• Nenhum resultado encontrado

RACISMO, EXCLUSÃO E CRIMINALIDADE NO BRASIL

LIBERDADE VIGIADA: RACISMO, CRIMINALIDADE FEMININA E

RACISMO, EXCLUSÃO E CRIMINALIDADE NO BRASIL

Com a reprodução de valores culturais patriarcais, as pessoas interna- lizam concepções racistas e sexistas em seus modos de pensar e ver o mundo. A dominação masculina, o sexismo e o racismo se instituciona- lizam por meio de práticas cotidianas, constituindo modos de sujeição

e subjetivação. No Brasil, formas de construção de subjetividades asso- ciadas à dominação masculina e ao racismo têm efeitos perversos na estrutura societária, estigmatizando e excluindo pessoas e grupos dos direitos fundamentais e do exercício da cidadania.

Para compreender as especificidades do racismo na sociedade brasi- leira é importante considerar a construção simbólica do mito da demo- cracia racial. No Brasil, o mito da democracia racial impede indivíduos e grupos de diferentes origens étnicas e sexuais, assim como de estratos e classes diferenciadas, de compreenderem os mecanismos de estigma- tização e as técnicas de exclusão social. Sem uma teorização sobre as relações de opressão e o racismo, práticas de discriminação racial que remetem a valores culturais originários da sociedade escravocrata per- manecem obliteradas.

Kabengele Munanga (1999, p. 80) mostra que “o mito da democra- cia racial”, reforçado por autores como Gilberto Freyre, “baseado na dupla mestiçagem biológica e cultural entre as três raças originárias, tem uma penetração muito profunda na sociedade brasileira”: exalta uma visão ilusória “de convivência harmoniosa entre os indivíduos de todas as camadas sociais e grupos étnicos”, permitindo aos grupos do- minantes “dissimular as desigualdades” sociais e econômicas. A concep- ção de democracia racial de Freyre reforça “o ideal de branqueamento” já que a mestiçagem aniquila as identidades afrodescendentes e indíge- nas (MUNANGA, 1999, p. 80).

Para Freyre (2006), a miscigenação ocorrida no Brasil teria corrigido o distanciamento entre a Casa-Grande e a senzala, ou seja, entre os gru- pos opressores e os grupos subalternizados. “A miscigenação que larga- mente se praticou aqui corrigiu a distância social que de outro modo se teria conservado enorme entre a Casa-Grande e a mata tropical; entre a Casa-Grande e a senzala” (FREYRE, 2006, p. 33). Neste sentido, as indígenas e as africanas, ou “a índia e a negra-mina a princípio, depois a mulata” e outras mestiças, teriam agido, na percepção de Freyre (2006, p. 33), “poderosamente no sentido de democratização social do Brasil”.

Desse modo, se constrói a ilusão da existência de relações harmôni- cas entre as classes sociais e os grupos étnicos na sociedade brasileira, bem como a afirmação da inexistência do racismo. No Brasil, “o pro- cesso de formação da identidade nacional recorreu” a concepções racis- tas e teorias eugenistas para sustentar o processo de branqueamento da sociedade (MUNANGA, 1999, p. 15).

As pesquisas realizadas por Florestan Fernandes (2008) evidenciam os estereótipos formados sobre a miscigenação na sociedade brasileira.

[…] A própria miscigenação podia ser concebida como uma artimanha para diluir o ‘negro’ entre os ‘brancos da plebe’. Eis o que asseverou uma informante, de mentalidade tradicionalista típica: ‘Considero o preto inferior ao branco e está por isso predestinado a desaparecer. Ele mistura-se com o branco atrasado, que está à sua altura moral, inte- lectual’. […] A conotação exclusivista às vezes desaparece, deixando, porém a convicção básica de que o ‘branqueamento’ constitui, por si mesmo, uma ‘elevação’. ‘O melhor que podemos fazer’ disse outro in- formante nesse sentido, ‘é continuar a tratá-los [aos pretos] com bon- dade, pois não têm culpa disso [serem degenerados] e ir, aos poucos, absorvendo-os, pois se os deixarmos isolados eles nunca melhorarão’. (FERNANDES, 2008. p. 396)

Como salienta Frantz Fanon (2008), o racismo se configura como uma estrutura que envolve fatores econômicos, sociais e psicológicos. Para Fanon (2008), há um racismo estrutural nas sociedades coloniza- das e colonizadoras, entendido como um arquétipo que reproduz o es- tereótipo do indivíduo selvagem e não civilizado. O racismo consiste no “conjunto dos preconceitos, mitos, atitudes coletivas de um grupo determinado” que inferiorizam os grupos subalternizados (FANON, 2008, p. 159). “No inconsciente coletivo do homo occidentalis, o preto, ou melhor, a cor negra, simboliza o mal, o pecado, a miséria, a morte, a guerra, a fome” (FANON, 2008, p. 161).

Como arquétipo e dimensão estrutural simbólica, o embranqueci- mento torna-se, nas práticas cotidianas, requisito para qualquer pessoa ser elevada à condição de ser humano. Dessa maneira, são construídos estereótipos e estigmas em relação a pessoas e grupos marginalizados, discriminados racialmente e excluídos da vida social.

O racismo latino-americano é suficientemente sofisticado para manter ne- gros e indígenas na condição de segmentos subordinados no interior das classes mais exploradas, graças a sua forma ideológica mais eficaz: a ideo- logia do branqueamento (GONZALEZ, 2011, p. 15).

A estrutura simbólica reproduzida por meio de relações sociais, discursos e ações constitui modos de subjetivação, institucionalizando mecanismos de estigmatização e práticas de discriminação racial. No Brasil, o racismo se caracteriza pela reprodução de um discurso que afirma a existência de relações raciais harmônicas. No entanto, pesqui- sas e teorias no âmbito das Ciências Sociais e Humanas evidenciam que o abismo entre as classes sociais na sociedade brasileira possui outro elemento que precisa ser considerado em qualquer análise sobre as prá- ticas cotidianas, caracterizado como um arquétipo que estrutura rela- ções de poder e opressão: o racismo.

Desse modo, a referência ao sistema escravocrata é essencial para a compreensão da estrutura societária brasileira. O sociólogo Jessé Souza (2019) aponta a continuidade do racismo na epistemologia das Ciências Sociais e Humanas, mesmo com o deslocamento do paradigma racista para o culturalismo. A base do racismo no culturalismo se observa na distinção entre “seres humanos de primeira classe e de segunda clas- se” (SOUZA, 2019, p. 19). Na sociedade brasileira, tanto a classe média quanto a elite se acham superiores em relação às outras classes sociais.

Com a incorporação de um eurocentrismo idealizado, a classe mé- dia e a elite não reconhecem a alteridade, reproduzindo discursos e prá- ticas que resultam em mecanismos perversos de opressão das classes

pobres, da população afrodescendente e das comunidades indígenas. Grupos sociais que não herdaram os valores da cultura europeia são estigmatizados e inferiorizados.

A hierarquização e a estratificação social no Brasil diferenciam os estratos sociais europeizados dos grupos étnicos afro-brasileiros e ame- ríndios. As classes sociais desfavorecidas permanecem abandonadas, tornando-se uma subclasse em um processo de “modernização seleti- va” (SOUZA, 2019, p. 82). A criminalidade aparece como uma alter- nativa para grupos sociais excluídos que sofrem com a humilhação, o abandono, o menosprezo e a violência.

Além do racismo, as sociedades colonizadas apresentam um sistema colonial e hierárquico de gênero, que oblitera, subordina e oprime as mulheres indígenas, negras e pardas. Assim, as práticas de aprisiona- mento e a criminalidade feminina precisam ser analisadas a partir da interseção entre classe, sexo, gênero e “raça”.