• Nenhum resultado encontrado

APRISIONAMENTO, GÊNERO E CRIMINALIDADE FEMININA

LIBERDADE VIGIADA: RACISMO, CRIMINALIDADE FEMININA E

APRISIONAMENTO, GÊNERO E CRIMINALIDADE FEMININA

Assim como a prisão, as formas mais variadas de castigos “não se des- tinam a suprimir as infrações”, se constituem como modos para dis- tinguir, distribuir e utilizar as práticas de transgressão das leis (FOU- CAULT, 1999, p. 226). Em sua análise das relações de poder no filósofo francês Michel Foucault, Carvalho (2017, p. 103) mostra que “a referên- cia à criminalidade, nas sociedades modernas, está associada a classes sociais excluídas”. No entanto, se faz necessário acrescentar a proble- mática das relações de gênero e das práticas de discriminação racial na análise sobre o aprisionamento e a criminalidade feminina na sociedade brasileira.

Angela Davis (2019) mostra que a prisão foi criada com o objetivo de proporcionar a reflexão de apenados e apenadas pelos crimes come- tidos, por meio da penitência – de onde advém a terminologia peni- tenciária – com objetivo de moldar os hábitos dos indivíduos. Goffman

(2015, p. 11) define as prisões como um tipo de instituição total. Para o autor, as instituições totais são caracterizadas pelo grande número de pessoas subordinadas a um mesmo tipo de tratamento, pela padroniza- ção das atividades e pelo distanciamento da sociedade imputado aos in- divíduos internados. Goffman dispõe, ainda, que a prisão corresponde ao terceiro tipo de instituição total, a qual é organizada “[…] para pro- teger a comunidade contra perigos intencionais, e o bem-estar das pes- soas assim isoladas não constitui o problema imediato” (GOFFMAN, 2015, p. 17).

Desta maneira, é possível notar, mais uma vez, que o aprisionamen- to de pessoas continua por atingir mais que somente o direito à liberda- de delas, atinge seus corpos, de maneira indireta, mas não menos cruel, o que pode impossibilitar, inclusive, a reinserção social dos sujeitos submetidos ao cárcere. Como ressalta Davis (2019b, p. 52), “a punição, ao longo da história, passou de espetáculo público às formas mais es- condidas de violência, especialmente com a criação dos presídios”. A realidade de uma penitenciária só é conhecida, realmente, por quem teve o infortúnio de cumprir pena, de resto, são imagens e informações difundidas pela mídia que muito pouco nos dizem a respeito do que verdadeiramente acontece atrás dos muros de uma prisão.

No livro A mística feminina (1971), Betty Friedan nos apresenta estu- dos de caso realizados com mulheres americanas, donas de casa. Para algumas das mulheres entrevistadas, era muito difícil lutar contra o que as incomodava, sendo mais fácil render-se à submissão, à dedicação ex- clusiva aos filhos, filhas e esposos, como se o cuidado com a casa e com as crianças fosse uma função a ser exercida somente pelas mulheres. Esta ideia tão incrustada, até hoje, é fruto de uma construção social do gênero, ou como nomeou Friedan (1971), da “mística feminina”, que diz em qual lugar as mulheres podem e devem estar, fazendo com que sintam-se incapazes de sair desse marasmo e até mesmo culpadas, caso ousem quebrar os grilhões que as prendem às realidades impostas pelo sexismo. Segundo Friedan (1971, p. 291), “a mística gostaria que a

mulher renunciasse à ambição pessoal. Casamento e maternidade são o objetivo; fora isso só se espera que a mulher tenha ambição pelo ma- rido e filhos”.

Infelizmente, malgrado todas as evoluções que tivemos neste sen- tido, boa parte da sociedade, principalmente os homens, ainda conti- nuam reproduzindo pensamentos sexistas, definindo quais os lugares que podem e devem ser ocupados pelas mulheres, o que, consequen- temente, ocasiona uma adaptação por parte delas, ou seja, a maioria se acostumou e se adaptou aos lugares que lhe foram impostos social- mente, sem se rebelarem contra isso, renunciando, por vezes, aos seus desejos pessoais e profissionais, aceitando a subalternidade, abdicando de sua vida em nome de algo que lhe foi imposto como desígnio da natureza.

O que se percebe é que as ações misóginas presentes na sociedade, até os dias atuais, advêm do incômodo que sentem os homens de ve- rem as mulheres – consideradas durante tanto tempo como inferiores, cidadãs de segunda classe – como iguais. Tanto bell hooks (2014) quan- to Lélia Gonzalez (2011) relatam as dificuldades que as mulheres negras encontravam dentro do próprio movimento negro e feminista. Segun- do as autoras, os homens negros relegavam às mulheres posições subal- ternas e reproduziam práticas patriarcais dentro do movimento.

Durante muito tempo, as mulheres negras entenderam que o pro- blema que enfrentavam era apenas racial, não entendiam o sexismo como uma questão a ser combatida, conjuntamente, com o racismo. Na visão de bell hooks (2014, p. 7) “as mulheres negras […] aprenderam a aceitar o sexismo como natural” e, consequentemente, sua luta se dava apenas em face do problema racial.

A discriminação em face das mulheres negras também foi propa- gada dentro do movimento de mulheres, desta vez, o fator racial fora a causa das discriminações. O movimento feminista na sua primeira onda, eclode no século XIX com o movimento sufragista, momento em que as mulheres reivindicam o direito ao voto e o direito de trabalhar

fora de casa, sem que precisassem da autorização do marido para tanto, porquanto nessa época, o sistema capitalista já estava em vigor e o tra- balho doméstico não era considerado mais como um trabalho remune- rado e relevante economicamente. Silvia Federici (2017) traz a noção de que o trabalho doméstico passou a ser considerado como uma vocação feminina, sendo, portanto, desvalorizado e dispõe que “Essas mudanças históricas – que tiveram um auge no século XIX com a criação da figura da dona de casa em tempo integral – redefiniram a posição das mulhe- res na sociedade e com relação aos homens” (FEDERICI, 2017, p. 145).

A teórica bell hooks (2019), ao tratar do movimento surgido no século XIX com as sufragistas, predominantemente brancas, que lu- tavam pelo direito de participarem da vida política por meio do voto, mas também pelo direito de trabalharem fora de casa, ressalta que as mulheres negras já trabalhavam fora e não tinham escolha neste sentido, pois viviam em condições, por vezes, de extrema pobreza, e não possuíam meios de prover o lar se não fosse dessa maneira. A partir disso, a autora põe à mostra que o movimento feminista não levava em conta as peculiaridades e demandas de todas as mulheres, mas tão somente das mulheres brancas, pois para as mulheres negras e/ou das classes operárias ficar em casa, fazendo apenas o trabalho doméstico, poderia ser visto como liberdade, dada a realidade em que estavam inscritas.

Gonzalez (1983, p. 224) confirma a lógica trazida acima, porquanto, para a autora, a relação entre sexismo e racismo “[…] produz efeitos violentos sobre a mulher negra em particular”. Do mesmo modo que há uma naturalização da inferioridade da população negra, também há com relação à mulher.

Desta forma, a mulher negra, em particular, sofre duplamente os efeitos da estigmatização. Federici (2017, p. 200) diz que houve uma infantilização da mulher durante a ascensão do regime capitalista. Na perspectiva de Lélia Gonzalez (2011, p. 13), a infantilização em face das mulheres negras é, ainda, uma realidade.

Ao imporem um lugar inferior no interior de sua hierarquia (apoiados nas nossas condições biológicas de sexo e raça), suprimiram nossa humanida- de, justamente porque nos negam o direito de sermos sujeitos, não só do nosso próprio discurso, senão da nossa própria história. (GONZALEZ, 2011, p. 13)

De acordo com as informações colhidas no início da pesquisa de campo, numa conversa com a psicóloga e com a assistente social lota- das no Presídio Regional Feminino de Patos (PB), foi confirmado o que já tínhamos constatado em outros estudos, o fato de que as mulheres são abandonadas por seus familiares e por seus companheiros e que o contrário não acontece. Deste modo, é possível notar os efeitos do sexismo, ou seja, os homens criminosos são aceitos com maior compla- cência pela família e por suas companheiras, mas o mesmo não aconte- ce com as mulheres que cometem ou cometeram crimes.