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Pensando o fenômeno da comunicação como uma relação, um encontro com o outro, como já explicitamos no capítulo inicial dessa investigação, Peruzzolo (2006, p.139) afirma que:

... quando o homem escolhe uma relação e ela lhe é agradável, prazerosa, e mesmo útil, ele passa a privilegiar essa relação. Quando privilegia uma dada relação, ele deseja e trabalha para que ela dure, permaneça, e, permanecendo, ela se torna um uso, um costume, um hábito. Então, vai haver fixação, estabelecimento desse modo de ser para maior continuidade dele.

Ao nosso entender, em alguns aspectos, este pensamento é muito explicativo se o aplicarmos também ao futebol. Pelo fato de ser um lazer prazeroso e agradável foi transformado em uma atividade cotidiana. Mesmo enfrentando algumas resistências, como é natural a todo e qualquer fenômeno em desenvolvimento, a rápida aceitação por parte de espectadores e praticantes, bem como o interesse dos governos e da impressa culminaram na consolidação e na institucionalização de um fenômeno cultural extremamente popular. Sendo um fenômeno integrante de um processo social complexo, enfrenta a influência de modelos culturais já consolidados e daqueles que buscam consolidação; ao mesmo tempo, promove o intercâmbio

de variadas culturas e, por possuir características que lhe são específicas, desenvolve modos de atuação sobre o todo.

Normatizado e esportivizado na Inglaterra por volta da metade do século XIX, o futebol, novo lazer para a sociedade da época, não demorou a atingir a maioria dos países europeus, os quais, seguindo os moldes da Football Association, desenvolvida pelos ingleses, estruturaram suas próprias federações.

Ao Brasil, chegou na última década do século XIX, tendo como principal polo de desenvolvimento as elites do Rio de Janeiro e São Paulo. Transformou-se em uma “moda elegante”, segundo Wisnik (2008, p.200-201), logo na primeira década do século XX. Hoje multicultural e diversificado, era, nos primeiros tempos, dominado pela elite aristocrática, que transportando esse “timbre” ao jogo, como diz o autor, pensava estar nos conformes culturais dos ingleses. Todavia, enquanto o futebol brasileiro ainda engatinhava e impedia que cerca de metade da população praticasse-o (negros e mulatos), o esporte na Inglaterra contava com ampla participação de pessoas de classes menos abastadas.

Investigações como as de Kischinhevsky (2004) e Toro (2004) mostram que desde os primeiros jogos, o futebol já chamava a atenção da imprensa. Com efeito, era visto como uma atividade dotada de grande poder de sociabilização que logo se tornou um objeto de consumo, embora, na época, apenas das elites. O panorama aristocrático do futebol brasileiro começou a mudar em meados dos anos 1920 e início dos anos 1930. A “abertura das portas” dos clubes para negros, mulatos e operários49 e o início de um processo de profissionalização dos clubes, já existente na Inglaterra desde o final do século XIX, culminaram na popularização do esporte no país, mesmo com uma forte resistência por parte das elites.

Ainda em meados dos anos 1930, segundo os autores, iniciou um processo de modernização do Brasil, sendo o esporte, especialmente o futebol, uma das principais justificativas para tal. Além do mais, houve um desenvolvimento acelerado da classe operária, a qual precisava ter condições para frequentar os estádios. O incentivo ao futebol, logo elevou- o à condição de paixão nacional. Consequentemente, tornou-se um exemplo de unidade nacional, constituindo um ethos nacional. Cabe ressaltar que o governo da época passou a fazer exigências para que as torcidas tivessem um comportamento apaixonado por um clube e, principalmente, pela seleção brasileira.

Simples de ser jogado, fácil de ser compreendido, com poucas e práticas regras. No entanto, a mesma facilidade e simplicidade complexifica-se quando começamos a pensar, como

diz o título deste capítulo, nos jogos do futebol. Jogos, segundo Murad (2007, p.16), “históricos, sociais, culturais e simbólicos” que fazem do futebol um abrigo para “redes de sentidos articulados, territórios metalinguísticos”.

Abordagem semelhante é apresentada por Wisnik (2008, p.14), quando diz que o futebol “comporta múltiplos registros, sintaxes diversas, estilos diferentes e opostos e gêneros narrativos, a ponto de parecer conter vários jogos dentro de um único jogo”. Caracterizado pela simplicidade, praticidade, acessibilidade e diversidade, o futebol desenvolveu-se como um espaço multicultural, multifacetado, além de atrair imensa popularidade. Com efeito, o esporte supracitado é pensado pelo autor como “o nó cego em que a cultura e a sociedade se expõem no seu ponto ao mesmo tempo mais visível e invisível” (idem).

Conforme Wisnik (2008, p.398-399), o futebol destaca-se entre os esportes coletivos, pois “teve a originalidade de instaurar uma narrativa fluida, menos quantificável, mais interpretável, mais receptiva à expressão das diferenças culturais, e, nesse sentido, mais ‘multicultural’ que a dos outros esportes modernos”. Sua prática simples e acessível fez com que atravessasse e interligasse culturas e grupos sociais variados. Com efeito, tem a capacidade de fazer interagir “múltiplas lógicas de maneira polêmica, polissêmica e internamente articuladas”.

Assim sendo, o futebol pode funcionar como um estrato representativo capaz de ajudar na explicação e na compreensão de uma sociedade. No entanto, a concepção de “metáfora da sociedade”, adotada por Murad (2012; 2007), não é compartilhada por Wisnik (2008, p.66). Este último, ao interpretar o pensamento de Vicente Verdú50, afirma que o escritor espanhol pensa o futebol “como mimese51, isto é, como representação do jogo social, (...) um teatro

tragicômico que engendra suas formas em contraponto52 com a história social”, desse modo, não comete o “equívoco de pensar o futebol diretamente como ‘metáfora’ – ou espelho – da sociedade”. O futebol tem, em sua visão, um “caráter metonímico, de índice interno do processo social”, que lhe possibilita influir e ser influenciado pelo todo. Desse modo, aparece composto por condições de influência internas53 e externas, em que suas qualidades e seus problemas advêm da intersecção tanto de características já existentes e que, ao longo do tempo, transformam-se na sociedade, quanto de características que são intrínsecas do próprio futebol.

50 Escrito espanhol, autor de “El fútbol: mitos, ritos y símbolos”. 51 Grifo do autor.

52 Grifo do autor.

53 As condições de influência internas abrigariam, como diz Wisnik (2008), certa mitologia, no modo como propõe

Pelo fato de constituir uma das esferas da sociedade, podemos dizer que o futebol é fortemente influenciado por forças sociais, como a hipercomercialização de que trata Dunning (2008) ou ideologias políticas e publicitárias. Forças que, aliadas a valores como da paixão, da emoção, da competição, do lazer e do prazer, fazem do futebol um esporte que envolve bilhões de pessoas e variados recursos humanos e financeiros voltados, especialmente, para a prestação de serviços. No entanto, no entendimento de Wisnik (2008), elas não fazem tal esporte perder certa autonomia, a qual está ligada a um panorama ritualístico, mitológico, mesmo que os limites entre ambos (forças sociais e panorama ritualístico) sejam muito tênues.

Com efeito, o futebol moderno é um extenso imbricamento constituído, segundo Wisnik (2008, p.161), por “uma operação da ciência e da tecnologia, da mitologia inconsciente e da mitologia ostensiva: a publicidade”. Ou seja, os princípios valorativos sobre os quais o futebol constitui-se, como apresentamos anteriormente, aliados a uma lógica publicitária e capitalista fazem do futebol um integrante, segundo o autor, “de uma grandiosa obra de ‘reengenharia’ do inconsciente humano”. Nesta o referido esporte mantém uma circulação constante entre atletas, equipamentos e serviços, por exemplo, com as mais variadas marcas em virtude de ter uma capacidade persuasiva que possibilita aos sujeitos reconhecerem determinados valores ali propostos. Tornou-se constante pensar e afirmar a confusão entre imagem pessoal e a imagem dos ídolos e das marcas, que levam, por consequência, a uma ilusão de apagamento de uma identificação natural com o futebol. Entretanto, de acordo com o autor, tais forças, apesar de influenciarem, não são capazes de sobrepor-se àquela autonomia sobre a qual falamos anteriormente, ou seja, não se sobrepõem às condições internas do futebol, baseadas na imprevisibilidade, no imponderável, na capacidade de promover e desenvolver a individualidade e a coletividade.