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3. POLÍTICA DE INOVAÇÃO TECNOLÓGICA COMO POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

3.3. Aproximação Teórica da Relação entre Política de Inovação e Política de C&T

Os autores schumpeterianos ampliaram significativamente as fronteiras da teoria do desenvolvimento de Schumpeter, bem como exploraram em profundidade muitas partes do ―território expandido‖, por assim dizer. Sem pretensão de exaustividade, cabe destacar os seguintes temas:

- a relação com a teoria do crescimento, sobretudo a de extração neoclássica; - a investigação das causas internas às firmas das diferenças de seu

crescimento intra-setor, mais ou menos vinculadas aos seus respectivos desempenhos tecnológicos45;

- a ―ontologia‖ evolucionária e suas decorrências, por assim dizer, epistemológicas, inclusive buscando formas alternativas de modelagem dos mecanismos de seleção e mudança, e dos efeitos da diversidade e da heterogeneidade sobre aqueles;

- a relação entre ciência, tecnologia e inovação;

- investigações microeconômicas em geral, em particular no que se refere às consequências da rejeição da função de produção (inclusive como tipo ideal),

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Os schumpeterianos penrosianos levantaram causas para o crescimento e/ou a lucratividade diferencial das empresas; tal pauta é coerente com o conceito de Schumpeter de inovação, que não está relacionado com capacidade e esforço tecnológico,

de racionalidade substantiva (como oposta à ―procedural‖), a crítica ao modelo estrutura-conduta-desempenho, sobretudo quanto ao papel derivado da conduta e, consoante a isso, a busca de uma aproximação com os estudos de administração de empresas e sobre os determinantes da competitividade empresarial, e

- a tentativa de formular bases teóricas para políticas ―de inovação‖ bem sucedidas.

O conceito de NSI nasce fundamentalmente dos estudos voltados para o último tema (com o qual não se confunde, em que pese as evidentes afinidades), embora, pela amplitude que acabou adquirindo, tenha se nutrido de avanços em todos os demais. Sua adequada delimitação depende de prover-lhe pés solidamente plantados no debate teórico, firmando-os no núcleo da compreensão schumpeteriana da dinâmica capitalista, de um lado, e, de outro, separando com maior clareza o fundamental do acessório na relação com outros itens da agenda dessa Escola. Não obstante, os conceitos de NSI e de política de inovação possuem indelével gene normativo, sendo mais bem considerados como, originalmente, uma tentativa de distinguir-se da percepção de ―política científica e tecnológica‖ em sentido estrito. Em particular, suas acepções nascem em oposição ao chamado ―modelo linear‖ de política científica e tecnológica, hegemônico até, pelo menos, os anos 1960.

Na verdade, desde seu surgimento os Estados nacionais praticam ações em prol do desenvolvimento científico e tecnológico. Portugal, por exemplo, fez do domínio de instrumentos de navegação uma questão nacional tão logo o pequeno e periférico reino se formou, dedicando esforços extraordinários relativamente à sua dimensão econômica, para se emparelhar ao estado da arte vigente na Europa e, eventualmente, superá-lo em alguns aspectos, notavelmente nos que eram decisivos para vencer trajetos de longo curso, o que envolveu além de tecnologia em sentido mais estrito, maestria em astronomia e em oceanografia. Já a França pós- revolucionária premiava inventos em áreas de interesse nacional, como engenharia militar. Nesse sentido,Penrose46 sugere que o nascimento da propriedade intelectual resultou da associação, anterior ao surgimento do capitalismo como o conhecemos,

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entre os interesses do Estado e o avanço da tecnologia, mais nitidamente até que da ciência.

O Brasil nos tempos de D. Pedro II desenvolvia estudos em parasitologia e em geologia, ambos com forte apoio do conhecimento científico absorvido da Europa. Os Estados Unidos, no início do século XX, dispunham de uma respeitável tradição em estudos agronômicos, os quais incluíam do diagnóstico de pragas à criação de técnicas de correção de acidez47. A geologia, a astronomia, a botânica, a medicina, a farmacologia, as engenharias militar e de infraestrutura, a oceanografia, a geografia, entre outras disciplinas científicas ou paracientíficas, tiveram seu desenvolvimento sustentado, e não raro claramente determinado, pelo apoio governamental. Obviamente, está correto dizer que se pode classificar as medidas em que se plasmou esse apoio – subvenções, construção de laboratórios, pagamento de bolsas e outras remunerações, bem como custos diretos e indiretos das pesquisas, edição de regulamentos, concessão de prêmios ou de direitos de propriedade e de uso especiais aos inventores – de política de ciência e tecnologia.

Mais: está claramente correto afirmar que essa ação foi eventualmente crucial – tome-se o caso do Estado português do século XV – para o desenvolvimento econômico nacional. Isso é tanto mais verdade se se permitem passos lógicos intermediários. Por exemplo: estudos de botânica e zoologia são importantes para a constituição de farmacopéias extensas e confiáveis, as quais, por seu turno, são fundamentais para o desenvolvimento da farmácia e da química e, estas, para o da medicina e para a constituição de um bom sistema público de saúde. Dispor de bons índices de saúde, finalmente, é favorável ao desenvolvimento econômico. Certamente a relação entre botânica e desenvolvimento econômico é mais difusa e mediada que a relação entre engenharia naval e desenvolvimento econômico para Portugal ingressante no mercantilismo. Mas nem por isso é pouco relevante. Com efeito, é tarefa árdua tentar listar casos de ações de política de C&T que não contribuam para o desenvolvimento econômico.

De fato, ações de C&T em sentido amplo, incluídas as de educação formal, mesmo as que não implicam maestria técnica e conhecimentos práticos em geral,

são ações de potencial impacto no desenvolvimento econômico, inclusive no sentido estrito do crescimento econômico – ainda que não seja fácil aferir esse impacto, porque, conforme visto, é difuso, e possivelmente implica um lapso de tempo difícil de delimitar, quase sempre muito longo (freqüentemente maior que um mandato de governo). Em uma sentença direta: ações de criação e difusão de conhecimento científico e paracientífico têm impactos significativos sobre o crescimento econômico, mesmo que diferenciados em grau e em tempo de resposta48.

Sem embargo, o fato de se ter aí mudança tecnológica de um lado e crescimento econômico de outro, não implica em schumpeterianismo. A promoção dessas atividades é estranha ao arcabouço teórico criado por Schumpeter, fundado sobre a concorrência empresarial. Classificá-las desde seu enfoque acarretaria chamá-las ―políticas de invenção‖, talvez, mas certamente não ―políticas de inovação‖49

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Há apenas 50 anos atrás, debalde se procuraria que algum governo anunciasse qualquer dessas medidas como parte de uma ―política de inovação‖. Não há notícias de que Schumpeter e mesmo seus discípulos menos aversos ao ativismo estatal, como Labini, tenham clamado por políticas de inovação cujo cerne fosse aumentar ou direcionar a oferta de conhecimento científico. Apenas muito recentemente é que ações voltadas para a C&T passaram a ser parte decisiva do que se convencionou chamar ―políticas de inovação‖. Isso gerou três tipos de confusão.

Em primeiro lugar, leituras rasteiras de Schumpeter levaram a considerarem- no um economista da tecnologia ou um arauto do ativismo científico. Já se mostrou aqui reiteradamente que esse autor é sem dúvida um economista da inovação, no entanto, apenas casualmente inovações são invenções. Não há elementos que sugiram a latência desse ponto em Schumpeter, de forma que mesmo economistas da tecnologia como Rosenberg censuram-no por não perceber como invenções

48 Esse ponto é bastante sublinhado por List, 1983, e por William Petty, possivelmente o mais importante precursor da TDE. 49 CHIANG (1990) e KOELLER (2009) destacam a notável dicotomia entre políticas tecnológicas ―mission-oriented‖ e ―diffusion

oriented‖ devida a Ergas (1986). Uma forma de ilustrar melhor a questão que se busca elucidar é afirmar que, ainda que políticas do primeiro tipo possar estimular inovações, apenas as do segundo tipo poderiam ser, ao menos desde uma perspectiva schumpeteriana, chamadas de políticas de inovação.

causam inovações, mas nunca por ter deixado de dar centralidade a esse aspecto que estaria subentendido em sua obra.

Em segundo lugar, como há evidências de que promover C&T aumenta o crescimento, passou-se a pensar que a política de C&T era a própria política de inovação, de forma que o ―i‖ acrescido ao final da expressão ―C,T&I‖ é, na verdade, um aperfeiçoamento semântico. A essa inclusão não se segue nenhuma reflexão mais aprofundada sobre a relação entre o sistema empresarial e as atividades de C&T da sociedade em geral, senão da percepção de que as empresas são também relevantes criadoras de tecnologia e são capazes de afetar a criação de ciência.O fato essencial de que esse papel, quando efetivamente existe, é na realidade uma decorrência da busca de lucros monetários, é fundamentalmente um detalhe incômodo. O que efetivamente subjaz à expansão da CT&I é o reconhecimento de que a força que propele as sociedades modernas para níveis de crescente bem-estar material não é o capitalismo, mas o avanço do conhecimento. A inovação empresarial seria um fator secundário não fosse o bom senso de alguns capitalistas de tomar parte nesse empreendimento secular, cuja iniciativa deve ser creditada antes aos cientistas, aos inventores e aos burocratas sensatos.

Em terceiro lugar, em decorrência da anterior e diante do fato de historicamente o Estado ter participado decisivamente do desenvolvimento da C&T, entende-se que cabe a ele, ou ao menos que ele pode ser se assim decidir, o elemento determinante para a obtenção de performance quanto à inovação. Tudo se passa como se por extensão da lógica da relação segundo a qual o Estado ―causa‖ o desenvolvimento econômico por intermédio do fomento do progresso da C&T, então o fato de que a inovação, significando que as empresas passam a também se interessar por esse progresso, só poderia ao fim e ao cabo acelerar a expansão econômica. Coincidentemente, o movimento do pensamento econômico convencional, ao passar da noção de que a causa última do crescimento é o ―progresso técnico‖, fundamentalmente exógeno, para a de que a causa última do crescimento é o progresso técnico em que as empresas têm uma função definitiva, chancelou essas sentenças ao lhes dar uma aparente cientificidade, de resto reforçada por uma enxurrada de guidelines de grandes agências e think tanks

internacionais. A dificuldade em fugir desse tipo de raciocínio é que há grãos de verdade espalhados por cadeias causais frouxas.

Um problema fundamental que permeia toda esse arcabouço, abordado anteriormente, é que, apesar de ser correto atribuir ao setor público protagonismo como indutor do avanço da ciência e da tecnologia, o mesmo se defronta com limites bastante estreitos para alterar as decisões privadas dos empresários no sentido de se utilizarem desse avanço como arma concorrencial, salvo quando é aceitável assumir-se que há uma prévia demanda insatisfeita, ao menos potencialmente. Vale dizer: o cerne da efetividade do ―empurrão‖ (push) científico-tecnológico estatal é a presença de alguns parâmetros singulares no cálculo capitalista, os quais ―lêem‖ como potencial insumo a oferta de C&T.

Se bem seja correto afirmar que a inovação é um resultado mais ou menos natural do desenvolvimento do capitalismo e da complexificação da concorrência, não há nada que intrinsicamente direcione a inovação para o uso de ciência no capitalismo enquanto tal. Assim, a predominância da inovação baseada em ciência em relação às demais formas de inovação e de diferenciação competitiva revela-se um fato curioso e resistente a diagnósticos simplistas: a inovação baseada em ciência só se consolida por força da ação do Estado e tem nos aparatos de C&T um elemento fundamental. Além do mais, para que o acoplamento entre inovação e C&T funcione, não basta criar um conjunto institucional que ligue esses dois ―mundos‖. Ações corretivas e alterações, às vezes política e financeiramente dispendiosas, são requeridas. Não obstante, é equivocado crer que esse esforço altere a inovação empresarial baseada em ciência sem que já exista uma demanda, ao menos potencial, ou que seja possível alterar significativamente essa demanda, por parte das firmas por conta da nova oferta gerada.

Embora o conceito de NSI ajude a desfazer esses mal-entendidos, a concepção comum entre policy makers, e não rara entre especialistas acadêmicos, de que sistemas de inovação são fundamentalmente o conjunto de órgãos que planejam e executam a política de C,T&I resistiu à assimilação da máxima – em si, correta – de que políticas de inovação são, portanto, políticas de construção e de consolidação de NSIs.

Cabe, assim, determo-nos um pouco mais na definição de NSI.