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Todas estas fracturas entre distintos segmentos sociais, com diferentes trajectórias históricas (e historicidades, total ou parcialmente autónomas, conforme os elementos identitários que cada grupo utiliza para dotar de sentido a sua acção na transição da conjuntura colonial para a pós-colonial) – em que avultam a elite bacongo, a elite negra dos “novos

assimilados”84, a elite crioula dos “velhos assimilados” e os africanos “pobres e sem

instrução” das regiões do interior85 – apelam para a evidência de que a organização política da

insubmissão (que resulta em várias iniciativas de insurreição e, por fim, no confronto armado com o poder colonial no início da década de 1960) é, antes de mais, a expressão simbólica de diferentes experiências de opressão colonial. Trata-se, pois, de um capital histórico referencial que conduz a dinâmicas rivais de racionalidade económica e social, para as quais, isto é, ao serviço das quais, sublinhamos, se elabora igualmente uma racionalidade étnica enquanto “mercadoria transaccionável” para legitimação e apropriação política. Com efeito, como preconiza Birmingham (2002: 141), “the virulence of the rivalry between colonial peoples with different experiences of exploitation was profoundly rational and economic and had no roots in ethnic history”.

Nestes termos, insistimos – e perante a evidência de que é no quadro de várias dinâmicas rivais de longo alcance, isto é, de diferenciações históricas complexas capitalizadas                                                                                                                          

83  Sobre esta problemática, cujo debate é extenso porquanto obriga a recorrer a várias categorias de análise (e.g.

nacionalismo cultural, nacionalismo territorial, nacionalismo anticolonial, entre outros), ver também Gonçalves (1999), Malaquias (2000) e, para um breve enquadramento histórico, Wheeler & Pélissier (2009: 241-268), bem como Sá (2010: 93-130), que apresenta um interessente estado de arte sobre a dupla abordagem da (i) construção da nação pelo nacionalismo e da (ii) construção da nação pelo Estado em Angola.  

84   É de sublinhar que, apesar deste grupo aparecer por vezes na literatura associado às elites bacongo, ou à

emergência destas, e ainda que delas emanem de facto muitos dos “novos assimilados”, a distinção opera-se não propriamente por um referencial geográfico mas por uma conjuntura de renovação da política de assimilação colonial, delimitada no tempo, ou seja, desde o segundo quartel do século XX (por via do código do indigenato e da subsequente legislação que lhe serve de suporte), momento a partir do qual uma nova vaga de africanos ascende ao “mundo dos civilizados”, o que o leva a diferenciá-la, aliás, e sobretudo, dos descendentes da elite crioula dos “velhos assimilados”.  

por uma ordem social severamente estratificada, que se edifica a consciência nacional

angolana86 e, consequentemente, os diferentes projectos nacionalistas – (i) a dimensão étnica,

ou a dinâmica de exclusão com base em identidades étnicas (ainda que concorra para a configuração da arena nacionalista, na medida em que é objecto de manipulação política para a mobilização “partidária”) não constitui o factor fundador dessa mesma configuração.

O que, por conseguinte, retira conteúdo e significado (ii) à essência etnogeográfica da partilha das principais áreas etnolinguísticas entre os três grandes movimentos de libertação, uma distribuição que atribui a área quicongo à FNLA, a área quimbundo ao MPLA e a área umbundo à UNITA. Se é certo que esta distribuição coincide com a trajectória histórico- geográfica endógena das três organizações, isto é, com a trajectória inicial em que materialmente se movimentam – partindo de pólos irradiadores, justamente aqueles que estão dotados de recursos simbólicos que possibilitam a sua acção (ou seja, activando, sempre que necessário, os estereótipos étnicos e regionais da etnologia colonial) – o alcance político das mesmas ultrapassa a dimensão geográfica, porquanto procura dirimir antagonismos sociais e

económicos que não reconhecem limites territoriais87. Acresce a aspiração à hegemonia e à

ocupação efectiva e pela totalidade do espaço que o colonizador deve deixar vago, não obstante os distintos acervos de valores e cosmovisões que cada movimento apresenta e

adapta, numa negociação constante com as mutações conjunturais do campo político88 (tanto

em contexto de guerra de libertação colonial, como em contexto de guerra civil após a

                                                                                                                         

86  A discussão do tema obriga a ter em conta algumas reservas conceptuais, insistimos, bem como a conjuntura

internacional, sobretudo no que diz respeito à apropriação ou influência de determinadas correntes de pensamento que se afirmam fora do continente africano. De resto, e especificamente sobre o modo como se manifesta a consciência nacionalista angolana, é de seguir o estudo de Gonçalves (2002: 111-117), que identifica e caracteriza quatro formas de expressão fundamentais – (i) os movimentos literários angolanos; (ii) as instituições de ensino e de formação das elites angolanas; (iii) as associações cívicas e culturais; e (iv) os movimentos ditos nativistas, religiosos ou messiânicos, com forte influência nos meios rurais – na prática, quatro canais de tradução e adaptação no plano local das ideias anti-imperialistas e de organização da resistência anticolonial que circulam no plano externo.  

87  A falência da FNLA enquanto movimento político em 1975, na transição da independência para a guerra civil,

atesta a especificidade redutora e contraproducente de um projecto exclusivamente etnonacionalista no contexto angolano ao pretender impor uma supremacia de base regional e étnica, neste caso das elites bacongo, sem representatividade de outras forças ou outros agentes, simbólicos ou materiais, sem emitir mensagens com conteúdo nacional. Com efeito, apesar da boa organização militar e política na região do Zaire, a FNLA mostra- se incapaz de sair do seu espaço tradicional e tomar o poder pela força, entrando em declínio à medida que o MPLA e a UNITA assumem progressivamente a bipolarização do campo político, a mesma que é discutida na fase inicial da afirmação dos “nacionalismos” entre o MPLA e a própria FNLA (cf. Messiant, 1994; Chabal, 2002).  

88  A FNLA é a excepção, mantendo-se fiel à génese etnonacionalista regional, o que dita o seu declínio como

independência, cuja internacionalização apela também a muitas contradições e

ambiguidades)89.

Neste particular, a FNLA – sob a liderança centralizada e autoritária de descendentes das famílias tradicionais protestantes da aristocracia bacongo, formatados por uma educação de padrão europeu e uma condição social urbana, com experiências de emigração no Congo belga e, consequentemente, contacto com formas de segregação racial particularmente severas (como referimos atrás) – desenvolve um projecto político exclusivamente etnonacionalista, dentro da lógica da afirmação da superioridade identitária das elites negras bacongo (Chabal, 2002), cuja base ideológica é descrita por Messiant (1994: 163) nos seguintes termos: “son idéologie – un nationalisme liberal mais africain radical car très opposé non seulement au colonialisme mais aux colons et à l’imposition de la culture européenne – lui est donné par ces élites, néo-traditionnelles certes – mais qui sont devenus à Leópoldville des élites modernes, chrétiennes (protestantes), insérées dans l’économie moderne”.

Por seu lado, o MPLA – que agrega na fase inicial os descendentes da elite crioula dos “velhos assimilados”, ou seja, com uma forte componente social mestiça e intelectual (partilhando com a FNLA a condição eminentemente urbana e a educação de padrão europeu) – adopta, segundo Messiant (1994: 162), “un nationalisme, progressiste et socialisant, mais qui est aussi un nationalisme fondé sur des valeurs typiquement ‘créoles’, universalistes, nationales, multiraciales, et fortement influencé par des idéologies européennes, humanisme chrétien ou surtout marxisme”. O que leva Chabal (2002) a identificar neste movimento

algumas características “modernizantes”90, designadamente uma determinação supra-étnica

fundada na ambição de edificar um Estado-Nação moderno e secular, de acordo com um modelo europeu (ocidental ou de leste). É pois à luz desta ambição que o movimento da elite crioula recorre a um discurso de representatividade universalista, em rigor do todo nacional angolano, como forma de legitimação política, afastando-se assim da FNLA e do projecto                                                                                                                          

89  A instrumentalização ideológica promovida por forças exógenas ao território angolano no quadro das fracturas

da ordem internacional bipolar, para protecção de interesses económicos e estratégicos com relevância internacional, acondiciona os alinhamentos políticos das forças internas (que elaboram ao longo do tempo várias inflexões com carácter ambíguo, por vezes contraditórios e, no limite, quase contranatura) e influencia a trajectória da guerra civil na medida em que concorre para o aprofundamento e complexificação das cisões na génese do conflito. Para Birmingham (2002: 77), “the result was that the country became the prey to superpower rivalry and its conflict with UNITA came increasingly to be interpreted in the light of Cold War calculations”. Com efeito, a internacionalização da guerra civil encontra expressão nos apoios tão diversos quanto antagónicos que, directa ou indirectamente, são dados ao MPLA e à UNITA por forças externas, a que não são alheios, no terreno, por exemplo, o apoio militar de Cuba ao MPLA e as incursões das tropas de Pretória no sul de Angola baseadas em cálculos manifestamente contraditórios.  

90  A reserva conceptual é nossa no quadro da discussão que promovemos já neste trabalho a propósito da relação

desta, de pendor etnonacionalista (ou seja, assente numa base de apoio regional), ainda que os fundamentos sejam frágeis, sobretudo a partir do momento em que se manifestam clivagens profundas entre os “velhos assimilados” e os “novos assimilados” que, entretanto, se juntam às fileiras do MPLA e entre os diferentes segmentos sociais que nele confluem, rupturas que se desdobram noutras dicotomias como negros e mestiços, “intelectuais” e “não intelectuais” ou gente do mato implicada na luta armada e burgueses citadinos que não se envolvem no conflito militar (cf. Mabeko-Tali, 2000).

Quanto à UNITA – criada pelos “novos assimilados” de origem ovimbundo dissidentes da FNLA – preconiza, pelas razões já expostas, uma oposição quer à elite negra bacongo da FNLA, quer à elite crioula mestiça do MPLA, procurando a diferenciação pela “representatividade africana”, o que lhe permite uma argumentação com um duplo efeito. Ao apelar à especificidade da negritude e da experiência da africanidade, tanto rejeita a “representatividade étnica”, isto é, o etnonacionalismo regional da FNLA, como as características “portugalizadas” e “europeizadas” da elite crioula do MPLA. Segundo Messiant (1994: 166), “est ainsi cette spécificité des ‘nouveaux assimilés’ par rapport aux ‘anciens’ (c’est l’opposition principale qui les fait choisir le FNLA), mais aussi par rapport aux élites ‘évoluées néo-traditionnelles’ du FNLA: L’UNITA s’oppose comme le FNLA à ‘l’aristocracie créole’ du MPLA vue comme ‘caste’, elle se définit face à celle-ci comme ‘africaine’ (et non comme ‘angolaise’), valorise sa commnauté culturelle, linguistique et raciale avec le peuple, et oppose à cette ‘caste’ sa propre supériorité des ‘fils du peuple’. Mais contrairement au FNLA, ses dirigeants assimilados ne se posent pas comme direction réelle ou potentielle d’un groupe ethnique mais du ‘peuple africain’ (noir), et priorisent la distinction raciale (avec les métis) et culturelle (avec les créoles)”. Significa isto que a UNITA adopta um perfil tradicionalista, que se opõe ao perfil “modernizante” do MPLA, razão pela qual Chabal (2002: 7) defende que o conflito entre as duas forças, que se afirma particularmente a partir da guerra civil, “epitomises the political hostility between ‘modernizers’ and ‘traditionalists’ in Portuguese speaking Africa”.

Importa sublinhar porém – e é uma originalidade, mesmo em relação às mutações ideológicas do MPLA, as ditas “transições” ou “reajustamentos”, que têm viabilizado a reprodução do seu sistema do poder e a cristalização da sua hegemonia (através de uma enorme capacidade de resistência adaptativa, de auto-produção e auto-viabilização) – que a UNITA, não obstante fundar a sua proposta nacionalista no ideário maoista (com a especificidade de o entender como uma corrente marxista apoiada na revolução do

campesinato que se distancia do modelo de pensamento marxista europeu que este movimento considera ter sido adoptado pelo MPLA) (cf. Messiant, 1994), acaba por imbricar-se numa labilidade ideológica sem precedentes na história política angolana, uma estratégia de sobrevivência a todo o custo, pragmática e calculista, que aceita os mais diversos alinhamentos ideológicos (e alianças com os mais variados actores da comunidade internacional) desde que permitam a manutenção da organização no campo político angolano na competição pelo poder.

Com a queda do Estado Novo em Portugal e o início do processo de descolonização, a configuração tricéfala da arena nacionalista angolana é desvelada por completo, pondo em evidência a dupla conflitualidade do campo político (isto é, a particularidade de que a luta armada contra o poder colonial, entre 1961 e 1974, progride em paralelo com a competição entre grupos rivais pelo poder total de Angola) e a dimensão das fracturas entre as forças que o ocupam, de que é sintomático, aliás, o fracasso do acordo de Alvor (a que acresce a “originalidade” da declaração de independência feita a três, em separado, pelos líderes dos

movimentos, em Novembro de 197591, no dia em que Portugal transfere formalmente a

soberania do território para o “povo angolano”, ao invés de para “os únicos e legítimos representantes” do mesmo – FNLA, MPLA e UNITA – conforme consagrado no artigo 1º do acordo assinado em Alvor em Janeiro desse ano entre o Estado português e os três

movimentos de libertação)92.

O caos que se segue, com uma guerra civil que se arrasta durante 27 anos – pontuada por três etapas que reestruturam os conteúdos do conflito e a percepção dos mesmos tanto no plano interno como no externo, nomeadamente em 1991 com os acordos de Bicesse, em 1994 com o protocolo de Lusaka (cf. United States Institute of Peace, 1994) e finalmente em 2002                                                                                                                          

91  Em plena guerra civil, o MPLA proclama a independência da República Popular de Angola às 23 horas do dia

11 de Novembro de 1975, em Luanda, pela voz de Agostinho Neto (cf. Neto, 1975). Uma hora depois, a FNLA proclama a independência da República Popular e Democrática de Angola, através de Holden Roberto, no Ambriz, na actual província do Bengo, ao mesmo tempo que a UNITA, no Huambo, pela voz de Jonas Savimbi. “Uma pressurosa e algo embaraçosa proclamação da independência de um país partido em três”, como caracteriza Santos (2002: 11), que traduz a tentativa de “instauração” de dois governos: o de Luanda, sob controle do MPLA (que acaba por ocupar o “edifício” do Estado colonial e reproduzi-lo sob a forma de um Estado monista de inspiração marxista), e o do Huambo, que se desagrega rapidamente pela volatilidade da coligação entre a UNITA e a FNLA (organizações que se mostram incapazes de chegar a um acordo operacional viável sobre a partilha de poder).  

92  É de anotar a forma como o último representante da soberania portuguesa em Angola, o Alto-Comissário e

Governador-Geral de Angola Leonel Cardoso, declara a independência do país, numa cerimónia no então Governo Provincial de Angola em Luanda, sem a presença de um único cidadão angolano: “em nome do Presidente da República Portuguesa, proclamo solenemente (…) a independência de Angola e a sua plena soberania, radicada no povo angolano, a quem pertence decidir as formas do seu exercício” (cf. Diário de Notícias, 2004).  

com o Memorando de Entendimento de Luena (cf. United States Institute of Peace, 2002) (após a morte de Jonas Savimbi) (cf. Público, 2002a) – é conhecido e tem sido amplamente

documentado e discutido93.

Ora, o que importa observar a partir daqui, para os efeitos de contextualização crítica a que este capítulo se propõe e para além do que foi já enunciado, é a progressiva afirmação de um sistema de poder, ou de dominação, baseado numa “nomenclatura petrolífera” (Pestana, 2002) e em relações clientelares de interdependência entre poder e elites (Chabal, 1994; 2002) que engendram o Estado pós-colonial angolano, nos termos que hoje se lhe reconhece, e as ideias de poder dominantes que, aliás, são objecto do estudo empírico deste trabalho.