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A enunciação de Georges Balandier, que se apresenta como um contributo da antropologia, adquire particular interesse, não só para lançarmos o debate sobre as

implicações da apropriação das noções de poder em contextos “subsarianos”19 perante as

especificidades das mundivisões das sociedades africanas, mas também para convocarmos a aproximação estruturalista como prenúncio de ruptura epistemológica, cuja concretização radica na proposta de Michel Foucault (1979), não propriamente como representante do estruturalismo clássico, ainda que siga a tradição do paradigma configurado por Lévi-Strauss (1952), mas já como voz dissidente que se inscreve no pós-estruturalismo ou, porventura, no pós-modernismo.

Aqui é necessário, porém, fazer um parêntesis, pois falar de pós-modernismo obriga a uma breve reflexão para melhor enquadramento da problemática que lhe está subjacente: (i)

apesar da designação ser vaga20, porque não apela a uma corrente de pensamento específica

                                                                                                                         

19  É de sublinhar, mais uma vez, que a utilização de expressões como África subsariana ou outras congéneres

deve merecer cautelas e muitas reservas pelo seu valor heurístico reduzido e enganador (cf. Dias, 2014: 9).  

20  E aqui, replicando os argumentos aduzidos por Dias (2001: 35-36), ousamos questionar até o valor heurístico

do próprio termo de modernidade, que percorre acriticamente numerosos estudos sobre as relações de poder em África, porquanto “comporta em si um forte determinismo, isto é, a ideia de um fim à vista; transformar o antigo

ou dominante mas tão-somente à condição sociocultural e estética inerente a um determinado momento histórico, no limite à contemporaneidade, razão pela qual, aliás, (ii) a listagem de autores que figuram como pós-modernistas é imprecisa e de certo modo aleatória, uma vez que depende das várias interpretações que se dá ao conceito conforme os contextos disciplinares, cremos ser útil introduzir, pelo menos, o paradigma do desconstrutivismo desenvolvido por Jacques Derrida. Não é que este filósofo francês se tenha ocupado especificamente do poder, mas o seu sistema de ideias, lido por alguns autores mais como um

método de análise científica do que uma abordagem epistémica21, embora o próprio Derrida

tenha recusado essa interpretação – “deconstruction is not a method, and cannot be transformed into one” (1983: 3) – tem uma influência considerável sobre as teorias políticas e a filosofia política contemporâneas, na medida em que ao propor um exame à lógica interna de qualquer texto ou discurso leva muitos investigadores a analisar as contradições inerentes a todas as escolas de pensamento, dando nesse sentido um importante contributo para a análise política, no geral, e para a do poder político, em particular (cf. Beardsworth, 1996; Critchley, 2009).

Ora, esta proposta de ruptura epistemológica preconizada por Foucault – a primeira que visa desmobilizar o State power como categoria empírica dominante, e praticamente exclusiva, neste debate, abrindo espaço para interpretações como a de Hettne e Soderbaum (2000: 459), que abandona o “state-centrism in an ontologically fundamental sense” a favor da ideia segundo a qual “social processes must be analysed delinked from national space” – leva-nos para uma outra dimensão, a da análise das inter-relações (ou “estruturas”) culturais como sistemas de significação, que importa observar, ainda que de modo sumário, porquanto também está vinculada ao plano das categorias heurísticas dominantes da problemática do poder e é nela que se pode localizar o aspecto que aqui nos interessa sublinhar, nomeadamente (i) a “cumplicidade” crítica entre Balandier e Foucault e, sobretudo, (ii) o quadro analítico foucaultiano.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           

no novo”, o que põe em causa “não só a adaptabilidade das autoridades tradicionais às variações conjunturais,

como também a própria noção de tradicional em ciências sociais”.  

21  Reclamamos aqui, e dito de forma simplificada, a diferença conceptual entre epistemologia, enquanto sistema

de ideias que questiona as próprias ideias ou modelo que expressa as dúvidas colocadas quanto ao conteúdo das ideias, e metodologias de análise, enquanto processo de aplicação desse mesmo sistema, isto é, como processo que permite indagar materialmente das ideias com vista a validá-las ou não como proposições de conhecimento científico.  

É que, se é certo que Balandier se distancia do estruturalismo, ao denunciar (i) o

problema da historicidade a partir da observação da imobilidade histórica22 de determinadas

sociedades africanas em contexto de plena dinâmica colonial, e (ii) o equilíbrio “aparente e enganador” que identifica nas abordagens estruturalistas do poder (apud Dosse, 2007 (1): 349-350), há uma íntima relação com a análise foucaultiana, tanto mais que, do ponto de vista da filiação filosófica, Foucault é igualmente uma voz dissonante, não obstante figurar na história do pensamento como um pós-estruturalista, como salientámos.

Não é que haja também explicitamente na obra deste autor o que poderíamos designar por uma “teoria do poder”, com proposições concretas para possíveis definições, mas é possível extrair uma unidade heurística nesse sentido. De resto, o próprio Foucault justifica a razão pela qual entende que a problemática do poder não pressupõe a construção de uma teoria mas apenas um quadro de análise sobre os elementos que compreende bem como a dinâmica que lhes é inerente: “A ideia de que existe, num determinado lugar, ou emanando de um determinado ponto, algo que é um poder, parece baseada numa análise enganosa e que, em todo caso, não dá conta de um número considerável de fenómenos. Na realidade, o poder é um feixe de relações, mais ou menos organizado, mais ou menos piramidalizado, mais ou menos coordenado. Portanto, o problema não é o de construir uma teoria do coordenado; o problema não é o de construir uma teoria do poder” (1979: 248).

Esta observação assenta no pressuposto de que não existe “algo unitário e global chamado poder, mas unicamente formas díspares, heterogéneas, em constante transformação. O poder não é um objecto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal, constituída historicamente” (Foucault, 1979: 10). O que coincide com a intuição de Castor B. Ruiz (apud Souza, 2011: 104), segundo o qual o poder “conota uma dimensão humana sempre criativa e, portanto, indefinível”, intuição particularmente pertinente no quadro das ordens cosmológicas dos contextos africanos.

Ora, numa tentativa de captar esta dispersão e fragmentação estrutural dos elementos que concorrem para as manifestações de poder, Foucault propõe uma análise inversa, partindo do plano macroscópico para o microscópico para no segundo inferir as dinâmicas relacionais com o primeiro, numa lógica de carácter ascendente dentro da referida organização “mais ou

                                                                                                                         

menos piramidalizada”. Neste sentido, deslocaliza o espaço de análise, isto é, procede a um reposicionamento espacial ao focalizar a temática do poder a partir das extremidades. Dito de outra forma, o objecto empírico para a análise do poder deixa de estar localizado na figura do Estado, o epicentro tradicional das abordagens clássicas, para passar para a figura que se lhe opõe: a periferia. Significa isto que, dentro da dinâmica das relações de poder, na óptica de Foucault, é possível estabelecer uma matriz circunfluente com o Estado representado no centro e todas as outras instituições nos pontos periféricos, com o foco direccionado preferencialmente para as extremidades, os lugares nos quais se manifestam as operações de

poder ao nível dos indivíduos e das organizações que integram e com as quais se relacionam.  

Em termos práticos, como aponta Roberto Machado (apud Washington, 2011: 108), Foucault não pretende minimizar o papel do Estado nas relações de poder que se manifestam numa determinada sociedade num dado momento histórico, mas demonstrar que o Estado não é o órgão central e único do poder ou que a rede de poderes das sociedades ditas modernas não é uma mera extensão dos efeitos do Estado, um simples prolongamento ou difusão do seu modus operandi. O foco da análise de Foucault encontra-se nos mecanismos e nas técnicas infinitesimais do poder que estão intimamente relacionadas como a produção de determinados saberes, micropoderes que possuem tecnologia e história específicas e que interagem com o nível mais geral do poder constituído pelos aparelhos do Estado. Seguindo ainda a interpretação de Machado, Foucault estuda o poder, não como uma dominação global e centralizada que se difunde e repercute nos outros sectores da vida social de modo homogéneo, mas como tendo uma existência própria e formas específicas ao seu nível mais elementar. O Estado não é o ponto de partida necessário, o foco absoluto que – se assim fosse – estaria na origem de todo o tipo de poder social e do qual também se deveria partir para explicar a constituição dos saberes nas sociedades capitalistas, até porque é fora dele que se instituem muitas relações de poder – essenciais para situar a genealogia dos saberes – que traduzem formas mais gerais de dominação. De resto, ainda que seja feita uma distinção entre centro e periferia, e níveis macro e micro, a mesma não releva da intenção de “querer situar o poder em outro lugar que não o Estado”. O sentido da proposta foucaultiana é o de afirmar que os poderes “não estão localizados em nenhum ponto específico da estrutura social. Funcionam como uma rede de dispositivos ou mecanismos a que nada ou ninguém escapa, a que não existe exterior possível, limites ou fronteiras” (apud Washington, 2011: 16).

Nestes termos, o poder não pode ser pensado a partir da ideia de posse, mas da noção de exercício ou funcionamento. A relação estabelecida pelos pólos exercício ou luta, de um lado, e resistência, de outro, é mais apropriada, portanto, para pensar o tema do poder do que a relação propriedade ou posse, de um lado, e destituição, de outro. O perímetro em que a relação de poder, dotado de um carácter relacional, se coloca é o da rede de poder, ou seja, a ideia de multiplicidade de relações – contida na própria noção de rede – que configura, de ponta a ponta, toda a sociedade.

Vejamos as palavras do próprio Foucault, que traduzem uma síntese possível da sua proposta para a abordagem da problemática do poder: “Rigorosamente falando, o poder não existe; existem práticas ou relações de poder. O que significa dizer que o poder é algo que se exerce, que se efectua, que funciona. E tudo funciona como uma máquina social que não está situada num lugar privilegiado ou exclusivo, mas que se dissemina por toda a estrutura social. Não é um objecto, uma coisa, uma relação. Esse carácter relacional do poder implica que as próprias lutas contra o seu exercício não podem ser feitas de fora, de outro lugar, do exterior, pois nada está isento do poder. Qualquer luta é sempre uma resistência dentro da própria rede de poder, teia que se alastra por toda a sociedade e a que ninguém pode escapar: o poder está sempre presente e exerce-se como uma multiplicidade de relações e forças. E como onde há poder há resistência, não existe propriamente o lugar de resistência, mas pontos móveis e transitórios que também se distribuem por toda a estrutura social” (1979: 16).

Chegamos assim a um quadro analítico que leva à percepção de que o poder não é (i) uma coisa, (ii) nem o controle de um conjunto de instituições, (iii) nem “a racionalidade escondida da história”, o que afasta o pensamento foucaultiano do paradigma funcionalista, como observam Dreyfus e Rabinow (1995: 202-206), uma vez que não há uma ideia de equilíbrio, nem de um sistema, ou seja, um espaço que permita afirmar uma lógica de estabilidade. Ao invés, escrevem os mesmos autores, “há uma orientação produzida por cálculos mesquinhos, confronto de desejos, emaranhado de interesses menores (que) são moldados e direccionados pelas tecnologias políticas de poder”, pelo que Foucault caracteriza as relações de poder como desiguais, móveis e assimétricas, intencionais e não-subjectivas.

Logo, e a título de sistematização, o poder é entendido como a operação de tecnologias políticas através do corpo social; uma matriz geral de relação de forças num determinado contexto histórico exercido tanto sobre dominantes quanto sobre dominados.