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GRAFFITI TÊXTIL: COSTURANDO NOVAS EXPERIÊNCIAS EM ARTE TÊXTIL

Geysa Danielle Barbosa de Moura Silva Antonio Vieira da Silva Filho

APRESENTAÇÃO

 

Não é um desperdício de fio? Quero dizer, você não deveria estar tricotando algo útil para bebês prematuros sem-teto com tuberculose? Sempre achei essa pergunta estranhamente limitada. Você iria dizer a um pintor ou escultor para usar seus materiais com algo mais prático? “Ei, Michelangelo! O que você acha que está fa- zendo esculpindo um sujeito nu gigante quando você poderia estar fazendo um bom conjunto de banheiro funcional para o hospício local?” (O’FARRELL, 2014. In: HAVERI, 2016, tradução nossa)

No contexto social brasileiro de produção têxtil contemporânea ainda é possível encontrar mulheres na porta de suas casas bordando, fazendo crochê, entre tantas outras artes manuais. Essa atividade podia ocorrer dentro de casa ou nas calçadas, conectando mulheres da vizinhança que detinham tais habilidades. Comumente o fazer têxtil é um conhecimen- to que perpassa gerações de modo que as famílias brasileiras, quase sempre possuem um membro (frequentemente do gênero feminino), mesmo que distante, com algum tipo de habilidade voltada para este tipo de produção. A produção têxtil passou a construir redes de mulhe- res conscientes ou não do contexto social e político que as envolve.

Compreendemos esse fazer têxtil como uma forma de expressão artísti- ca. Nosso entendimento utilizado para este artigo acerca de arte considera

o termo como algo mais amplo do que a convenção social costuma iden- tificar por arte, em sentido estreito, enquanto expressões da subjetividade humana dotada de regras que são legitimadas por determinadas institui- ções, atribuindo-lhe valor social. Segundo o sociólogo Pierre Bourdieu:

O produtor do valor da obra de arte não é o artista, mas o campo de produ- ção enquanto universo de crença que produz o valor da obra de arte como fetiche ao produzir a crença no poder criador do artista. Sendo dado que a obra de arte só existe enquanto objeto simbólico dotado de valor se é conhe- cida e reconhecida, ou seja, socialmente instituída como obra de arte por espectadores dotados da disposição e da competência estéticas necessárias para a conhecer e reconhecer como tal, a ciência das obras tem por objeto não apenas a produção material da obra, mas também a produção do valor da obra ou, o que dá no mesmo, da crença no valor da obra. (1996, p. 259) O campo artístico é um local de disputas, os agentes que fazem parte, principalmente os que detêm uma posição mais privilegiada, determi- nam quem é artista e que tipos de obras devem ser consideradas como obras de arte. Dessa forma, definir o que é arte depende de todo um con- junto de determinações idealizado e estabelecido por agentes do campo artístico. No entanto, iremos subverter as determinações do campo artís- tico, utilizando para essa pesquisa o termo arte têxtil que engloba as mais diversas produções como bordado, crochê, tapeçaria, costura, entre ou- tros. Pretendemos enquadrar as produções têxteis dentro da concepção de arte e não de artesanato por considerarmos que a distinção entre arte e artesanato foi criada propositadamente para hierarquizar as produções feitas por uma determinada classe social e também dentro de uma hie- rarquia de gênero, de acordo com a historiadora de arte Rozsika Parker:

Claramente, existem grandes diferenças entre pintura e bordado; diferen- tes condições de produção e diferentes condições de recepção. Ao invés de reconhecer que bordado e pintura são diferentes, mas que ambos se

enquadram como arte, o bordado e os ofícios associados ao ‘segundo sexo’ ou à classe trabalhadora são considerados com um menor valor dentro do campo artístico. (1996, p. 5, tradução nossa)

No decorrer do nosso texto esse posicionamento ficará mais com- preensível à medida que apresentarmos a estrutura que foi criada den- tro do campo artístico que suscitou o rebaixamento das artes têxteis a uma produção menor e desprestigiada.

No início do século XXI, as produções têxteis começam a tomar novas formas e significados. Em 2005, a artista Magda Sayeg inicia um movimento chamado Yarn Bombing, que numa tradução mais literal do termo significa bombardeio de linhas (HAVERI, 2016). Utilizaremos o termo graffiti têxtil como forma de facilitar o entendimento sobre a produção artística a qual estamos abordando neste artigo, que é deter- minado por características bem específicas como técnicas e materiais utilizados. Nosso recorte se concentra em trabalhos que tenham as mesmas características atribuídas às artes públicas:

O sentido corrente do conceito refere-se à arte realizada fora dos espaços tradicionalmente dedicados a ela, os museus e galerias. Fala-se de uma arte em espaços públicos, ainda que o termo possa designar também in- terferências artísticas em espaços privados, como hospitais e aeroportos. A ideia geral é de que se trata de arte fisicamente acessível, que modifica a paisagem circundante, de modo permanente ou temporário. (ENCICLO- PÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras)

Por graffiti têxtil entendemos as produções têxteis construídas em espaços pouco convencionais a esse tipo de arte. Essas produções se utilizam de diversos tipos de técnicas e/ou materiais associados ao uni- verso têxtil, tais como: crochê, tapeçaria, bordado, costura, linhas, lãs, malhas, tecidos etc. Para nossa análise, utilizaremos as obras que fo- ram instaladas em espaços públicos como: paredes, fachadas de prédios,

praças, entre outras. O termo utilizado serve como facilitador para não causar ambiguidades diante de outras artes têxteis.

Figura 1- Instalação da artista Magda Sayeg (Malmö, Suécia) 2014.

Fonte: Página Knit Hacker.1

A escolha por esse tipo de produção se deve à subversão de sua apli- cação e uso: antes associada a um objeto doméstico, hoje transborda o espaço do lar e chega às ruas, aos espaços públicos numa dimensão atípica do tradicional. Nossa análise será feita a partir do contexto bra- sileiro, através de algumas produções de artistas e coletivos de mulhe- res. Pretendemos debater acerca da hierarquia artística, ou seja, a clas- sificação criada de acordo com um certo prestígio e valor cultural que determina uma maior ou menor valorização das expressões artísticas. Nossa discussão será fundamentada, principalmente, nas pesquisas so- bre mulheres artistas no Brasil da socióloga Ana Paula Cavalvanti Si- mioni (2007; 2010; 2019), pelo conceito de campo artístico proposto por

1. A artista Magda Sayeg cobriu a obra “Non-Violence” do artista Carl Fredrik Reuterswärd com crochê durante o festival anual Artscape em 2014. Disponível em: https://knithacker. com/2018/07/magda-sayeg-makes-art-not-war-in-support-of-non-violence/. Acesso em 21 ago. 2020.