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AS “VOZES DA RUA” VERSUS A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

VERSUS INDIVIDUAL: PROCESSO PENAL PARA QUEM? Murilo Darwich Castro de Souza

3 PROCESSO PENAL COMO INSTRUMENTO DE REALIZAÇÃO CONSTITUCIONAL E DE PROTEÇÃO DO

3.3 AS “VOZES DA RUA” VERSUS A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

Assim, por meio da manipulação do discurso do conflito de interesses e da proporcionalidade, vimos recentemente a presunção de inocência ceder sob a justificativa dos mais variados argumentos de cunho moral e utilitaristas.

A derrocada da presunção de inocência se iniciou com o julgamento do Habeas Corpus 126.292, na ocasião o Supremo Tribunal Federal, foi instado a analisar matéria já consolidada há tempos, mais precisamente em meados de

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2009, em que a mesma corte havia decidido pela impossibilidade em se cumprir provisoriamente a pena, considerando que apenas com o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, é que se poderia fazer cumprir a pena, uma prisão antes do trânsito em julgado, apenas se justificaria por força de alguma modalidade de prisão provisória (que correspondem por cerca de 40% dos encarcerados).

Em fevereiro de 2016, na ocasião do julgamento do Habeas Corpus 126.292, a nossa Suprema Corte, simplesmente mudou seu entendimento já consolidado, passando a admitir a execução provisória da pena, sem o trânsito em julgado, em desconformidade com texto constitucional expresso e do código de processo penal.

A mudança repentina de posicionamento jurisprudencial consolidado por um tribunal é chamada por Alexy de overruling, ocorre que, como já de praxe, o STF adota a teoria, no entanto, de modo “à brasileira”, de tal modo que, quando se trata de overruling, é imperioso que sejam enfrentados os argumentos da decisão anterior, demonstrando precisamente, o que mudou para justificar a mudança de jurisprudência.

Na segunda (overruling), o julgador admite que dados os elementos relevantes dos dois casos, o caso novo está no âmbito de incidência do caso- paradigma (aplicando-se, então, o stare decisis), mas, devido a alguma irregularidade ou equívoco flagrante na decisão do precedente, se recusa a aplica-lo para decidir o caso atual. (COELHO, 2015, p. 88).

Posteriormente ao HC, duas ações diretas de constitucionalidade foram impetradas, uma delas pela Ordem dos Advogados do Brasil, o objetivo da ADC era forçar o Supremo Tribunal Federal a enfrentar o mérito da questão, pedia-se na ADC que fosse declara a constitucionalidade do Art. 283 do CPP, a fim de trazer segurança jurídica, visto que,

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após o julgamento do HC 126.292, muitos tribunais passaram a recolher pessoas presas, com a decisão de segunda instância, por outro lado, outros tribunais assim não procediam, determinando a liberdade baseados na jurisprudência anterior. Ao final, por maioria, o Supremo confirmou seu novo posicionamento, determinando que o art. 283 fosse declarado constitucional, no entanto, deveria ser dada a ele uma interpretação conforme a Constituição, permitindo a execução provisória da pena com condenação em segunda instância. Ocorre que o artigo 283 do Código Penal é o espelho exato do Art. 5º, LVII e LXI da Constituição Federal, basta ir lá olhar, comparar os três dispositivos.

Passaremos, então, a analisar algumas das decisões dos Ministros acerca do princípio da presunção de inocência e verificaremos como foi utilizada a ponderação de interesses, de um lado o interesse privado (do réu), de outro o interesse público (que recebe uma gama de nomes como, “sociedade, “voz das ruas”).

O Ministro Barroso seguiu uma linha de decisão baseada em argumentos de cunho utilitarista com pitadas de ponderação, a fim de destacar uma situação que, em sua visão particular, gerava injustiças.

Seguindo a divergência, o ministro defendeu a legitimidade da execução provisória após decisão de segundo grau e antes do trânsito em julgado para garantir a efetividade do direito penal e dos bens jurídicos por ele tutelados. No seu entendimento, a presunção de inocência é princípio, e não regra, e pode, nessa condição, ser ponderada com outros princípios e valores constitucionais que têm a mesma estatura. “A Constituição Federal abriga valores contrapostos, que entram em tensão, como o direito à liberdade e a pretensão punitiva do estado”, afirmou.

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“A presunção da inocência é ponderada e ponderável em outros valores, como a efetividade do sistema penal, instrumento que protege a vida das pessoas para que não sejam mortas, a integridade das pessoas para que não sejam agredidas, seu patrimônio para que não sejam roubadas”. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, ADC 44). Na visão do Ministro, a presunção de inocência, garantia fundamental, expressamente prevista da Constituição, poderia ser ponderada com a pretensão punitiva do estado, ocorre que a ponderação prevista na teoria de Robert Alexy faz parte de uma teoria argumentativa extremamente complexa e afinada, com uma série de critérios a ser respeitados. Barroso simplesmente pondera a garantia constitucional com um dito “valor de efetividade do sistema penal” e afirma que a presunção deve perder, sem apresentar, exatamente o porquê desse resultado.

Ademais, a própria teoria de Alexy enxerga com ressalvas a utilização de valores tidos como universais em uma sociedade, visto a grande capacidade de manipulação desses valores, podendo ocasionar em decisões movidas a paixões ou populismos momentâneos.

Alexy fornece uma lista de modos habituais de justificar juízos de valor e mostra por que cada um deles, embora carregando alguma plausibilidade, é insatisfatório. Habitualmente, justificam- se juízos de valor com base em quatro fontes diferentes: a) Convicções e consensos faticamente existentes, alegando que os valores empregados correspondem aos valores da sociedade como um todo ou de um grupo determinado dentro dela. Embora

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certo grau de correspondência dos juízos de valor dos julgadores aos valores sociais reais seja desejável, esta alternativa, além de levantar problemas de cognição e de precedência, expõe-se ao risco de acolher valorações irrefletidas e preconceituosas. (COELHO apud

ALEXY, 2015, p. 52).

Nessa esteira, segundo o site oficial do STF, Barroso salienta que:

O entendimento anterior do STF sobre a matéria não era garantista, “mas grosseiramente injusto”, e produziu consequências “extremamente negativas e constatáveis a olho nu”. Entre elas, incentivou à interposição sucessiva de recursos para postergar o trânsito em julgado, acentuou a seletividade do sistema penal e agravou o descrédito da sociedade em relação ao sistema de justiça – o que, a seu ver, contribui para aumentar a criminalidade. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, ADC 44).

Portanto, notadamente o Ministro pondera uma garantia fundamental do réu, em não ser considerado culpado e, desta forma, preso, enquanto não houver o trânsito em julgado da ação penal com o sentimento de descrédito da sociedade, configurados em um interesse que seria público ou da coletividade.

Dando continuidade, o Ministro Teori Zavascki acompanhou a divergência. Entendo que o artigo 283 do CPP não obsta a execução provisória da pena. Teori apresentou como justificativa de sua decisão o seguinte:

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A dignidade defensiva dos acusados deve ser calibrada, em termos de processo, a partir das expectativas mínimas de justiça depositadas no sistema criminal do país”, (...). Se de um lado a presunção da inocência e as demais garantias devem proporcionar meios para que o acusado possa exercer seu direito de defesa, de outro elas não podem esvaziar o sentido público de justiça. O processo penal deve ser minimamente capaz de garantir a sua finalidade última de pacificação social. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, ADC. 44).

Percebe-se uma decisão baseada em argumentos utilitaristas, direitos e garantias fundamentais podem ser facilmente suprimidos, sem nenhuma rigidez técnica ou argumentativa, basta valer-se do uso da ponderação de valores ou interesses.

O uso da ponderação, como um verdadeiro princípio, decorre de um fenômeno muito peculiar à realidade brasileira, que venho denominando pan- princiopiologismo. Em linhas gerais, o pan-principiologismo é um subproduto do constitucionalismo contemporâneo que acaba por minar as efetivas conquistas que formaram o caldo de cultura que possibilitou a consagração da Constituição brasileira de 1988. Esse pan-principiologismo faz com que – a pretexto de se estar aplicando princípios constitucionais – haja uma proliferação descontrolada de enunciados para resolver determinados problemas

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concretos, muitas vezes ao alvedrio da própria legalidade constitucional. (TRINDADE apud STRECK, 2012, p. 118).

Em continuidade, o Luiz Fux, acompanhando a divergência, votou pelo sepultamento da presunção de inocência, utilizando, dentre suas razões de decidir, o seguinte. Segundo seu entendimento, o constituinte não teve intenção de impedir a prisão após a condenação em segundo grau na redação do inciso LVII do artigo 5º da Constituição. “Se o quisesse, o teria feito no inciso LXI, que trata das hipóteses de prisão”, afirmou. O ministro ressaltou ainda a necessidade de se dar efetividade à Justiça. “Estamos tão preocupados com o direito fundamental do acusado que nos esquecemos do direito fundamental da sociedade, que tem a prerrogativa de ver aplicada sua ordem penal”. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, ADC 44).

Correndo o risco de ser repetitivo, saliento mais uma vez para o fato de ser apresentada como razões de decidir, em um caso tão complexo, argumentos utilitaristas, sem maiores desenvolvimentos. Vale chamar a atenção para o fato de o Ministro utilizar uma espécie de fórmula, direito individual (do acusado) contra um interesse que seria público (da sociedade), ademais, consideramos tal visão extremamente errônea, preliminarmente, porque a manutenção de uma garantia constitucional em um processo penal não é algo atinente ao direito, unicamente, individual, visto que a manutenção de garantias fundamentais pertence, seguramente, a um interesse público. Portanto, não se trata de ponderação entre interesses

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individuais contra públicos, e sim de dois interesses que seriam públicos.

Caminhando para o final, cito as razões da Presidente do STF, Ministra Cármen Lúcia, que, igualmente, decidiu pela derrocada da presunção de inocência, apresentou como razões, entre outras, as seguintes:

Se de um lado há a presunção de inocência, do outro há a necessidade de preservação do sistema e de sua confiabilidade, que é a base das instituições democráticas. “A comunidade quer uma resposta, e quer obtê-la com uma duração razoável do processo”. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, ADC 44).

Novamente, impera argumentos de cunho moral e utilitaristas, capazes de sacrificar Direitos e Garantias Fundamentais e prol de um questionável interesse público.

Uma liberdade básica pode ser limitada ou negada apenas em favor de uma ou mais liberdade básicas diferentes e nunca por razões de bem público ou valores perfeccionistas. É precisamente por isso que os direitos e liberdades básicas possuem, para Rawls, um caráter inalienável. (CITTADINO, 2000. p.149)

Nesses termos, os votos vencedores foram os que consideraram que a presunção de inocência, nos termos expressamente positivados na Constituição Federal, deveria ceder perante os mais variados argumentos, no entanto, todos muito parecidos, conclamando as “vozes das ruas”, a ponderação baseada em critérios de proporcionalidade, etc. Ao final, é evidente a imensa carga moral presente nos argumentos, bem como a falta de uma teoria da decisão.

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A opinião pública, muita vezes manipulada, acaba por constranger as instituições para que legislem ou julguem de certo modo, quem não se encaixa nesses clamores corre grande risco de perseguição, então foi assim que o Supremo Tribunal Federal cedeu a esses clamores e sepultou um caro princípio constitucional.

3.4 A MANIPULAÇÃO DO CONFLITO DE INTERESSES E AS