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Esta dinâmica relacional do campo político em África, que releva da indagação das forças e das regras da competição pelo poder tuteladas pelo Estado e pelas chamadas autoridades tradicionais, é fundamental para seguir a noção de poder sob as mundivisões

subsarianas, mas sugere alguns aspectos que importa observar e que obriga a recuperar o Estado pós-colonial de matriz autocrata e déspota e o advento da transição para a chamada liberalização política.

Uma primeira consideração releva do debate sobre as funções desempenhadas pelas autoridades tradicionais nas sociedades africanas, que reforça a ideia de que, independentemente do nível de despotismo do Estado pós-colonial e da sua governação de tipo neo-patrimonial, as mesmas não se eclipsaram. Mesmo considerando que as estratégias estatais para a captura da autoridade sobre a terra enfraqueceram o “património” destas estruturas políticas, é de sublinhar, como já observámos, que o fundamento da sua dominação decorre não só dos recursos naturais mas também dos recursos rituais e simbólicos, “na crença quotidiana da santidade das tradições”, como escreve Weber ao distinguir a dominação de carácter tradicional da dominação racional-legal (cf. Lourenço, 2007: 10-12), o que confere uma legitimidade natural para o exercício da autoridade ritual e moral. Trata-se, portanto, de um “capital” inalienável que referencia os líderes locais como figuras incontornáveis na mediação entre as populações e o Estado, tanto colonial como pós-colonial.

Acresce o já referido elevado grau de adaptabilidade das autoridades tradicionais a mutações conjunturais, posta em evidência precisamente pelo referido debate quanto aos papéis que as mesmas desempenham. Como anota Dias (2001: 32), apesar de partirem de perspectivas de análise diferentes, é neste ponto que vários autores se situam; tanto os que acentuam o carácter híbrido dos papéis das autoridades tradicionais (e.g. Nieuwaal, 2000), como aqueles que as vêem como agentes políticos locais numa luta constante por lugares de poder, ao nível local, entre uma multiplicidade de agentes sociais (e.g. Sardan, 1994).

Uma segunda consideração relaciona-se com a própria crise interna do Estado pós- colonial que faz avultar a importância das autoridades tradicionais, embora apenas até a um determinado nível, uma vez que, ao mesmo tempo e paradoxalmente, regista-se também uma tendência de enfraquecimento dos laços religiosos, devido ao aumento do êxodo rural, e uma redução da visibilidade política destas estruturas políticas forçada pelo esvaziamento da sua função redistributiva, a que não é alheio o movimento de liberalização política e económica, as chamadas políticas de transição com vista ao “pluripartidarismo” e à “democratização” inerentes à fundação do Estado africano “moderno” e à nova etapa do Estado pós-colonial.

Com efeito, e recuperando o que dita o início desta segunda fase, os vários planos de contenção financeira e de ajustamento estrutural e a política de privatizações impostos aos diferentes Estados africanos pelas organizações políticas e financeiras internacionais, no quadro do paradigma desenvolvimentista, retiram o monopólio patrimonial ao Estado, fazendo com que as estruturas políticas locais se tornem intermediárias redistributivas entre o Estado e as populações e, progressivamente, mais autónomas em relação a este, o que, aliás, leva-as a pensar não só em novas formas de relacionamento com o Estado, como também em modos alternativos e criativos de acumulação e redistribuição.

Na prática, o empobrecimento patrimonial do Estado, aliado à sua incapacidade de fazer face à crescente multiplicidade de intermediários, tradicionais e “alternativos”, acabam por retirar à relação clientelar qualquer sentido material e político (Dias, 2001: 33). Dito de outra forma, a relação “patrão-cliente” muda de direcção e de conteúdo em razão (i) dos chefes tradicionais começarem a negociar directamente com os “agentes” externos e (ii) do aparecimento de novos “agentes” políticos, com interesses diferenciados, a posicionarem-se no interior da “sociedade civil”.

É um quadro de crise generalizada, económica e política, de muitas indefinições e ambiguidades, que força uma reconfiguração do Estado, e tanto aumenta, por um lado, como restringe, por outro, o espaço de acção das autoridades tradicionais, que se obrigam assim a novas estratégias num contexto de crescente êxodo rural e esvaziamento da função redistributiva, ou seja, no âmbito do novo ciclo do Estado pós-colonial.

E é aqui que importa esclarecer que a relação entre o Estado e as autoridades tradicionais é útil, enquanto perspectiva de análise para a captura da noção de poder, mas não esgota a problemática na medida em que o campo político, nos contextos africanos, compreende outros “agentes” políticos não estatais, exógenos, comos algumas forças transnacionais, e endógenos, “outros” grupos sociais, “outros” homens e mulheres, regra geral, organizados e portadores de interesses diferentes dos “agentes” ditos autoridades tradicionais, isto é, com historicidades total ou parcialmente autónomas das dos actores tradicionais, o que leva a questionar novamente o sentido da dinâmica conceptual entre tradição e modernidade bem como da centralidade empírica do State power.

É que, se assim não fosse, reduzir-se-ia a luta política nas sociedades africanas a um mero “braço de ferro” entre as autoridades tradicionais e o Estado, que neste contexto teriam de ser entendidas como algo de homogéneo e “convencionado”, o que não corresponde à complexidade dos comportamentos observáveis. De resto, retirar-se-ia a manifesta criatividade e adaptabilidade das próprias autoridades tradicionais, ou seja, a sua capacidade de sobrevivência e de contínua adaptação política que mantém viva a sua “memória social” ancestral (Ray, 1996).

Por outro lado, a problemática dos novos agentes políticos locais leva também a questionar o simplismo clássico da noção de autoridade tradicional, nomeadamente pela via da temporalidade da legitimação que funda essa mesma autoridade, o que nos reencaminha para os argumentos aduzidos por Dias (2001: 35-36), designadamente o valor heurístico do próprio termo de modernidade, que percorre acriticamente numerosos estudos sobre as relações de poder em África, porquanto “comporta em si um forte determinismo, isto é, a ideia de um fim à vista; transformar o antigo no novo”, o que põe em causa “não só a adaptabilidade das autoridades tradicionais às variações conjunturais, como também a própria noção de tradicional em ciências sociais”.

Neste particular, acresce ainda o problema da aplicabilidade ou não do jogo de soma zero e do “dilema do prisioneiro” como pressuposto básico para a análise da natureza da acção dos “agentes” políticos, estatais e não estatais, tradicionais e alternativos, ou novos. Ora, para Dias (2001: 35-39), o jogo político é, acima de tudo, uma luta política complexa entre vários actores, em que nenhum cede no seu interesse particular em termos de submissão ao interesse do outro ou ao interesse geral. Neste sentido, defende o autor, para que o jogo político se dinamize é necessária a existência de ganhos e de pessoas, de agentes predispostos a participar no jogo, isto é, de agentes dotados de interesses e maneiras de fazer próprios e conhecedores e reconhecedores das regras imanentes ao jogo e dos seus ganhos específicos. Logo, se a estrutura do campo ou da arena é um produto de relações de força entre agentes e instituições, ela própria constitui-se como o tout début das estratégias de poder nos contextos africanos.

De resto, e última instância, seguindo ainda esta linha pragmática que afasta a pretensão do sincretismo entre as sociedades rurais e a sociedade civil e a “bondade” empírica de não encontrar “vencedores” nem “perdedores”, é de referir que o acesso ao Estado nunca

deixa de ser um objectivo mesmo para os “sujeitos” tradicionais. Segundo Dias, “o terreno estatal é o alvo cada vez mais evidente dos diferentes actores tradicionalmente vistos como acantonados no campo das ditas instâncias políticas étnicas e étnico-religiosas”.

Nesta perspectiva, como assinala Mamdani (1996), o essencial do debate não se localiza no confronto ou no exercício de conciliação entre as duas tendências analíticas que têm pautado os estudos sobre a política africana, a “modernista” e a “comunitarista” ou “etnicista”, mas nas razões que suportam e concorrem para o fenómeno mais ou menos generalizado da invasão da “cidadela branca”, isto é, do espaço político estatal, por parte de actores políticos considerados, regra geral, como incapazes de se desligarem ou saírem do casulo da sua “tradicionalidade”. Por outras palavras, os agentes ditos tradicionais e os novos agentes políticos locais, ao deslocarem a sua acção para o interior do campo político “moderno”, tentando conjugar ao mesmo tempo a política local com a regional e a nacional, têm vindo a pôr em causa o confinamento ao “gueto da tradicionalidade” – para o qual remetia, desde o Estado colonial, a dualização das sociedades africanas – e, em última instância, a dar corpo à esfera que configura, grosso modo, a sociedade civil.

É de anotar, como defende Dias (2001), que não se trata, porém, de um exercício de cidadania no sentido pleno do termo, tal como foi idealizado no Ocidente, nem propriamente de uma consequência da “modernização” das instituições estatais, mas do resultado da ambiguidade de papéis e funções reforçado pelo próprio Estado pós-colonial. Clarifiquemos. Enquanto o Estado colonial promoveu uma progressiva degradação dos espaços políticos pré- coloniais criando um novo espaço público de soberania, que poderíamos descrever como um espaço tradicional de “notabilidade” mais ou menos associado ao espaço estatal e com muitas ambivalências, no sentido de que os líderes locais assumem uma dupla qualidade, a de chefes tradicionais e a de “colaboradores” do Estado (cf. Nieuwaal, 2000), o Estado pós-colonial mais não fez do que reforçar as mesmas ambiguidades com implicações na definição e afirmação da sociedade civil em África.

Com efeito, o exercício da cidadania é inerente ao processo de construção do Estado no contexto social, cultural e político europeu e remete para a historicidade do próprio processo. Em termos de código, o conceito pode ser expresso como o conjunto de direitos e obrigações de observância geral, que geram poder e responsabilidades, inscrito na Lei. Desta forma, como salienta o sociólogo israelita Shmuel N. Eisenstadt (1997: 36, apud Dias, 2001),

“a ideologia da cidadania ligou-se à expansão do acesso à representação através da luta e do protesto político, representação de todos os cidadãos, em todos os sectores da sociedade, com a tónica posta na plena responsabilização dos governantes perante os cidadãos”.

Contudo, os elementos constitutivos da cidadania são incompatíveis com os do estatuto de senioridade que tradicionalmente rege o direito de participação política em África, ou melhor, a diferenciação de direitos de participação política, o que aliás sugere que cidadania e participação política são conceitos que raramente se cruzam no contexto africano no geral (Comaroff & Comaroff, 1999).

Logo, ao assumirmos que, nos espaços africanos, cidadania e participação política mostram ter trajectórias distintas e, em vários níveis, incompatíveis – até porque a primeira reflecte especificamente um “ganho” das camadas sociais “implicadas” no “sector moderno” das sociedades, nomeadamente alguns grupos do sector dos “assimilados”, durante o período colonial, e os grupos mais jovens e escolarizados da população e das camadas sociais urbanizadas, na actualidade – é de aceitar que a participação política é também, e sobretudo, uma relação de oposição e resistência em termos identitários entre os sectores ditos tradicionais e o Estado, sectores que, sublinhamos, se “encavalitaram” uns nos outros e no próprio espaço estatal.

Deste modo, a sociedade civil aparece nos contextos africanos como um tecido de operações profundamente fragmentado com sentidos diferenciados e antagónicos, que não corresponde à composição que é conhecida e reconhecida noutras sociedades. O que se explica, aliás, não só pela referida ambiguidade de papéis e funções, mas também por um conjunto de mistificações que “distorcem” os conteúdos das dinâmicas de representação e responsabilização política tradicionalmente incrustadas na sociedade civil. Trata-se, pois, de uma questão que se insere numa problemática mais vasta, designadamente a das mistificações recorrentes da colonialidade do poder na África pós-colonial.