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Se a noção de poder é problemática mesmo que circunscrita apenas aos termos que seguimos no capítulo I, isto é, conduzida sob o discurso hegemónico ocidental, há uma outra evidência incontornável que inscreve dificuldades adicionais na formulação do problema, a saber, o facto de que, ao ser aplicada em contexto subsariano, incorpora outras especificidades, porquanto há uma modificação do conteúdo dos conceitos no quadro das míltiplas mundivisões das sociedades africanas.

Quer isto dizer que nos colocamos perante outro desafio que é, de resto, a premissa básica que preside a esta revisão do debate sobre a problemática do poder ancorada nas peculiaridades dos espaços africanos: mais importante do que procurar perceber o conceito de poder – para o qual, aliás, apresentámos já um conjunto de proposições ao seguirmos as categorias empíricas de análise dominantes do pensamento tradicional ocidental – é identificar o que se modifica no seu conteúdo por força dos filtros de quem o aplica, questão que tem particular relevo ao convocarmos África como denominador comum e que apela a outros contributos disciplinares, especialmente os da antropologia e da sociologia que concorrem para a tentativa de resolução de alguns constrangimentos apriorísticos construídos precisamente pela tradição filosófica do modelo de hierarquização de saberes de padrão ocidental, isto é, pelo chamado “provincianismo ocidental” que dominou o conhecimento durante o longo monólogo africanista até à afirmação da autonomia interdisciplinar dos estudos africanos. É que, como sublinha Heimer (2002), as sociedades africanas abrangem sempre uma pluralidade de mundos que coexistem, se sobrepõem e interpenetram, que se encontram envolvidos em processos muitas vezes acelerados de mutação, e cuja configuração complexa está muito longe de corresponder à ideia de grupos sociais coerentes, sedimentados ou homogéneos.

Ao escrever sobre a resistência no âmbito do paradigma gramsciano, a que fizemos referência na secção 1.6., o antropólogo e politólogo norte-americano James C. Scott (1985: 335) identifica o mesmo problema que, aliás, não é só aplicável às sociedades africanas, o que faz avultar ainda mais a questão que se pretende pôr aqui em evidência: “Social systems, including ours, are not systematic and coherent; they are composed of groups and individuals who continually define their lives in contraposition to seemingly accepted norms.” Significa isto que o poder “does not emanate from a single source and social formations are composed

of centers and epicenters of power in dynamic relationship with one another” (Arens & Karp, 1989: xvi). Esta nota releva da esfera das relações de dominação e subordinação, mas sublinha igualmente a premissa da pluralidade de sentidos que coexiste em África.

Dito de outra forma, a dimensão pluricultural e pluriétnica das sociedades africanas – um enorme mosaico evidentemente parcelado de projectos cosmológicos, assentes em matrizes fragmentadas e distintas que expressam diferentes formas de socialização – obriga a reequacionar as categorias empíricas que concorrem para a captura dos conceitos em escrutínio, que coincide, aliás, com o esforço de ruptura epistemológica com algumas visões etno e socio-cêntricas que pautam a história e a etnografia da África subsariana. É um processo que levanta vários problemas de sancionamento científico, tanto mais que tropeça num impasse teórico da mundivisão africana, como denuncia Solli, apoiado por vários outros investigadores (e.g. Clapham, 1996; Mamdani, 1996; Herbst, 2000; Mbembe, 2001; Rotberg, 2004): “Africa has remained marginal to social theory and therefore we can talk about a theoretical impasse regarding understanding the power relationships on the continent. The consequences of this theoretical poverty are dire, as it inhibits purposeful action to improve the situation and further human development on the continent” (2008: 2).

É de sublinhar que este impasse teórico, que radica no referido esforço de ruptura epistemológica com as visões etno e socio-cêntricas, torna-se ainda mais relevante se convocarmos os contributos de autores como o sul-africano Ndlovu-Gatsheni (2013) e do porto-riquenho Ramón Grosfoguel (2004, 2007a, 2007b, 2008) e uma outra denúncia que ambos fazem, nomeadamente a problemática das mistificações recorrentes da colonialidade do poder na África pós-colonial, uma visão de maior amplitude que forçosamente terá de ser abordada neste capítulo e da qual antecipamos para já o que poderíamos caracterizar como uma proposta de reflexão prévia que sugere vários desafios para a análise das mundivisões do poder em contexto subsariano. Para Ndlovu-Gatsheni (2013: 14), “what Africans celebrated as independence was a myth taken for reality as invisible snares of coloniality of power were ignored, thereby denying the birth of a truly postcolonial African world. In other words, the authentic postcolonial era is still part of unfulfilled African aspirations. The postcolonial African world is an imagined space of freedom and identity reconstruction that is still being fought for. It forms a major part of African aspirations that emerged from the terrain of colonial encounters of the 15th century”. Na leitura de Grosfoguel (2007a: 219), “one of the most powerful myths of the twentieth century was the notion that the elimination of colonial

administrations amounted to the decolonization of the world. This led to the myth of a ‘postcolonial’ world. The heterogeneous and multiple global structures put in place over a period of 450 years did not evaporate with the juridical-political decolonization of the periphery over the past 50 years. We continue to live under the same ‘colonial power matrix.’ With juridical-political decolonization we moved from a period of ‘global colonialism’ to the current period of ‘global coloniality”.

Ora, uma das primeiras possibilidades de sinalização das dificuldades que se apresentam neste contexto analítico é o sentido semântico do próprio vocábulo poder (o macht weberiano, na versão alemã), cujos equivalentes nas diferentes línguas e culturas subsarianas traduzem visões distintas da sociedade e da acção humana.

Vejamos alguns exemplos. Para o grupo linguístico Iteso, dialecto nilo-saariano falado por uma minoria étnica que ocupa parte do Quénia e do Uganda, na África Oriental, a palavra usada para traduzir “poder” é apedor, cujo significado principal é habilidade ou capacidade. Este sentido semântico pode ser contrastado com agogong, isto é, força física, ou nalguns contextos com abeikin, ou seja, algo para cumprir, mas não supõe a ideia de habilidade ou capacidade. De resto, não há nenhuma palavra para autoridade e os poderes públicos governamentais ou autoridades institucionais devidamente constituídas são designadas por algumas das palavras relacionadas com a ideia de controlo (cf. Fishman & García, 2010). Entre os Masai, da mesma família linguística, também na região dos Grandes Lagos, nomeadamente no Quénia e no norte da Tanzânia, a palavra mais próxima da ideia de poder é aider, que significa capacidade ou aquele que separa força física e controlo (cf. Kipury, 1983). Uma linha similar pode ser encontrada entre o Luo nilótico, falado na mesma região, incluindo o Uganda e o Sudão, no qual a raiz da palavra para a capacidade é timo, que também pode significar acção. A particularidade aqui é a forma substantiva de timo, tim, que traduz cultura (cf. Cohen & Odhiambo, 1987). Na África Ocidental, entre os povos Akan, é igualmente possível identificar uma estrutura semântica semelhante, nomeadamente junto dos Loma da Libéria, um grupo étnico da família Mandé, para os quais a palavra capacidade é ghaabaa, que contrasta com o termo que designa a força física. Ghaabaa pode referir-se, aliás, à possibilidade dos indivíduos envolverem-se em actos rituais como a adivinhação (cf. Leopold, 1991).

E daqui decorre a sugestão para o essencial desta sinalização, sem sequer ser necessário convocar a complexidade das línguas bantu, um tronco linguístico que envolve mais de 400 grupos étnicos em território subsariano ou, numa perspectiva mais alargada, a problemática do poder da linguagem e da comunicação (cf. Vigouroux & Mufwene, 2008): a “armadilha” da suposição apriorística, mais ou menos generalizada na visão ocidental por referência ao seu próprio dispositivo de normas culturais e simbólicas, de que (i) há factos “objectivos” descritíveis objectivamente e traduzíveis literalmente para qualquer língua e (ii) ficções ou “descrições simbólicas”, na impossibilidade de descrever objectivamente os factos de determinada cultura, que nesse caso passam a ser entendidos como “primitivos”.

Clarifiquemos com a sistematização crítica de Hamminga (2005): “The western superstition amounts to a belief in an objective distinction between real and symbolic description. If westerners conclude that some other culture deems something literal that according to western believe can only be taken symbolically, this culture is called ‘primitive’ (…) This restriction of human awareness to semantics, its ensuing truth-falsehood and facts- fiction dichotomies concisely depict the primitive epistemological savagery resulting from the impersonal objectivity icon of western culture (…) To understand Africa properly, western concepts like theory, language, art, science and religion should best all be left home.”

Emerge assim a evidência de que cada “cultura” traduz uma visão distinta do mundo que carece de ser interpretada e discutida à luz da sua própria coerência interna, como se pode verificar a partir da mera sinalização dada pela diversidade semântica das línguas que formulam e comunicam as ideias dos grupos de actores que as usam, ou seja, através do processo de construção e representação simbólica das próprias ideias inerente a uma determinada formação etnolinguística.

Ora, se reposicionarmos o debate no âmbito da problemática do poder, é de aceitar assim que, como apontam Arens e Karp (1989: xxii), “the concept of ‘power’ as it is used by all peoples encodes ideas about the nature of the world, social relations, and the effects of actions in and on the world and the entities that inhabit it”. Esta codificação de ideias sobre a natureza do mundo tem uma implicação imediata: o poder deve ser visto como um artefacto da imaginação e uma faceta da criatividade humana, o que requer um confronto entre as definições ditas “indígenas” captadas pelos cientistas sociais e as definições locais ditas “reais” ou materiais, isto é, as que se produzem na imaginação dos próprios indivíduos e que

não são necessariamente portadoras do conteúdo das primeiras, definições que decorrem das diferentes formas sob as quais o poder é pensado e criado para se manifestar como princípio actuante da vida social numa dada sociedade ou cultura africana.

Trata-se, portanto, do confronto entre (i) o modus operandi segundo o qual os cientistas sociais tendem a descrever e a analisar os conceitos de poder e (ii) o conteúdo material desses mesmos conceitos que povoa o imaginário e determina a acção dos actores sociais, aqueles que estão sob observação dos cientistas sociais. É um campo fértil de investigação para a antropologia social que remete para o plano da análise das inter-relações (ou “estruturas”) culturais como sistemas de significação bem como para a esfera da historicidade, tanto conjuntural como estrutural, inerente à observação das premissas culturais, tal como propõem Balandier (1956, 1957, 1963, 1969, 1977, 2014) e Foucault (1979).

Na prática, estamos, pois, perante a difícil tarefa da representação social do poder ou, em rigor, da captura das formas de socialização do poder num determinado sistema cultural, que condiciona e é determinado por vários subsistemas, isto é, todos os que traduzem as várias dimensões da actividade humana em que o poder se manifesta. Nestes termos, é de concluir que a percepção da modificação do conteúdo da noção de poder implica iguais alterações de conteúdo nos conceitos associados, da autoridade à legitimidade, das relações de dominação e subordinação à “construção” do Estado e do State power – que em África, como referimos, conhece duas versões, o Estado colonial e o Estado pós-colonial, que nem sequer são minimalistas, como sucede grosso modo no Ocidente, mas dualistas no sentido de que ambas pressupõem um Estado central e hegemónico e um Estado local rural, dito étnico ou tribal (cf. Mamdani, 1996; Dias, 2001) – ou seja, uma modificação que afecta toda a estrutura de análise.