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Comecemos por indagar da natureza do Estado pós-colonial sob a óptica da relação entre os governantes africanos e a dita sociedade civil, que integra entre outros “agentes” (ou grupos sociais, num sentido lato) as chamadas autoridades tradicionais.

Na linha do que assinalámos com Ayittey (1991) e Kirk-Greene (1995), e numa primeira leitura, dir-se-ia que há um consenso generalizado entre vários autores (e.g. Médard, 1982; Callaghy, 1984; Chabal, 1986, 1995, 1996; Bayart, 1986, 1989; Badié, 1992; Davidson, 1992; Clapham, 1996; Makumbe, 1998) quanto às fontes do Estado pós-colonial em África, o que não implica obviamente uma igual convergência de pensamento quanto ao conteúdo do conceito, até porque as próprias fontes relevam de matrizes relativamente diferenciadas de acordo com as especificidades das várias experiências coloniais.

Ora, em traços gerais, a orientação empírica sugere que o Estado africano independente replica o modelo de governação colonial, ou seja, reproduz a lógica dos antigos “soberanos” coloniais na gestão das estruturas sociais, económicas e políticas deixadas por

estes, que não correspondem necessariamente às das respectivas metrópoles (e esta é uma distinção útil no quadro das divergências entre liberais e realistas, discutidas na secção 1.8., e da aplicabilidade das mesmas nos contextos africanos, uma vez que envolvem distintos pressupostos quanto à configuração do poder nacional e ao modo como se manifesta nas relações internacionais).

No caso específico dos espaços africanos, o Estado pós-colonial adopta pois na fase inicial da pós-independência, antes da vaga da chamada liberalização política (Lourenço, 2006, 2007), o típico despotismo do Estado colonial (cf. Bayart, 1986, 1989; Chazan, et. al., 1999), acabando por se transformar numa cópia do modelo colonial europeu, isto é, não propriamente do padrão da “metrópole” – insistimos, uma vez que reside aqui um dos primeiros paradoxos inerentes ao fracasso recorrente dos esforços, endógenos e exógenos ao continente africano, para a implementação de modelos de organização política conducentes à pretensa “democratização”, o que, aliás, deve levar a questionar o que é que as sociedades africanas entendem como ideal democrático e as consequências dessa percepção sobre as políticas de desenvolvimento e da ajuda externa – mas da herança dos mecanismos usados pela metrópole para manter o controlo sobre o State power. Dito de outra forma, e no limite, o que sucede é uma reprodução, que nalguns casos é reforçada pelo próprio Estado pós- colonial, da matriz de governação dualista colonial, expressa pela “fractura” entre a área urbana, no centro, dominada pelas elites (a nova “versão” dos “brancos” e “assimilados”), onde há uma tentativa de imitação das políticas da metrópole – para consolidar o chamado “projecto hegemónico” a que se refere Bayart (1989) – e uma área de “mato”, na periferia, habitada pelas populações rurais e agrárias (os antigos “não civilizados”), e na qual as políticas aplicáveis correspondem ao tradicional poder repressivo colonial (cf. Sardan, 1994; Young, 1994), que tende a desprover de sentido, aliás, em muitos aspectos e paradoxalmente, o modelo de “indirect rule” (cf. Jua, 1995: 39-47).

Como aponta o politólogo francês Bertrand Badié (1992), este tipo de governação não mobiliza as populações africanas no geral e as rurais no particular, resultando numa ineficácia geral da gestão da coisa pública que só é possível manter com o recurso a um padrão autocrata e déspota. O problema é sintetizado pelo zimbabuano John Makumbe (1998): “The reality of the matter was simply that African political leaders were anxious to eliminate or, at least, effectively control all forms of political opposition in their countries by occupying all possible political space through their parties and the control of the State power and institutions.”

Trata-se, com efeito, da tendência do Estado em concentrar-se exclusivamente na reprodução do poder – que alguns autores (e.g. Sandbrook, 1987; Chabal, 1995) justificam como um efeito provisório da adaptação dos governantes africanos às estruturas político- administrativas herdadas da administração colonial – expressa em estratégias de governação de tipo neo-patrimonial, ou seja, e como observa Médard (1982), um modelo de gestão que implica a utilização das instituições e dos recursos públicos em benefício da elite governativa e das suas redes de clientela em prejuízo do “bem público”.

Neste contexto de análise, a condição de “marginalidade” do Estado inscreve na sua natureza um risco elevado de implosão, isto é, um potencial de permanente instabilidade ou crise interna (cf. Jackson & Rosberg, 1985; Sklar, 1985; Jackson 1990), porquanto o Estado tende a remeter-se para uma espécie de “autismo social” consubstanciado num défice de interacção com a dita sociedade civil (cf. Marenin, 1987). Para o politólogo e sociólogo nigeriano P. Chudi Uwazurike (1990), este “autismo” é tão grave que a relação entre o Estado pós-colonial e a “comunidade civil”, a dos cidadãos – com dinâmicas sociais próprias – degenera nalguns casos até ao nível de um patrimonialismo oligárquico sob uma forma praticamente desconhecida na África colonial com manifestações perversas, entre as quais avultam o culto institucional desmesurado à figura do chefe de Estado (numa lógica de monopartidarismo, em muitos aspectos com carácter totalitário, que confunde o Estado-Nação com o Estado-partido, ou numa lógica de autoritarismo militar com os mesmos efeitos), a violação dos direitos humanos em larga escala e, consequentemente, uma instabilidade social e política crónica em todas as frentes.

Com efeito, como sistematiza o especialista em geopolítica africano Mwayila Tshiyembe (2014), o Estado pós-colonial não é um Estado totalitário de tipo mussoliniano ou estalinista, mas reclama a missão de concretizar a unidade nacional, colectiva, que nenhuma exterioridade pode limitar. Inspirado pelo fascismo, no sentido de que tudo reside no Estado e nada fora dele merece ser valorizado, o Estado pós-colonial adopta (ou procura adoptar, caso a insubmissão ou resistência dos micropoderes não o permita na totalidade) uma estrutura institucional de natureza totalitarista – e.g. partido único (monopólio da actividade política, mesmo que admita formalmente o pluralismo e o multipartidarismo), polícia secreta (monopólio da repressão), nacionalização dos meios de informação e comunicação (monopólio da propaganda) – porque só assim pode manter a paz, ou evitar a guerra, e conduzir a Nação para a pretensa unidade nacional. Para o efeito, apresenta uma fonte

ideológica “nacionalista” (cuja matriz inspiradora pode variar entre o marxismo-leninismo, o socialismo africano, o capitalismo de Estado ou uma imbricação entre todas estas e mesmo outras). O Estado pós-colonial também não é uma ditadura de tipo franquista ou salazarista, mas em nome da unidade nacional – que o leva a recorrer a tecnologias de poder de cariz totalitário – adopta de modo concomitante um modelo autoritário semelhante ao preconizado pelas ditaduras ibéricas. A autoridade reside na força e é um fim em si própria, pelo que não reconhece limites mesmo que estejam codificados no direito positivo. O Estado pós-colonial aproxima-se assim de uma autocracia pretoriana que não admite sucessões no poder. O poder é uno e indivisível. E não é passível de partilha.

É de referir, porém, que esta visão, embora subscrita pela grande maioria dos autores que se ocupam da temática, não está isenta de discórdia, pelo menos a título parcial. É que, tal como assinalámos no início desta secção, se há um consenso mais ou menos generalizado quanto às fontes do Estado africano pós-colonial, no sentido de que procede a uma réplica da matriz de governação colonial, o mesmo não se pode dizer quanto ao conteúdo do mesmo, até porque não é clara, no tempo e na forma, a transposição da conjuntura (provisória) de adaptação para a do Estado africano dito moderno, no quadro da construção da nova ordem global ou do designado “modern world system” (Hopkins & Wallerstein, 1996, apud Lourenço, 2007: 6), que se presta a muitas ambiguidades, nomeadamente as que resultam dos discursos formais de “democratização política” dos regimes autoritários (monopartidários ou

militares)37.

Mesmo no contexto de tensão acima referido por força do patrimonialismo estatal, o sociólogo francês Jean-François Bayart (1986), por exemplo, identifica um potencial de acção em determinados grupos sociais afastados do poder político directo, “agentes” com proeminência política e social e com capacidade de desempenhar um papel significativo na relação de intermediação política com o Estado, como os homens de negócios e, claro está, os líderes religiosos. Este autor reedita assim a importância das autoridades tradicionais e sobretudo do paradigma do “patrão-cliente”, que colide em vários níveis com a ideia de “autismo social” do Estado pós-colonial (modificando o conteúdo da noção de Estado), na

                                                                                                                         

37  É de recuperar aqui a problemática da “falta de autenticidade” do poder e a distinção operacional entre conduta

formal e conduta real, ou material, sistematizadas por Moreira (1993: 71), questões que desenvolvemos na secção 1.1.  

medida em que este aparece, nestes termos, com predisposição para convocar intermediários, reconhecendo-os como tal, para a arena política e para o jogo que nela decorre.

Neste particular, é necessário indagar da noção de campo político (e excluímos aqui deliberadamente, para simplificar, as divergências quanto a uma distinção operacional entre campo e arena, sobre a qual há uma produção extensa, embora, no limite, ambos os conceitos apontem para a ideia de jogo político) para compreender com maior propriedade as forças e as regras da competição pelo poder nos contextos africanos.

Ora, para Lourenço (2007: 10-17) – cujo pensamento voltamos a convocar pela utilidade da sistematização que faz desta problemática com apoio em vários investigadores – o campo político é um espaço social de lutas estratégicas de poder. Ainda que parta de um pressuposto que difere de autores como Mamdani (1996) ou Dias (2001), ou seja, na interpretação final que dá, porque conclui da condição de soma zero e da aplicabilidade do “dilema do prisioneiro” a que nos referimos na secção 1.3. (cf. Coelho, 2012) no jogo político africano, designadamente no que diz respeito à relação entre o Estado pós-colonial e as estruturas políticas locais, Lourenço adopta a perspectiva do “enigma sincrético” de Nieuwaal (2000) para caracterizar a acção política e social das autoridades tradicionais, o que remete, aliás, para uma figura de neotradicionalismo, na medida em que, ao manifestarem capacidade de diálogo com dois mundos sociais e políticos distintos, o esforço de adaptação contínua por parte dos líderes locais assume por vezes até um carácter “profano”, e nesse sentido imprevisível, pois tanto usam vestimentas “tradicionais” como indumentárias “modernas”.

Na linha de Bourdieu (1989: 163-164), que define o campo político como um microcosmos, um pequeno mundo social relativamente autónomo no interior do grande mundo social, “entendido ao mesmo tempo como campo de forças e como campo das lutas que têm em vista transformar a relação de forças que confere a este campo a sua estrutura em dado momento”, Lourenço coloca-nos perante um sistema de relações específicas de interdependência que podem assumir naturezas diferenciadas, da aliança ao conflito, da concorrência à cooperação, ou seja, num campo em que há pessoas, “agentes” dotados de habitus – no sentido dado por Bourdieu (1989: 169-170; 2003: 64) – predispostos a participar no jogo, como observa Dias (2001), mas também “bens raros”, “espécies de capital” (Giddens, 1984).

Deste modo, o campo político é um lugar em constante dinâmica no qual os “agentes” procuram melhorar a sua posição no jogo através (i) da apropriação e acumulação das “espécies de capital” disponíveis no grande mundo social e (ii) da apropriação das normas e das regras do próprio jogo. Logo, o campo político é um espaço concorrencial para a conquista, manutenção e alargamento da dominação sob uma configuração relacional tendencialmente em equilíbrio (e aqui reside um dos princípios que leva o autor a inferir da condição de soma zero na relação entre os dois tipos de “agentes” em escrutínio). Nestes termos, o maior ganho do jogo político é a possibilidade de imposição legítima dos princípios de visão e divisão do mundo social. Trata-se, portanto, da capacidade de transformar os esquemas de percepção e de acção em categorias explícitas e tributáveis, a todos os participantes no jogo, dando lugar a taxinomias relativamente coerentes e sistemáticas, e da capacidade de as impor como as únicas legítimas (Lourenço, 2006).

Neste quadro analítico, e dito de outra forma, os fundamentos da legitimidade do “agente” Estado e dos “agentes” ditos autoridades tradicionais são tão diferenciados quanto as suas posições e disposições sociais e políticas. Clarifiquemos. Num primeiro nível de análise, que remete para o plano da interdependência e do exercício legítimo da dominação política, as autoridades tradicionais dispõem da estrutura e da legitimidade local que lhes é conferida pelas comunidades rurais que representam e administram, mas dependem dos poderes públicos, institucionalizados à escala nacional, para obter o reconhecimento público dessa legitimidade e consequentemente exercer uma função redistributiva entre o Estado e as populações locais, obtendo do primeiro a “liquidez” financeira e logística para satisfazer as necessidades das segundas. Os poderes públicos, por seu lado, dispõem da estrutura político- jurídica e do monopólio do uso legítimo da força, mas dependem das autoridades tradicionais para obter informações e serem capazes de interpretar, de acordo com as mesmas, as necessidades e as pretensões das populações rurais que determinam a acção do Estado, no que a estas diz respeito, e, consequentemente, o “capital” de legitimidade do próprio poder estatal.

Ora, sendo pois uma relação entre forças distintas, a dependência mútua releva sempre da esfera concorrencial, uma vez que ambos os agentes aspiram a manter e, porventura, a alargar a sua capacidade de dominação política, sabendo, porém, que o aumento do poder de um implica a diminuição do poder do outro, ou seja, uma ameaça efectiva para o equilíbrio da relação. Logo, há um elo de competição entre estes agentes políticos e uma predisposição permanente para o conflito, tanto mais que, não sendo possível a estabilidade, e por receio do

desconhecimento do comportamento do adversário, os agentes políticos entram preventivamente em acção. O que faz com que, como conclui Lourenço (2006), “os agentes sejam simultaneamente concorrentes e ‘prisioneiros políticos’ uns dos outros”.

É nesta perspectiva que as autoridades tradicionais, perante as especificidades dos diferentes contextos étnico-geográficos africanos e o modo como neles se posicionam e procuram legitimar-se, aparecem como um elemento primordial no jogo político em África, no sentido de que procedem a uma síntese entre as forças antagónicas que resultam de (i) tipos distintos de pretensão da legitimação da dominação, (ii) de várias competências e “espécies de capital”, e (iii) da própria (di)visão dos mundos ditos “tradicional” e “moderno”. Por outras palavras, e simplificando, o que reverte a análise para a premissa inicial, as autoridades tradicionais aparecem como o intermediário político predominante entre os poderes públicos e as populações rurais e agrárias, tanto mais que, noutra dimensão, são os “agentes” que se apresentam como insubstituíveis na tutelagem da legitimidade cerimonial de um outro “capital” inalienável, o dispositivo ritual mágico-religioso que funda a ordem cosmológica das respectivas comunidades que representam e a favor das quais exercem a mediação com o Estado.

É de sublinhar, porém, e concretizando esta leitura, que a condição de mediador privilegiado por força, no limite, do domínio sobre um determinado capital inalienável concorre com a possibilidade do recurso à repressão simbólica ou material por parte do Estado, na medida em que este tem ao seu dispor, como já referimos, o monopólio do uso legítimo da violência. Significa isto que a mediação em contexto de competição é indissociável de uma situação de interdependência, pelo que Lourenço, na senda de vários autores em que avulta Nieuwaal (2000), defende a aplicabilidade do “dilema do prisioneiro”, ou seja, o pressuposto de que o “agente” Estado e os “agentes” ditos autoridades tradicionais estão consagrados um ao outro, não obstante cada um procurar definir a sua autonomia política.