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3. POLÍTICA DE INOVAÇÃO TECNOLÓGICA COMO POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

3.5. Estado e Não Estado nos Sistemas de Inovação

3.5.2. A ontologia institucional dos NSIs

É comum, mais implícita que explicitamente, a percepção de que o papel fundamental do Estado em um NSI é de ―construção institucional‖, ou algo semelhante. Essa percepção é um corolário da assertiva de que há que se estabelecer ―elos‖ entre universidades e empresas, algo que dificilmente aconteceria, ao menos na medida desejável, de forma espontânea. Está, sem dúvida, correta. Não obstante, é insuficiente para que se avance rumo a uma compreensão adequada do papel do Estado na promoção da inovação tecnológica.

Um primeiro motivo para isso é que o conceito de instituições é extremamente elástico58. Em North, por exemplo, instituições são ―modelos mentais

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compartilhados‖. Em Hodgson, são mecanismos de focalização do comportamento, frequentemente de conteúdo simbólico e, mais freqüentemente ainda, internos aos indivíduos (e às firmas, com certeza). Já Nelson propôs sua própria concepção de instituições como ―tecnologias sociais‖. Outros autores, entre eles o próprio North, definem-nas simplesmente como ―regras do jogo‖, enquanto os economistas ortodoxos via de regra adotam, consciente ou inconscientemente, ade ―restrições ao comportamento natural‖ (o mesmo entendido como comportamento racional- maximizador). Com exceção destas últimas, as acepções mencionadas encaram as instituições como elementos de uma ordem espontânea, ou ao menos consentida, os quais possuem uma ontologia análoga à do mercado. A capacidade de o Estado alterá-las, pode-se inferir, não é nula, mas certamente é limitada.

A concepção de NSIs como arcabouços institucionais (cujo demiurgo é amiúde o Estado) traz subjacente as duas últimas definições de instituições, na medida em que, segundo ela, a ação do Estado no NSI seria a de, em primeiro lugar, criar ―espaços de interação‖ entre entes movidos por lógicas distintas. Entretanto, não se atribui a essa lógica uma intrínseca racionalidade maximizadora. De forma mais ou menos análoga aos blocos de investimentos na teoria do big push de Rosenstein-Rodan, as universidades fazem o que lhes é melhor dentro de seu escopo, o mesmo valendo para as empresas. Sem embargo, intervenções externas que as integrem propiciar-lhes-iam um horizonte de ―cálculo‖ muito mais amplo e promissor, na medida em que facultaria perceberem ganhos sinérgicos em uma associação. Haveria, assim, certa miopia na lógica que empresas e universidades tendem seguir, miopia cuja superação apenas excepcionalmente aconteceria sem um direcionamento consciente e planejado externo.

É evidente que dado o "big push", inúmeros aperfeiçoamentos marginais seriam recomendáveis, quando não por outro motivo porque os elementos do arcabouço assim constituído tendem a evoluir e a mudar. Contudo, dado o momento estruturante inicial, o papel que se seguiria ao Estado seria passivo e regulatório, e apenas excepcionalmente estruturante e discricionário. Tal papel é coerente com a percepção de que esse ―desencontro‖ entre universidades e empresas é superficial. Haveria uma unidade latente entre os mundos da ciência e da produção capitalista,

os quais compartilham um chão comum: o conhecimento. As universidades criam conhecimento em grande medida utilizado nas empresas, que são diferentes entre si, lucram e crescem mais ou menos pelo estoque de conhecimento que dominam. Portanto, apesar da aparência de ―choque‖ inicial, a rigor a atuação do Estado nessa primeira concepção é semelhante a de um redutor de falhas de mercado, em particular dos custos de transação envolvidos no intercâmbio empresas versus universidades. Não é demasiado destacar que há indícios de que, apesar de certamente esse intercâmbio não ter dispensado alguma atitude estatal, historicamente ele ser anterior a qualquer conjunto articulado de medidas que possa ser chamado de política de CT&I, como destacado por ZUCOLOTTO (2009).

Finalmente, o pressuposto da existência de um chão comum entre ciência e empresa,característica dessa definição de instituições, reforça a acurácia da expressão ―Sistema Nacional de Inovação‖: trata-se, efetivamente, de um sistema, no qual um agente exógeno se justifica apenas para, usando-se de uma metáfora mecânica, lubrificar as engrenagens que o compõe. 59

Sem embargo, se as instituições são tomadas sob a noção, particularmente elástica, de "regras do jogo", pode-se sem muita dificuldade deduzir um potencial papel da para a ação do Estado. A criação de regras do jogo traz, de um lado, implícita a percepção de que não há nada de eminentemente natural na relação entre empresas e universidades; de outro, que um amplo leque de intervenções estatais é plausível e capaz de gerar resultados impossíveis de serem alcançados se deixados a sua sorte esses atores.

Dois motivos podem ser apontados para que a relação entre empresas e universidades seja mais problemática do que se costuma supor. Primeiro, porque a natureza do conhecimento típico das empresas – tácito, fundado em habilidades dificilmente transferíveis e/ou em recursos específicos a cada empresa individualmente, aos quais não raro aquelas habilidades estão relacionadas umbilicalmente – é muitas vezes estranho a do conhecimento científico. Segundo, porque a existência de comunicabilidade entre ciência e produção empresarial é assimétrica setorialmente. Ou seja, em alguns ramos da atividade industrial

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conformou-se, de fato, um acoplamento entre ciência e produção. Na verdade, como se verá a seguir, a incomunicabilidade entre o conhecimento tecnológico-produtivo e o conhecimento científico não precisa ser total para que a hipótese da naturalidade da aproximação entre os dois mundos seja rejeitada. Por exemplo, se o acúmulo de conhecimento tácito depende de processos longos, e se esse acúmulo é condição indispensável para criar capacidade absortiva de conhecimento externo, então a naturalidade do elo empresa-universidade obedece a lógicas distintas não apenas inter, mas também intra-setorialmente.

Dessa perspectiva, não apenas um big push é necessário. Como as lógicas da ciência e da produção capitalista são distintas e apenas eventualmente se interpenetram, a ação estatal estruturante é necessária, inclusive, para conformar essa interação profunda (cuja indicação é criação de pautas de ―problemas comuns‖, configurando ―paradigmas‖ intermediários entre ciência e indústria, como descrito, mutatis mutandis, por Dosi60).

Na medida em que essa interação se estabelece, a ação estatal pode se tornar menos propositiva e mais ―facilitadora‖, na medida em que mecanismos autônomos, espontâneos, firmam-se. O Estado pode e provavelmente deve, nessas situações, agir apenas para sustentar espaços institucionais próprios, de quase- mercado, para que os elos que se formam ajam e se reproduzam. Vale dizer, nesse caso sua função seria reduzir os custos de transação – compatível com a definição de instituições como ―restrições‖, portanto.

Nisto não há nenhuma contradição: se as instituições são ―regras do jogo‖, essas regras podem simplesmente ser aquelas que lhes permitem fluir de forma mais natural possível, reduzindo atritos e imperfeições. Com efeito, um demérito, por assim dizer, de se conceber instituições como ―regras do jogo‖ é precisamente sua generalidade, a qual implica ―conter‖ as demais definições, mas ao mesmo tempo, perder parte de seu poder explicativo.

Cabe indagar: até que ponto instituições desse tipo seriam compatíveis com a noção de sistema?

Conforme visto, instituições-regras do jogo são teoricamente compatíveis com instituições-restrições. Também servem para incorporar casos práticos concretos, como o de setores industriais, ou grupamentos de setores industriais, cujo desenvolvimento tecnológico se acopla a um campo de conhecimento científico.

Quando situações desse tipo se formam, temos ―quase-mercados‖: o intercâmbio entre cientistas e engenheiros de chão de fábrica se torna rotineiro; o conhecimento aplicado para aprimorar ou inovar produtos e processos flui do centro de pesquisa para a fábrica e as questões das quais o centro de pesquisa se ocupa são em grande medida advindas de problemas técnicos fabris; finalmente, os empresários contratam pesquisadores bem sucedidos e estabelecem fartos contratos com centros universitários, concomitantemente a sociedade se vê recompensada pois os recursos com que subsidia atividades científicas ajudam a florescer empresas cuja competitividade fornece solidez e dinamismo (e, assim, bons empregos) à economia nacional. Um círculo virtuoso, em mais de um aspecto, conforma-se, demandando ações cirúrgicas, corretivas, de caráter horizontal, por parte do setor público.

No entanto, essa situação só existe sob algumas condições. Não há interesse aqui em enumerá-las exaustivamente. Mas duas condições são relevantes para se avançar a análise.

Primeiro, é inverossímil que os padrões concorrenciais respectivos a cada segmento produtivo se encontrem na referida situação ou estejam prestes a nela ingressar. É provável que as empresas líderes de muitos setores empreguem hoje, diretamente, mais conhecimento científico do que há algumas décadas. Mas, como mostrado no capítulo 1, essas aplicações são mais aperfeiçoamentos marginais, são acessórias em relação a outras habilidades relevantes para controlar elevados níveis de adição de valor, mesmo em mercados em que a capacidade tecnológica é um ativo importante.O entrelaçamento de pautas de problemas científicos com problemas de concorrência empresarial, mediados por questões produtivo- tecnológicas, é por assim dizer "natural" apenas em um punhado de atividades econômicas.

Segundo, ainda que as empresas líderes mundiais de muitos setores busquem suporte em conhecimento externo, frequentemente de natureza científica ou para-científica, apenas um punhado de países sedia muitas empresas desse tipo; ademais, mesmo quando assim ocorre, suas empresas de alta competitividade tecnológica se estendem por um leque limitado de setores. Esse fato pode ser mitigado ou amplificado pela presneça de forte heterogeneidade estrutural intra- setor, ou seja, pela prevalência de níveis muito diferentes de patamar competitivo e de produtividade entre empresas de uma mesma indústria.

Na ausência de empresas líderes de porte mundial ou na sua concentração em setores cuja produção é de baixa intensidade científica ou na presença de heterogeneidade estrutural, mesmo diante de um big push inicial da política de CT&I, o quadro descrito, de elevado, freqüente e espontâneo intercâmbio entre o mundo da ciência e o mundo empresarial não se estabelecerá. Vale dizer, em países que se aproximam dessa segunda descrição, é inadequado falar de sistema nacional de inovação, simplesmente por se tratar de um conceito sem significado concreto.61