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Para este académico sul-africano – que adopta as ferramentas conceptuais e analíticas da perspectiva da colonialidade crítica desenvolvida por um grupo multidisciplinar de

intelectuais latino-americanos39, defensores das chamadas epistemologias descoloniais – a colonialidade do poder tem um carácter global e é portadora da figura de um neocolonialismo de matriz ocidental que se manifesta nas mais variadas dimensões da actividade humana, o que coincide com a interpretação do sociólogo peruano Aníbal Quijano, citado aliás por Ndlovu-Gatsheni: “La colonialidad es uno de los elementos constitutivos y específicos del patrón mundial de poder capitalista. Se funda en la imposición de una clasificación racial/étnica de la población del mundo como piedra angular de dicho patrón de poder y opera en cada uno de los planos, ámbitos y dimensiones, materiales y subjetivas, de la existencia social cotidiana y a escala societal” (2000: 342).

Neste sentido, Ndlovu-Gatsheni recupera as três grandes dimensões da colonialidade propostas por Quijano no âmbito do projecto M/C – a do (i) poder, a do (ii) conhecimento e a do (iii) ser – porquanto considera serem “useful analytical tools enabling a deeper understanding of the roots of African predicaments and dilemmas, be they political, social, ideological, economic or epistemological” (2013: 7), para tipificar as componentes estruturantes das relações de dominação e exploração de matriz ocidental observáveis no mundo não-ocidental no geral, e em África, em particular, sobretudo na África pós-colonial (o que sugere a referida mistificação do poder e a ilusão da “independência” e da “liberdade”

que obscurecem a continuidade do passado colonial na chamada “era pós-colonial”)40.

Ora, segundo o autor, esta ocidentalidade inscrita nas relações de dominação e exploração manifesta-se (i) no controlo das economias africanas, nomeadamente através das expropriações e da exploração da mão-de-obra e dos recursos naturais; (ii) no controlo das autoridades tradicionais, em sentido lato, o que pressupõe o controlo das respectivas comunidades que representam e, por conseguinte, a atribuição aos líderes locais de um papel de “supervisão de baixo escalão” dos africanos, os quais são entendidos neste particular e de forma generalizada e homogénea como mera mão-de-obra barata e pagadores de impostos; (iii) no controlo do género e da sexualidade de modo a que a estruturação das famílias e a                                                                                                                          

39  Trata-se do projecto “Modernidade/Colonialidade” (M/C), o programa de investigação latino-americano mais

importante da primeira década de 2000 – em que avultam nomes como Nelson Maldonado-Torres, Ramón Grosfoguel, Aníbal Quijano, e Arturo Escobar, incluindo igualmente o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos – assente na construção de um modelo de pensamento crítico “descolonial” que visa refractar e superar a problemática do “mundo pós-colonial neocolonizado” sustentada pelas epistemologias ocidentais de dominação e exploração (cf. Maldonado-Torres, 2008: 71-114; Grosfoguel, 2008: 115-147).  

40  A problemática do passado e do presente, e da manipulação recíproca entre os dois como uma operação de

reconstituição identitária, é objecto de análise de vários autores, em que avulta o filósofo camaronês Achille Mbembe (2013: 81-86).  

educação possam ser influenciadas e condicionadas; e (iv) no controlo da subjectividade e do conhecimento, que permita a imposição de uma epistemologia ocidental e molde os processos formativos de desenvolvimento da subjectividade negra.

Para Ndlovu-Gatsheni, a aplicação desta matriz na África contemporânea aparece incrustada nos modelos de governação do Estado pós-colonial, independentemente do regime político adoptado, formal ou materialmente, o que constitui a face visível da mesma, mas também no que resulta da formatação colonial das actuais relações de poder social e político, o que constitui a sua face invisível.

Quer isto dizer que, na linha do pensamento de Quijano (2007) e Grosfoguel (2007a, 2007b), a colonialidade do poder “articulates continuities of colonial mentalities, psychologies and worldviews into the so-called ‘postcolonial era’ and highlights the social hierarchical relationships of exploitation and domination between Westerners and Africans that has its roots in centuries of European colonial expansion but currently continuing through cultural, social and political power relations” (2013: 8).

Trata-se, pois, como caracteriza Grosfoguel (2004), de uma colonialidade de natureza global, “which currently flexes its muscles in the form of globalization through which Western particularistic ideas, values and traditions are being spread across the world as global norms of governance”, procurando esconder assim a figura intrínseca de neocolonialismo de que é portadora. Uma figura que, para o conjunto de autores que temos estado a convocar, pode ser observada a partir de dois níveis adicionais: o da colonialidade do conhecimento e o da colonialidade do ser.

Na leitura de Escobar (2007), o primeiro nível adicional remete para a esfera epistemológica e implica indagar da forma como a “modernidade colonial” interfere com os modos africanos do saber, os sentidos ou significados sociais, isto é, os modos como os africanos imaginam, vêem e produzem o conhecimento, com vista a substituir as epistemologias eurocêntricas que assumiram o carácter e a presunção de saberes objectivos, científicos, neutrais e universais, ou seja, os únicos realmente válidos. Com base neste pressuposto, cujos problemas se encontram sistematizados por Chabal & Daloz (1999), Aníbal Quijano aplica a doutrina: “Coloniality of knowledge directly addresses the crucial question of how Western modernity spread through displacing other cultures, subordinating

others and colonizing the imagination of the colonized peoples. This took the form of repression of existing African beliefs, ideas, images, symbols and forms of knowledge that were found to be repugnant to global colonial domination” (2007: 169).

Com efeito, como sublinha o sociólogo peruano, os ocidentais labutaram de forma incansável para impor o seu conhecimento à escala global como o único válido, espalhando-o pelo mundo através do cristianismo e de outros meios que, no caso de África, resultou num processo de apropriação e sobreposição dos saberes locais existentes. Neste sentido, o conhecimento ocidental e o poder imperialista trabalharam juntos para transformar a dominação ocidental e o eurocentrismo numa matriz universal e inscrevê-la em todo o continente africano, a colonialidade invisível que a descolonização não erradicou. Pelo contrário. Como sublinha Fanon (1963), a descolonização não se resume a alcançar a libertação nacional; ao invés, pressupõe a criação de uma nova ordem material e simbólica que tem em consideração o espectro completo da história humana, incluindo as suas conquistas e fracassos. Daí a sentença de Grosfoguel (2007a: 220): “The decolonization standpoint obscured the continuities between the colonial past and current global colonial, racial, patriarchal and hegemonic hierarchies and, in the process, contributed towards continuities of ‘invisibility of coloniality’ today”.

Acresce, por fim, enquanto segundo nível adicional, a colonialidade do ser que, de acordo com Maldonado-Torres (2008: 84-96), refere-se ao paradigma dos “condenados da terra”, como chama Frantz Fanon, ao ser-colonizado que emerge quando o poder e o pensamento se tornam mecanismos de exclusão, um produto do “mundo colonial/moderno” ou da modernidade/colonialidade na sua íntima relação com a colonialidade do poder, com a colonialidade do saber e com a própria colonialidade do ser. Trata-se do processo que define o ser e os seus sentidos, o que remete para a historicidade da experiência colonial e para as ideias nascidas e perpetuadas pelo submundo da colonialidade; para as dinâmicas de poder de carácter preferencial, que discriminam os indivíduos e tomam por alvo determinadas comunidades; para o que Ndlovu-Gatsheni (2013: 8) caracteriza como a desumanização e despersonalização dos colonizados negros. Uma codificação ontológica fundada na herança epistémica e identitária, isto é, na prática colonial das hierarquias raciais do poder – “a domain of violence, war, rape, diseases, death and mourning”, no qual os seres-colonizados são reduzidos a não-seres – que define os espaços africanos actuais, ditos modernos, no

quadro da “continuidade colonial” ou, por outras palavras, da referida colonialidade da “era pós-colonial”.

De resto, para Maldonado-Torres (2008: 108), este é um paradigma que está tão enraizado que nem autores como Derrida (1983) e Habermas (1990) conseguiram derrubar, uma vez que apelam, quando muito, a críticas eurocêntricas do próprio eurocentrismo, “ao invés de desafiarem as geopolíticas racistas do conhecimento que se tornaram tão centrais no discurso ocidental”.

Ora, perante estas coordenadas, que propõem uma reavaliação da noção de modernidade à luz da experiência colonial, fazendo avultar a importância da espacialidade geopolítica, ou seja, abrindo “uma porta analítica e crítica que revela o lado mais escuro da modernidade e o facto de nunca ter existido, nem poder vir a existir, modernidade sem colonialidade”, como afirma Mignolo (2003: 633), é de seguir o pressuposto de Maldonado- Torres (2008: 94) segundo o qual “a colonialidade faz referência à raça e, consequentemente, ao espaço e à experiência”, bem como concretizar a problemática nos termos em que a formula: “A modernidade implica a colonização do tempo pelo europeu, isto é, a criação de estádios históricos que conduziram ao advento da modernidade em solo europeu. Todavia, os próprios laços que ligam a modernidade à Europa nos discursos dominantes da modernidade não conseguem deixar de fazer referência à localização geopolítica. O que o conceito de modernidade faz é esconder, de forma engenhosa, a importância que a espacialidade tem para a produção deste discurso. É por isso que, na maioria das vezes, aqueles que adoptam o discurso da modernidade tendem a adoptar uma perspectiva universalista que elimina a importância da localização geopolítica. Para muitos, a fuga ao legado da colonização e da dependência é facultada pela modernidade, como se a modernidade enquanto tal não tivesse estado intrinsecamente associada à experiência colonial”.

Neste contexto analítico, isto é, tendo em conta os elementos constitutivos do conceito de modernidade sob a perspectiva da colonialidade crítica, Ndlovu-Gatsheni (2013: 12) considera que se torna claro que o mundo colonial/moderno “is a domain of myths of decolonization and illusions of freedom and a terrain of unfinished nation-building, fragmented identities and failing economic development. At its centre is the reign of epistemological colonization”. Segundo o autor, é esta, pois, a matriz de poder que configura o campo político africano pós-colonial, mistificado e distorcido pelo conjunto de padrões

antigos de poder que emergiram do colonialismo e que continuam a definir a cultura, a produção de conhecimento e as relações intersubjectivas do sujeito africano. Uma matriz que se esconde, como assinala Maldonado-Torres (2007: 243), nas narrativas e na própria auto- imagem dos africanos. Numa frase, conclui Ndlovu-Gatsheni (2013: 16), “Africans have breathed and lived coloniality since their colonial encounters and it continues to shape their everyday life today”.

Este paradigma radical, ao pôr a tónica no carácter invisível da colonialidade do poder, faz avultar a capacidade de moldar e influenciar a percepção dos indivíduos bem como a de inscrever, a vários níveis, um sentido determinista na acção dos mesmos, na medida em que é a percepção que dita a acção. Contudo, e noutra linha de análise, é de observar, como chama a atenção Maldonado-Torres (2008), que os conceitos de colonialidade do poder, colonialidade do conhecimento e colonialidade do ser também podem tornar-se problemáticos se não derem espaço à enunciação das cosmologias não-ocidentais e à expressão das diferentes memórias culturais, políticas e sociais, o que, aliás, coincide com as reservas que formulámos na secção 2.2.

Daí que Grosfoguel (2008: 143-144) defenda uma redefinição e reconfiguração do próprio conceito de universalidade, no sentido da criação de um universal descolonial que respeite e integre as múltiplas particularidades locais nas lutas contra a colonialidade e a modernidade eurocentrada, no quadro da diversidade dos projectos históricos ético- epistémicos descoloniais. Trata-se de um apelo à diversalidade das formas institucionais de socialização do poder assentes nas diferentes respostas ético-epistémicas descoloniais dos grupos subalternos do sistema-mundo a partir de uma perspectiva de transmodernidade. É que as formas de socialização do poder que emergem, por exemplo, no mundo islâmico são bastante diferentes das que emergem nos povos bantu da África Ocidental. Apesar de partilharem um projecto comum, “na sua luta anti-imperialista, antipatriarcal e anticapitalista descolonial”, dão ao mesmo concepções e formas institucionais diversas, de acordo com as suas múltiplas e diferentes epistemologias. Logo, e como preconiza Mignolo (2000), é necessário um apelo a um universal que seja pluriversal.

Conclusão

A dimensão pluricultural e pluriétnica das sociedades africanas obriga a reequacionar as categorias empíricas que concorrem para a captura da noção de poder e dos conceitos associados, uma vez que há uma modificação no conteúdo nos mesmos. Quer isto dizer que a racionalidade weberiana – que formata a orientação dos estudos sobre o poder nas suas várias versões e traduz, de uma forma genérica, a herança tradicional do pensamento ocidental – requer um exercício conceptual de maior amplitude, porquanto ao ancorar-se na estrutura dos sistemas sociais das sociedades industrializadas ocidentais tende a excluir contextos diferentes de codificação, como o subsariano, no qual avultam outras dimensões, designadamente as que resultam do universo político-simbólico.

Com efeito, a reapreciação dos modelos analíticos, isto é, da aplicação de um sistema de ideias em contextos de codificação diferentes daquele em que foi concebido, pressupõe aceitar que (i) o poder deve ser visto como um artefacto da imaginação e uma faceta da criatividade humana e que (ii) cada “cultura” traduz uma visão distinta do mundo que carece de ser interpretada e discutida à luz da sua própria coerência interna. Estes pressupostos ganham particular importância se consideramos que, no caso específico dos contextos africanos, o comportamento ritual está intimamente ligado aos processos de conversão das formas de poder e da sua transformação em capacidades de controlo sobre a vida social.

Importa, pois, afastar o modelo do poder de padrão centralista e hegemónico do Norte global – incluindo o apêndice das críticas eurocêntricas ao próprio eurocentrismo – que, regra geral, é usado pelos cientistas sociais, uma matriz constituída dentro de um contexto cultural ocidental, que tende a obscurecer as crenças e as experiências daqueles que se procura entender, e assumir uma etnografia da dominação guiada pela descodificação das noções culturais que dão sentido aos comportamentos observáveis nos espaços africanos, isto é, uma descodificação das premissas culturais inerentes à autoridade, e à legitimidade que a sustenta, nas múltiplas formações etnosociais africanas.

Neste sentido, é necessário delimitar o contexto estrutural e conjuntural do espaço africano, particularmente o campo político na África contemporânea, o que pressupõe indagar dos “agentes” e das relações de que estes são portadores e estabelecem entre si, bem como das

fontes da dominação e da submissão, das funções de mediação e das regras da competição pelo poder no jogo político africano. Este objectivo implica observar a historicidade em que se enquadram estes “agentes”, o que convoca conceitos escorregadios como tradição e modernidade bem como a bondade heurística de seguir empiricamente o dito sincretismo entre as sociedades rurais e a pretensa sociedade civil, que se “afirma” nas relações entre as autoridades tradicionais e o Estado pós-colonial.

De resto, mesmo reconhecendo que esta dinâmica relacional do campo político em África é fundamental para seguir a noção de poder sob a mundivisão subsariana, é de admitir também que a mesma não dá conta da acção de outros “agentes” não estatais, exógenos, comos algumas forças transnacionais, e endógenos, “outros” grupos sociais, “outros” homens e mulheres, regra geral, organizados e portadores de interesses diferentes dos “agentes” ditos autoridades tradicionais, isto é, com historicidades total ou parcialmente autónomas das dos actores tradicionais, o que leva a questionar o sentido da centralidade empírica do State power.

A este conjunto de dilemas, ambiguidades e indefinições, para o qual concorrem duas visões distintas que opõem os próprios africanos quanto às razões da “falência” do Estado pós-colonial e inscrevem, por conseguinte, variáveis adicionais na formulação do problema – (i) a externalista, que atribui o fracasso das políticas de desenvolvimento à “conspiração” do Ocidente e às pretensões deste de exploração capitalista manifestadas desde os tempos coloniais; e (ii) a internalista, que vê o colapso económico do continente como o resultado da opressão e má gestão de natureza neo-patrimonial das autocracias nativas modernas – acresce ainda a problemática da “distorção” da mundivisão africana forçada por mistificações várias que decorrem da designada colonialidade do poder na África pós-colonial. Trata-se da ilusão da “independência” e da “liberdade”, isto é, dos equívocos de percepção resultantes da descolonização, que obscurecem a dinâmica de continuidade entre o passado colonial e a chamada “era pós-colonial” e escondem a figura intrínseca de neocolonialismo de que a colonialidade é portadora.

Esta matriz de poder que configura o campo político africano pós-colonial – mistificado e distorcido pelo conjunto de padrões antigos de poder que emergiu do colonialismo e que continua a definir a cultura, a produção de conhecimento e as relações intersubjectivas do sujeito africano – tem um carácter visível, ao aparecer incrustada nos

modelos de governação do Estado pós-colonial, mas também, e sobretudo, invisível, porquanto se trata de uma codificação ontológica, escondida nas narrativas e na própria auto- imagem dos africanos, uma codificação fundada na herança epistémica e identitária colonial, isto é, na prática das hierarquias raciais do poder que define os espaços africanos actuais, ditos modernos, no quadro da “continuidade colonial” ou, por outras palavras, da colonialidade da referida “era pós-colonial”.

Resulta daqui a necessidade de uma redefinição e reconfiguração do próprio conceito de universalidade, no sentido da criação de um universal descolonial que respeite e integre as múltiplas particularidades locais nas lutas contra a colonialidade e a modernidade eurocentrada, no quadro da diversidade dos projectos históricos ético-epistémicos descoloniais.

É uma perspectiva que adquire particular interesse no contexto desta pesquisa, porquanto remete para uma arquitectura empírica que apela à multidimensionalidade epistémica, ou seja, desmobilizando a tendência de análise focalizada no State power e a presunção ocidental de matrizes analíticas de observância universal. São, pois, coordenadas úteis para relançar o debate sob as especificidades do contexto angolano, concretizando a letitura crítica sobre o poder e o modo como se manifesta e caracteriza nos espaços africanos, isto é, perante sistemas de codificação diferentes daquele em que o conceito e a sua aplicação foram concebidos.

Cap. III. A produção do poder em Angola

 

Revistos os principais contributos teóricos que concorrem a vários níveis e em diferentes dimensões para a problemática em escrutínio (como estratégia de operacionalização do objecto de estudo deste trabalho), aproximemo-nos, por fim, das especificidades de Angola, isto é, do contexto em que se localiza o estudo de caso que decidimos adoptar.

Para isso, precisamos de dialogar com o passado, ainda que o façamos de forma breve e sintética, em busca dos fenómenos de longa duração que manipulam o presente (e reconstroem simultaneamente o próprio passado como processo de reordenação dos acontecimentos que dotam o contexto actual de sentido e significados). Dito de outra forma, é necessário procurar as narrativas que desempenham de modo mais relevante uma função de significação no contexto actual de Angola, as narrativas que relatam um determinado “itinerário histórico” e que retransmitem a memória, porquanto qualquer apelo a uma reordenação do presente, isto é, qualquer tentativa de recuperação de uma identidade histórica à luz do presente, coexiste sempre com a lembrança de uma ordem antiga, a permanência de um imaginário.

O que se torna particularmente problemático em Angola, como em muitos outros espaços africanos, se consideramos que (i) tanto o poder colonial como o poder pós-colonial têm sido poderes-historiadores, reconstruindo a história oficial de acordo com as suas necessidades de reprodução, bem como, por outro lado, (ii) o facto de que a independência não saldou as questões resultantes das experiências históricas de supremacia, tanto a

escravatura e a colonização vividas pelas sociedades locais durante o domínio colonial41,

                                                                                                                         

41   É de sublinhar, aliás, neste particular, e seguindo o pensamento de Mbembe (2013), que a escravatura e a

colonização fazem parte da declaração de identidade do “indígena” e cristalizam o que constitui a sua singularidade na história do mundo num dado momento. Neste sentido, desempenham também um papel figurativo, na medida em que convocam precisamente uma memória, as coisas que acontecem ao “indígena”, as virtualidades inacabadas do seu passado e da aventura das suas relações com o mundo. Com efeito, o “indígena” não é inocente nas transacções que culminam na sua subjugação e dominação. A vários níveis e em diversos momentos, o “indígena” sabe servir-se da supremacia externa como um recurso utilizável no ajuste de contas domésticas e na arbitragem de conflitos que as tecnologias locais de regulação social já não conseguem dominar.