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2.2 O FENÔMENO SOCIOCULTURAL DA VIOLÊNCIA NO FUTEBOL

2.2.1 O futebol como integrante do processo civilizatório

Os esportes modernos, de acordo com Dunning (2008, p.224-227)65, emergem como integrante de um “processo civilizatório”, compreendido por Norbert Elias como “formações complexas, que são como ondas, com múltiplos níveis e que ocorrem no nível do indivíduo tanto quanto no das sociedades”. Nesse processo, a principal função atribuída aos esportes é “a produção de excitação prazerosa e socialmente construtiva”. Seu princípio construtivo está baseado, para os autores, na produção de tensões e na consequente liberação ou libertação das mesmas, ou daquelas que surgem no dia-a-dia de cada indivíduo e são levadas aos eventos esportivos, de modo controlado. A produção da excitação prazerosa, o desenvolvimento da paixão e o controle desses impulsos levam ambos a pensar o esporte como civilizador ou, ao menos, dotado de um efeito civilizador. Assim constituído, é capaz de controlar e superar a violência, de conviver com as diferenças, além de agir, de acordo com Wisnik (2008, p.353), “contra as formas de manipulação que o utilizam e o reduzem, contra as formas de embrutecimento que o minam por dentro, assim como contra as formas de simplificação que o explicam apenas pelos fatores externos”.

É importante, no entanto, ressaltar que, por vezes, as frustrações dos indivíduos podem não ser sanadas apenas com a excitação causada pelo jogo de futebol, muito pelo fato delas não estarem relacionadas ao jogo em si, mas com causas pertencentes ao cotidiano de cada indivíduo. Desse modo, a violência surge como uma oportunidade para desafogá-las. Quebra de cadeiras no estádio do próprio time, por exemplo, mesmo quando ele alcança um resultado positivo66, pode ser causada, além das condições enfrentadas pelo torcedor para acompanhar o jogo, por motivações externas ao futebol, pertencentes ao cotidiano de cada indivíduo, o qual, por algum motivo encontrou no estádio, ou seus arredores, o local para libertar suas frustrações.

65 Eric Dunning em entrevista a Édison Gastaldo fazendo uma avaliação da obra “A busca da excitação” em que

ele e Norbert Elias compilam investigações que procuram sistematizar uma sociologia dos esportes.

Na esteira de processos civilizatórios, Elias (1992) também destaca a existência de processos descivilizatórios, como aquele que possibilitou a chegada dos nazistas ao poder na Alemanha. Dunning (2008, p.227) é enfático ao dizer que as sociedades do Ocidente, a partir da metade do século XIX, “têm enfrentado processos de-civilizatórios substanciais ao longo dos quais a violência aumentou”. Um exemplo disso, segundo o autor, é o hooliganismo nas praças esportivas manifesto nas últimas décadas do século passado e início do atual.

Pensando o fenômeno da violência, o processo civilizador/civilizatório desenvolve-se ao estabelecer ou diminuir os níveis aceitáveis, bem como, ao aprimorar as possibilidades de autocontrole de ações individuais e coletivas, com intuito de torná-lo um hábito. O jogo e a competição são manifestações de uma sociedade, com efeito, as situações que neles desenvolvem-se, de algum modo, estão em consonância com aspectos dessa sociedade67; aparecem, segundo Dunning (1992, p.302), “entrelaçados (...) com a estrutura da sociedade em geral e com a maneira como esse tecido é entrelaçado no âmbito da estrutura das interdependências sociais”. Desse modo, no entendimento de Elias (1992, p.216), um provável nível de civilização relacionado às atividades esportivas, sobretudo as competitivas como o futebol, “mantém-se incompreensível se não for relacionado, pelo menos, com o nível geral de violência socialmente permitida, com o nível de organização do controlo da violência e com a correspondente formação da consciência em causa”. Devemos considerar que a frequente violência envolvendo torcedores pode demonstrar, segundo o autor, “um sintoma de algum defeito na sociedade em geral”68.

Ainda sobre o processo civilizador trabalhado por Norbert Elias, Lovisolo (2010) destaca que tal processo sustenta-se na transversalidade de valores que circulam e vigoram em diferentes esferas da sociedade. Dotar os esportes, especialmente o futebol, de um papel civilizador, que consequentemente contribui para a diminuição da violência nos mesmos, necessita, no entendimento de Dunning (2008), que a sociedade atual inculque, nas futuras gerações praticantes e espectadoras, valores voltados para o fair-play como a competição sadia, a amizade, a sociabilidade, ao contrário de ações e comportamentos que sobrepõem o econômico ao sociocultural, que exigem a vitória a qualquer custo, que transformam rivalidade em inimizade, que naturalizam, no esporte, valores negativos constantes na sociedade, como a impunidade.

67 Mesmo que possuam especificidades internas, naturais a qualquer fenômeno, que também os regem. 68 ELIAS (1992, p.88).

No Brasil, como fizemos referência nas primeiras páginas desta investigação, o futebol é o esporte mais praticado e acompanhado pela população e aquele que recebe maior cobertura dos veículos de comunicação, como referimos na introdução. Com efeito, entendemos que ele apresenta um grande potencial civilizador. No entanto, ao adentrarmos no fenômeno da violência, concordamos com Murad (2012; 2007), também baseado no pensamento de Norbert Elias, quando diz que o esporte é “prejudicado” em virtude de forças que atuam em prol de um processo descivilizador, a começar pela ineficiência do Estado em relação ao controle das atitudes dissidentes, pela impunidade, pela corrupção, bem como através de rivalidades marcadas pela inimizade, relação de torcedores com setores do crime organizado, do tráfico de drogas, por exemplo. De maneira geral, tais forças desenvolvem-se de maneira mais aguda na sociedade como um todo e o futebol é influenciado, como já dissemos, por este contexto.

No entanto, Elias (1992) afirma que um fenômeno como o futebol pode situar-se numa zona limiar entre os dois processos. Um exemplo histórico do Brasil69 data dos primeiros vinte

ou trinta anos da prática do esporte no país. Marcado pela coletividade, sociabilidade, confraternização, valores que possibilitam apontá-lo como um processo civilizador, era, ao mesmo tempo, essencialmente segregador. A elite aristocrática tentava ao máximo que negros e operários não fizessem parte dos clubes, especialmente os grandes. Desse modo, podemos dizer que também possuía características descivilizadoras. Entretanto, quanto a este aspecto, com o passar dos anos, prevaleceu a face civilizadora, que possibilitou ao futebol tornar-se um fenômeno multicultural. Norbert Elias não descarta também a passagem de um processo a outro, algo visto por ele como natural.

Outro aspecto importante e recorrente nas obras de Elias e Dunning (1992), Wisnik (2008) e Murad (2012; 2007), embora com sentidos e servindo a fins diferentes, é a concepção do esporte, no caso, o futebol, como um laboratório.

Os primeiros destacam a possibilidade da utilização do esporte como “espécie de ‘laboratório natural’ para a exploração de propriedades das relações sociais” (1992, p.18). Um laboratório no sentido de que valores e características supostamente opostos e excludentes como confronto e cooperação, confronto e competição, harmonia e conflito são regrados e convivem

69 Bem como da maioria dos países europeus. Outro exemplo é a relação entre mulheres e o esporte. Sobre este

último, uma interessante análise pode ser encontrada em LOVISOLO. Hugo. Mulheres e esporte: processo civilizador ou (des) civilizador. Logos 33: Comunicação e esporte. v.17, n.2, p.29-38, 2010. A ampla resistência masculina em relação à participação feminina em esportes como futebol e rugby por vários anos, constituindo um processo descivilizador. A mudança neste panorama representando o oposto. O autor discute ainda questões de paternalismo, a existência de poucos esportes que possibilitam a formação de equipes mistas ou a competição entre homens e mulheres - que quando ocorre possui uma importância diminuída - sustentada sob a tese de uma diferença biológica em relação à força física existente entre os dois sexos.

dentro do esporte, de maneira interpendente, no intuito de estabelecer certo equilíbrio, especialmente das tensões.

A simplicidade, a praticidade, a excitação fizeram com que o futebol avançasse em direção a diversas culturas, promovendo a ligação entre elas e ultrapassando a concepção básica de lazer. De acordo com Wisnik (2008, p.94-95), “O futebol pôs em jogo, claro que sem premeditar o efeito, uma zona limiar de tempos culturais que acabou fazendo dele um laboratório demonstrativo das culturas”. Com efeito, segue dizendo o autor, que o esporte citado transformou-se num “palco entremeado das disposições, dos imaginários corpóreos e das gestualidades inerentes aos grupos sociais”. Ou seja, como também diz Murad (2012; 2007), interpretações acerca de uma sociedade podem ser extraídas via futebol, pois permite que os mais variados grupos que a compõem apareçam e demonstram seus aspectos mais simples e mais complexos.

Já a concepção de laboratório desenvolvida por Murad (2012; 2007) está mais relacionada ao significado literal do termo70 e voltada ao estudo da violência no futebol. Para o

autor, o futebol poderia funcionar como “um centro de estudos e reflexões sobre os fenômenos socioculturais que compõem o seu universo, contribuindo também para o entendimento de outros grandes eventos coletivos, que formam nossas identidades”71. Com efeito, a referida

concepção, composta ainda pela aplicação e avaliação de ações práticas, ajudaria elevar a qualidade da segurança pública. A participação ativa e conjunta de todos os atores envolvidos no processo (clubes, torcedores, imprensa, organismos da justiça, da cultura, da educação), possibilitaria, no entendimento do autor, o funcionamento do tripé essencial para tratar a violência esportiva, em especial, a do futebol: “Reeducação, prevenção e punição”72. Desse

modo, na esteira do pensamento de Norbert Elias, Maurício Murad considera os esportes modernos, dentre eles, o futebol, além de consequência, também integrantes e influenciadores do “processo de civilização”. Assim exposto, pensamos que o funcionamento do futebol como um laboratório, proposto pelo autor, está muito ligado ao fato de ele considerar o esporte como “um dos caminhos para entender nossa sociedade”73, tanto em aspectos positivos quanto

negativos.

70 Segundo Aurélio (1996): “lugar destinado ao estudo experimental de qualquer ramo da ciência ou aplicação dos

conhecimentos científicos com objeto prático”.

71 (2012, p.191). 72 (2007, p.164-165). 73 (2012, p.80).