgs.) Experiências universitárias, experiências solidárias. São Paulo: Olho d’Água, 2001 (Coleção socializando experiências; 2).

aprendizagem. As comunidades de prática formadas por pessoas com características sociais, culturais e profissionais mais homogêneas também constituem espaços importantes de aprendizagem, na medida em que propiciam aprofundar certos tipos de conhecimento e são fundamentais nos processos de definição de identidade. No âmbito de programas de relação entre universidade e sociedade, possivelmente, o ideal para a promoção da aprendizagem seja a oportunidade de que seus integrantes participem de distintos tipos de comunidades de prática: as mais homogêneas ou especializadas – nas quais é possível desenvolver conhecimentos específicos mais profundamente e as heterogêneas ou diversas, compostas por pessoas de diferentes áreas do conhecimento e setores da sociedade – nas quais é possível aprender com outros repertórios, outras visões de mundo, outros saberes.

Entre os programas analisados, mecanismos de compartilhamento de saberes com públicos diferentes, especialmente mais populares, são mais evidentes em alguns casos do que em outros. Para fazer afirmações nesse sentido seria necessário, porém, acompanhar as práticas cotidianas de cada programa82, e ouvir outras pessoas, já que o fato de existir um mecanismo institucional de aproximação entre universidade e sociedade não garante que se compartilhem efetivamente distintos saberes. Uma das dificuldades é identificar o quanto saberes não-científicos acessados por meio das práticas promovidas por esses programas são incorporados a seu próprio cotidiano, a seus modos de agir e aos conhecimentos que produzem a partir desses contatos.

O exemplo da ITCP/UFRJ parece interessante nesse sentido, pois na sua origem está a tentativa de “[...] pôr o saber universitário, técnico e científico à disposição das classes populares” (Bocayuva, 2001:237), de forma a organizá-lo e operacionalizá-lo para construir empreendimentos de caráter coletivo, integrando-os no mercado de trabalho. Além de colocar o saber universitário à disposição, a ITCP/UFRJ desenvolve metodologias de incubação de cooperativas a partir de suas experiências em um trabalho conjunto com populações empobrecidas para a formação de cooperativas populares. A partir desse conhecimento gerado em conjunto, procura disseminá-lo e articular-se a outras universidades e atores na discussão e implementação de políticas públicas relacionadas à geração de emprego e renda e economia solidária.

Entre os programas apresentados, os temas de pesquisa que privilegiam costumam relacionar-se a necessidades concretas da sociedade brasileira na atualidade,

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Os desafios e possibilidades de democratização da gestão interna e externa de programas de relação entre universidade e sociedade, e da universidade como um todo, serão discutidos em mais detalhes no capítulo cinco desta tese.

82 No caso específico da residência social, que acontece no âmbito do PDGS, foi possível identificar

comunidades de prática envolvendo universitários e não-universitários, formadas a partir do Programa ONG Forte 2004. Essa identificação foi possível pelo envolvimento da autora com as práticas cotidianas do Programa.

como: geração de emprego e renda, cooperativismo popular e economia solidária (Bansol, ITCP, PDGS); saúde comunitária e combate à violência (FCCV); modelos de desenvolvimento sócio-territorial e modelos de formação em gestão social (PDGS); inovações na gestão pública em níveis subnacionais de governo e combate à pobreza (GPC).

Para avaliar em que medida cada pesquisa nasce de um diálogo com a sociedade e é conduzida de forma a contar com a participação de setores da sociedade e a dar retorno efetivo a ela, são necessários novos estudos. Independentemente da relevância social dos temas que os pesquisadores privilegiam, Latour e Woolgar (1997) apontam que são diversos os interesses e preocupações que interferem nos processos e nos resultados científicos que produzem, como questões políticas e de financiamento. Não cabe, aqui, questionar as motivações dos pesquisadores que são parte dos programas analisados ao escolherem seus temas de pesquisa. Cabe, no entanto, fazer a ressalva de que o fato de serem programas orientados à articulação de diferentes saberes e trabalharem com temáticas que envolvem questões públicas e sociais, não implica que estejam livres de influências políticas, dos desejos de reconhecimento e de conquista de credibilidade e oportunidades de financiamento. Tudo isso interfere nas escolhas dos temas que estudam e na forma como conduzem os processos.

Um estudante entrevistado observa que é importante reconhecer quem participa da construção em processos de produção de conhecimentos. Na economia de significados, os valores e propriedades dos significados são interdependentes. Assim, a apropriação por uns pode implicar alienação para outros (Wenger, 1998). Por exemplo, quando uma comunidade profissional define e reivindica a propriedade de um conceito, como saúde ou justiça, gera práticas e artefatos relacionados a esse significado, que são, de certo modo, impostos a outras comunidades. O discurso técnico de algumas comunidades profissionais, muitas vezes, constitui demandas pela propriedade das questões em si e acabam desvalorizando os entendimentos não técnicos sobre essas questões, “[...] embora as definições de temas como saúde e justiça não sejam no limite primeiramente técnicas” (Wenger, 1998:201).

Essa questão remete ao exemplo do Fórum Comunitário de Combate à Violência, que, em sua origem, no projeto UNI, ao abrir para a discussão com a população as prioridades de saúde, identificou que a violência era uma preocupação prioritária. Esse tema, no entanto, não fazia parte das preocupações mais gerais dos profissionais de saúde. Pelo diálogo com as populações, abrindo as possibilidades de participação de outros setores na economia de significado, puderam ampliar suas noções de promoção da saúde e incorporá-

las na formação dos profissionais de saúde na universidade, embora não tenha sido um processo rápido, linear e fácil.

Na área de gestão, percebe-se que o recente interesse da academia por temas da gestão social, das organizações da sociedade civil, leva à definição de termos como planejamento, sustentabilidade e avaliação. Os significados gerados na academia, muitas vezes em outros países e contextos, são reproduzidos e impostos às organizações, de maneira que se sentem desatualizadas, fora do jogo, se não dominarem esses recursos de gestão. Pode ocorrer, ainda, de alguém de fora apropriar-se do significado produzido originalmente num contexto ou comunidade específica, gerando alienação e impedindo a comunidade de usar seus próprios significados. Quem gerou certo significado pode não mais reconhecê-lo. Ao levar um conhecimento e, por conseqüência, seus conceitos, ferramentas, modos de fazer etc., para outro contexto, é preciso, pois, abrir espaço para que seus significados sejam negociados naquele contexto específico.

O compartilhar de atividades, promovendo aprendizagem pela interação de repertórios diferentes, parece ser importante fonte de aprendizagem para todos os envolvidos, embora tenda a gerar conflitos, o que é natural. O confronto de visões, em espaços de debates os mais horizontais possíveis, permite justamente a construção de um conhecimento novo e não a apropriação de um pelo outro como recurso.

Na experiência do FCCV, havia, no início, dificuldades na relação, na compreensão mútua, especialmente pela linguagem e pelos posicionamentos muito distintos entre os integrantes. Segundo a coordenadora do Fórum, os conflitos foram sendo trabalhados, explicitados, abordando-se questões de relação, usando-se metodologias e técnicas apropriadas para isso, inclusive com participação de um profissional externo. O objetivo era possibilitar a negociação, o diálogo, “mesmo que arduamente”, procurando compreender as dificuldades do outro, o papel do outro, e os limites das instituições. Ao longo do tempo, segundo a coordenadora do Fórum, por meio do trabalho compartilhado, foi possível que cada um compreendesse melhor o papel e os posicionamentos dos demais. Os conflitos, quando trabalhados, constituem oportunidades de aprendizagem, o que não significa que deixem de acontecer.

A coordenadora do projeto Práticas Públicas e Pobreza, realizado no âmbito do GPC, aponta que a discordância é salutar, porém ainda é encarada como conflituosa: “[...] ainda percebemos os confrontos como uma coisa ruim. Precisamos aprender que as críticas podem ser uma coisa boa, complementam, oferecem a oportunidade de olhar sob um outro ângulo”.

O projeto Práticas Públicas e Pobreza foi criado visando um tipo de interação mais ativo com as experiências com as quais parece haver muito a aprender. Além de captar e disseminar informações, procura-se estreitar contatos, estimular debates e reflexões. Um dos objetivos é perceber a sensibilidade de políticas sociais a temáticas específicas, como a questão de gênero. Para isso, uma das estratégias é a realização de seminários. São escolhidos programas e projetos considerados eficazes por diferentes razões, e pessoas envolvidas com eles são convidadas a participar de uma discussão sobre o caso pela ótica de gênero, por exemplo. Um pesquisador visita o local onde é desenvolvida a experiência e coleta dados, os quais apresenta em um encontro de dois dias, em que participam grupos feministas, pessoas de governos, técnicos, acadêmicos, pessoas de cada um dos programas e pessoas da comunidade ou do público beneficiário.

Durante o evento, as pessoas discutem, opinam, questionam e entram em confronto. Há oportunidade para que percebam questões relevantes relativas à temática em debate sobre as quais nunca tinham pensado, ao ouvir diferentes atores e opiniões. É possível, ainda, rever conceitos, confrontar posições, perceber outras perspectivas. A intenção com esses seminários é, também, reforçar a idéia da universidade como um lugar de encontro, como espaço de debate entre diferentes perspectivas.

Segundo a coordenadora do projeto, muitas pessoas tinham dificuldade de perceber esses seminários como espaços de escuta, de confronto e de construção de conhecimentos. A proposta não era de disputa, mas de confronto entre divergentes, entre práticas e conhecimentos que diferem, mas podem complementar-se. Pelo contato com o divergente, há o exercício de aceitar o contrário, e a existência de vários olhares, abordagens, conceitos, objetivos, públicos-alvo, metas. Segundo ela, a intenção era colocar no mesmo espaço, “pessoas que no dia a dia não se olham, não se ouvem, não se respeitam”. A idéia nos eventos é de que todos têm a mesma legitimidade, os saberes não são hierarquizados, mas horizontalizados.

A entrevistada aponta que muitas vezes o diálogo é truncado, especialmente pela linguagem, pela dificuldade que cada segmento apresenta para entender o outro. À medida que foram sendo realizados os seminários, percebeu-se que quanto mais havia participação de pessoas que representavam o público beneficiário, mais o diálogo crescia. E essas pessoas sentiam-se valorizadas pela oportunidade de se expressar, desabafar, reivindicar e até mesmo entrar em conflito. A coordenadora observou que os catadores, por exemplo, embora tivessem dificuldade de entender plenamente a linguagem do mundo acadêmico, pareciam conseguir assimilar sem prejudicar o entendimento geral, não se sentiam inferiorizados por essa dificuldade.

Para tornar possível o debate, evidenciou-se que era preciso que os participantes partilhassem de alguns pressupostos, já que, dependendo da visão, da experiência e do grau de proximidade com os temas e as práticas, as pessoas podem apresentar atitudes que representam retrocessos na discussão. A homogeneidade, por outro lado, pode levar ao pensamento único. : “buscamos uma homogeneidade em termos de comprometimento com a seriedade do trabalho científico e crença no trabalho empírico”, ressalta a coordenadora do projeto.

A Escola Livre de Desenvolvimento Solidário, que está sendo constituída no âmbito do GPC, pode ser um espaço significativo de articulação de saberes. A idéia é criar um “ambiente rico, de altíssimo nível cultural, mesmo que haja pessoas semi-analfabetas”, diz um professor que colabora com a iniciativa. O fato de essas pessoas não terem estudado na escola formal implica que o formato das aulas e dos currículos sejam diferentes do tradicional das escolas, sobretudo valorizando os saberes que cada um dos participantes possui.

Outros mecanismos de articulação de saberes no âmbito de cada Programa são discutidos nos itens adiante, relacionados ao referencial da teoria social da aprendizagem.

3.5 Elementos de comunidades de prática nos programas de relação