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Da aproximação entre Gadamer e Perelman: giro hermenêutico, razoabilidade e função social do Direito

3 DIREITO, HERMENÊUTICA E INTERPRETAÇÃO

3.1 Da aproximação entre Gadamer e Perelman: giro hermenêutico, razoabilidade e função social do Direito

Se é verdade que o pensamento de Sartre tantas vezes foi contrário ao marxismo, é verdade que o filósofo francês asseverava que no mundo sempre haveríamos de lembrar de Marx enquanto permanecesse a escassez. Ao parafrasear Sartre, podemos dizer que os pensadores sempre se valerão das teses existencialistas enquanto no mundo jurídico houver a redução do direito à lei.

De fato, é com a preocupação de que o direito atua intersubjetivamente, e no âmbito do ser e do tempo constituem a historicidade humana, é que as investigações do que move o humano, agora, exigem não apenas reconhecimento da razão teórica, e sim (e principalmente), da razão moral. Isto requer uma base argumentativa que prima pelo resgate da retórica e da tópica antigas, sobretudo na abordagem de uma hermenêutica constitucional.

Esta dupla via no campo epistemológico requer um outro direcionamento para a compreensão e feitura do direito. Este outro direcionamento é aquele que reclama pelo ser historicamente presente e tal ser se presentifica via argumentos – o campo do direito é então, indiscutivelmente, o campo do ser.

Neste sentido, ressalta Camargo (2001, p. 20-21): O direito, como as demais ciências do espírito, corresponde a um acontecer, que cabe ser interpretado segundo os valores que comandam a sua ação, tanto interna quanto externamente. Internamente será a própria ratio legis e, externamente, a inserção histórica do intérprete [...]

Compreender é indagar sobre as possibilidades do significado de um compreender próprio das relações humanas. E, nesse sentido, temos que o direito só existe enquanto

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compreende. Um código, por exemplo, contém regras gerais e abstratas constituídas em função de hipóteses prováveis, mas que só ganham um significado concreto quando remetidas á própria prática, ou melhor, quando conduzidas pela ação de quem as tenha elaborado como o legislador que prevê a realização de uma prática, seja a de quem produz a transferência da regra de um campo virtual dado, que é o código, para um campo de significado real – o juiz quando decide.

E Perelman (2002, p. 376) lembra-nos:

O direito, tal como funciona efetivamente, é essencialmente um problema de decisão: o legislador deve decidir sobre o que é o direito em cada situação submetida ao seu juízo. Mas nem o legislador nem o juiz tomam decisões puramente arbitrárias: a exposição dos motivos indica razões porque uma lei foi votada e, num sistema moderno, toda sentença deve ser motivada. O direito positivo tem como correlativo a noção de decisão, senão razoável, pelo menos raciocinada.

Afinal, como afirma Fernandez Atahaupa (2002, p. 20): (...) uma vez que o operador do direito é, antes de tudo e em sua tarefa institucional, responsável ante o meio social e frente ao que há de assegurar- se acerca da plausibilidade de suas soluções, deve procurar que suas

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valorações estejam em consonância com nossas instituições e emoções morais e valores historicamente aceitos e compartidos por uma determinada comunidade ética.

Essa maneira demasiada humana (porque humano é o direito) de tratar das coisas jurídicas acentua o papel da retórica ou da teoria da argumentação como um momento que se instaura o pensamento dialético.

O direito como instância da realidade exige que a compreensão da norma e a compreensão do fato se revistam do ser historicamente presente. Tal compreensão só é possível via argumentação posto que a esta compete o acordo capaz de formular a compreensão por meio de uma interpretação que sirva de fundamento à solução mais razoável.

Constatamos que, se a realidade jurídica for igual à realidade de sua compreensão, esta será igual à realidade de sua argumentação. Então, o direito exige para sua realização o método hermenêutico da compreensão e a técnica argumentativa.

Pensar na hermenêutica é pensar na filosofia construída por Heidegger e Gadamer, é pensar no valor do ser e na linguagem, é pensar na superação da ideia de ciência e de método construídos pela modernidade, é pensam ainda na crítica à universalidade da Razão iluminista.

Em obra intitulada “Filosofia Contemporânea”, o Professor Benedito Nunes (2004, p. 169-170) assevera: “[...] mais do que um procedimento analítico, mais do que uma crítica do método, a hermenêutica de Gadamer é, antes, uma investigação (Inquire, Untersuchen) acerca dos pressupostos e do exercício da interpretação em geral”.

Seguidor da filosofia de Heidegger, o referido professor acima citado acentua a íntima relação do ôntico com a compreensão por meio da linguagem, inaugurando uma racionalidade prática na qual se internaliza a argumentação retórica. Nisto reside a possibilidade de realização da “[...]

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permanente e aventurada tarefa de recuperar a inserção social e cultural de cada sistema, de suprir a abstração de realidades disfarçadas ou ocultadas em cada domínio do saber constituído” (NUNES, 2004, p. 169-170).

Para o campo jurídico, o existencialismo de Gadamer é fundamental, visto que o direito só se revela na sua existência

quando interpretado e aplicado. Ora, a interpretação correta

da lei já é uma concreção prática da ideia do direito, vez que as leis não apenas são volitivas, mas interpretadas e aplicadas sobre valores relativos a dadas situações específicas.

Nunes (2004, p. 169-170), ao comentar Gadamer, assim se manifesta:

[...] ao dispor sobre a versão hermenêutica das ciências sociais, em que a intenção das ações concorre apara a sua compreensão, traça as bases históricas da pré-compreensão, que orienta a interpretação. Em Gadamer, não encontramos métodos de interpretação, mas uma reflexão sobre o próprio interpretar o papel do intérprete, participante efetivo do processo do conhecimento. Segundo Gadamer, conhecemos as coisas conhecendo-nos a nós mesmos. O ser histórico e presente compartilha uma experiência com outros seres e objetos que compõem a realidade que os cerca, e, então, o ser que se projeta no seu acontecer como processo interpretativo. Assim, a partir da ideia de pré- compreensão concentrada na posição do sujeito, em determinado tempo (tradição) e lugar (horizonte), cai por terra toda pretensão de objetividade advinda do distanciamento e da

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neutralidade entre o sujeito e o objeto, conforme pretendia a modernidade Esta citação traz consigo a ideia de comunidade e dos acordos para soluções razoáveis que envolvam os sujeitos sociais. É que o conceito de compreensão remete à questão da intersubjetividade e aqui já estamos no campo prático, campo fértil da nova retórica, uma vez que compreender é entender ao outro, é acordo.

Tal compreensão hermenêutica de Gadamer, no âmbito da hermenêutica constitucional, aponta diretamente para o reconhecimento desta ciência que ao sistematizar regras e princípios destinados ao processo tem como finalidade extrair o sentido e o alcance das normas constitucionais. Daí tão relevante à ideia de Círculo hermenêutico em Gadamer, bem como a ideia de tradição. Na ideia de Círculo hermenêutico, no âmbito do direito constitucional, requer do intérprete da Constituição certa superação do próprio legislador constituinte (como professam os gregos: “o verdadeiro discípulo não é aquele que permanece no espírito do mestre, mas aquele que supera o próprio mestre”): enquanto a tarefa do legislador constituinte é produzir uma norma de elevada abstração, ao interprete cabe atribuir concretude ao preceito contido na norma e aqui relevante se torna o conceito de Tradição (tempo) e de Horizonte (lugar) no qual está imerso o intérprete.

É imprescindível deixar claro que o trabalho do intérprete não é gratuito, quer dizer, sem causa. Pelo contrário, esta atividade deve ser entendida como a necessidade de se aplicar a norma ao caso concreto. Entende-se como uma tarefa de concretização, na medida em que ela visa explicitar o sentido da norma, ou melhor, dizendo, apurar o conteúdo da norma. Ademais não há aplicação de uma Constituição sem interpretação. A sua aplicação não pode

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permanecer no mesmo vácuo de abstração que se coloca a norma a ser interpretada. É necessário que ela incida no caso concreto (NUNES, 2004, p. 169-170).

Não podemos olvidar que para os existencialistas – e Gadamer embriaga-se em tal fonte, sobretudo na obra Verdade e Método – é fundamental que se considere nas ciências o apreço e a retomada das coisas humanas. Nesse sentido, ele cumpre sua missão de dessacralização da ciência moderna, fazendo da ciência uma atividade existencial em que se encontra o homem, mediada pela linguagem (e pela interpretação – que da linguagem decorre). Em Gadamer, na esteira da fenomenologia de Heidegger.

Tanto em Gadamer como em Perelman, evidenciamos este corte epistemológico com a filosofia tradicional havendo mesmo uma ruptura com o pensamento linear evidenciando a dessacralização da razão. E isto é sobejamente fértil para o campo do direito e para a vida em sua totalidade vez que este novo olhar sobre as deliberações jurídicas evidencia a recusa da concepção metafísica do direito. E neste sentido:

[...] No âmbito da interpretação da lei, naquilo que tradicionalmente chamamos de hermenêutica jurídica, é preciso chamar a atenção (dos juristas) para o fato de que “nós não temos mais um significante primeiro, que se busca tanto em Aristóteles como na Idade Média, como ainda em Kant; significante primeiro que nos daria a garantia de que os conceitos em geral remetem a um único significado (BASTOS, 2002, p. 38-40).

Lembra-nos Eduardo Bittar (2002, p. 194) de uma constatação importante na teoria de Gadamer aquela que

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sustenta a concepção segundo a qual só há hermenêutica jurídica quando há um sistema jurídico vigente para todos os membros de uma comunidade, inclusive e, sobretudo, para aqueles que elaboram as leis e ditam as regras sociais. Neste sentido, remete-nos Bittar, se algo é vinculante e não-abolível, o único recurso racional à solução necessária para a decisão é o recurso à hermenêutica. Caso contrário, se um soberano dita a lei, não se aplicando a regra por ele criada sobre seu próprio comportamento, ele pode definir os sentidos da regra conforme sua vontade ou interesse determinarem em cada caso, não carecendo recorrer à interpretação para que a lei seja aplicada. Ora, se o soberano não se submete à lei, não há hermenêutica jurídica possível, pois as regras sempre serão redefinidas em seu sentido, conforme o que disser de novo o soberano.

Nesse sentido, destaca Bittar (2002, p. 195), a hermenêutica se constrói onde as regras são para todos. A ideia de igualdade jurídica é, portanto, essencial para que a hermenêutica surja como saber necessário para a construção não-arbitrária, ou não-parcial, ou não-aleatória, do sentido de um texto de lei. Vale dizer, onde há arbítrio não mora a hermenêutica. Onde há hermenêutica, procura-se exercitar a razão para que a determinação dos sentidos da lei não se dê de modo arbitrário.

Este rompimento com a:

[...] tirania dos profetas iluminados que procuram encerrar a contingência do pensamento na prisão das verdades necessárias e universais evidencia a falência daquela Razão (fechada em si mesma) que se exercita na sua plenitude iluminista, reinando soberana sobre o universo do significado e do significante, dominando o instituído e o instituinte. Agora, a proposta é sobejamente existencialista: o essencial é contingente e não necessário. (GRACIO, 1993, p. 193).

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Este novo giro copenicano, proporcionado por Gadamer no âmbito da hermenêutica, demonstra a ruptura com as concepções metafísicas cerceadoras da publicização da fala, da linguagem, da lei. E isto implica uma ruptura com toda uma tradição no campo jurídico, visto que se anuncia um novo paradigma, um novo olhar sobre a feitura e realização (permanente) do direito.

Desse modo, fazer hermenêutica jurídica é realizar um processo de compreensão do Direito. Fazer hermenêutica é desconfiar do mundo e de suas certezas, é olhar o direito de soslaio, rompendo-se com uma hermenêutica jurídica tradicional objetivante prisioneira do (idealista) paradigma epistemológico da filosofia da consciência. Com essa nova compreensão hermenêutica do direito, recupera-se o sentido- possível-de-um-determinado texto e não a reconstrução do texto advindo de um significante-primordial-fundante. Assim, por exemplo, não há um dispositivo constitucional que seja, em si e por si mesmo, de eficácia contida, de eficácia limitada ou de eficácia plena. A eficácia do texto do dispositivo advirá de um trabalho de adjudicação de sentido, que será feito pelo hermeneuta/intérprete, segundo Lênio Streck (2003, p. 226- 227).

Esta nova compreensão hermenêutica, no campo do direito, hermenêutica jurídica, reclama pela função social do direito que parece esquecida pelos operadores do direito. Daí a brilhante observação feita por Lênio Streck (2003, p. 220) acerca daqueles que impedem a manifestação do fazer social contido no jurídico:

Talvez por acreditar em sentidos a priori ou em verdades apofânicas, é que os aplicadores do direito, inseridos na já delineada crise de paradigma de dupla face, “consigam” (re) produzir decisões sem se darem conta das repercussões sociais e da própria função social dele – jurista - e do (des) cumprimento do texto

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da Constituição. Não se dão conta do devir histórico, da consciência exposta nos efeitos da história {...} e de sua situação hermenêutica, ou seja, não têm a compreensão prévia, a antecipação do sentido do que seja, por exemplo, a função social do Direito (e do estado).

Reclamar pela função social do direito é suscitar a ideia de compromisso. Os contornos de uma visão contemporânea do direito apontam para o compromisso social daqueles que o executam e, neste sentido, é que o intérprete é levado a pensar nas consequências de suas decisões. Para Sócrates isto equivaleria a implicação ético-social do cidadão com o parte do Estado; para Gadamer corresponderia a absorção pelo círculo hermenêutico e pela força da tradição; para nós, homens e mulheres, deste início de século cuja razão ética requer constantemente o enfrentamento com os resquícios do positivismo, tomamos como principal baliza teórica da hermenêutica constitucional aquele marco aristotélico que se recusa a pensar o Direito e o Estado sem a Ética concebendo que para cada homem importa; “viver uma vida boa; com e para os outros; em instituições justas”.

Que esses pensamentos nos acompanhem em nossa jornada como operadores do direito, como intérpretes do texto de lei e, assim, sejamos capazes de tomar o Barco de Ulisses para navegar, sem naufragar, revestidos pelo manto da justiça nas situações jurídicas que se apresentarem. Oxalá cheguemos à praia sãos e salvos.

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