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Dando continuidade as teorizações sobre as obras de Walter Benjamin e Michel Foucault, agora apresentamos aproximações entre elas, tendo como referência a dificuldade dessa ação, uma vez que são pensadores herdeiros de tradições um tanto quanto distintas (HADDOCK-LOBO, 2004). Esta aproximação terá como objetivo localizar os conceitos de discurso e narrativa, não como sinônimos, mas diferentes que podem coexistir na proposta metodológica que esta sendo construída.

Partirmos da ideia que ambos pensa‟dores compartilham de que a modernidade é caracterizada pelo apagamento dos sujeitos da experiência e dos saberes locais, que devem ser subjugados aos conhecimentos científicos. Esta concepção se estende às criticas que eles produzem em direção ao historicismo, como modo de preservação de uma historia oficial com origens e essências bem definidas, que excluem a participação dos saberes locais em sua constituição (RAMOS, 2012). Ao produzirem suas teorizações (de maneiras bem distintas), eles buscam assumir posturas que retomam essa crítica, valorizando outras perspectivas na constituição histórica (HADDOCK-LOBO, 2004).

Tanto Benjamin quanto Foucault irão romper com a prática de uma historiografia vigente, fazendo da história o local de rupturas e descontinuidades, em que se poderia vislumbrar a emergência daquilo que outrora fora mascarado como o “outro” da sociedade (FURTADO, 2012, p. 345-346).

Assim, ambos desenvolvem uma noção de história permeada por rupturas e insurgências, como um espaço de acontecimentos que não seguem uma orientação linear e que são capazes de produzir permanências (FURTADO, 2012). “A genealogia quer „marcar a singularidade dos acontecimentos, longe de toda a finalidade monótona‟. Para Benjamin, o historiador deve ser „suficientemente viril para fazer saltar pelos ares o continuum da história‟” (MURICY, 1995, p. 42).

Para este potencial ser atingido, Foucault ressalta que as vozes dos que não são privilegiados na ordem do discurso precisaria ser ouvida, podendo transformar as versões apresentadas pela historiografia oficial (REIS FILHO, 2011). A articulação da “história vista de baixo”, a partir de narrativas esquecidas e fragmentadas pode assim potencializar o conhecimento da história na perspectiva foucaultiana (VEIGA-NETO, 2014).

Esta posição não é igual a de Benjamin, que busca nas narrativas da experiência singular e coletiva uma potencialidade de romper com o silenciamento dos dominados, porém estabelece contato através da assunção de que a construção da história passa pela aproximação dos saberes locais. Como discute Ramos (2012), sobre a genealogia:

Levando em consideração essa dinâmica, cabe à pesquisa genealógica estar atenta e ir em busca desses saberes desqualificados, esquecidos e fazê-los emergir. Dessa forma, cabe também à pesquisa genealógica ouvir as experiências, as memórias e os saberes das pessoas, saberes esses que, embora locais e singulares, são prenhes de outras histórias que possibilitam a problematização e ressignificação da história considerada verdadeira. (RAMOS, 2012, p. 55)

Tal defesa se torna consistente ao ser levada em proximidade a outra ideia que atravessa a produção de ambos estudiosos, a noção de verdade. Benjamin denuncia a posição que o Historicismo apresenta de defender a unicidade de uma verdade, que pode ser encontrada objetivamente pelo ato historiográfico (REIS FILHO, 2011). Já para Foucault, a sociedade produz discursivamente jogos de verdade, o que torna impossível manter a filiação a uma noção de verdade única. Para ambos a verdade se torna assim uma construção histórica, ou mais precisamente um regime de verdade (RAMOS, 2012, OLIVEIRA, 20l4). Vemos nas obras de ambos os autores a defesa de uma história pautada na noção de regimes de verdade como “[...] construções históricas, resultados de lutas e relações de poder” (PETRUCCI-ROSA, RAMOS, 2015, p. 305).

A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos reguladores de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona

uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro (FOUCAULT, 1993, p.12).

A aproximação entre narrativa e discurso assim compartilha esse deslocamento na concepção de verdade, como modos de construção de verdades que desestabilizam noções de essência e origem, certo e errado (FERRAÇO; GABRIEL, 2009), porém elas se distanciam ao pensarmos nas condições de emergência de suas manifestações.

Para Benjamin, a narrativa só existe em sua plenitude a partir de verdadeiros narradores, sujeitos que viveram experiências e têm histórias para contar, isto é, são senhores da experiência. Ela é a manifestação de uma vida coletiva, na qual insurgem sensibilidades e perspectivas que buscam acima de tudo aconselhar ao estabelecer contato com a experiência do outro, o ouvinte.

Já Foucault investe em uma noção de discurso como uma manifestação que circula entre pessoas e instituições, ultrapassando a relação linear da linguagem com as palavras e as coisas e se tornando ele mesmo uma disputa em um contexto social. O discurso é um conjunto de enunciados que mantêm uma mesma formação discursiva e institui regimes de verdade como um acontecimento historicamente marcado, articulado a relações de poder-saber e indutor de processos de subjetivação e objetivação.

Na diversidade desses conceitos vemos uma possibilidade de integrá-los, a fim de aproximar o papel do acontecimento na analise genealógica e narrativa.

Assim como a pesquisa genealógica, que, pautada na busca por rupturas, descontinuidades e brechas, permite-nos problematizar as questões colocadas, o trabalho com as narrativas possibilita olhar para a concepção de tempo e de história, enfatizando uma história que não é linear, fixa, resultado de causas e efeitos, mas marcada também por descontinuidades e, principalmente, acontecimentos (PETRUCCI-ROSA, RAMOS, 2015, p. 307).

Esta integração esta pautada em modos de se aproximar da história, que estão inseridos em diferentes concepções de sujeito. Enquanto Foucault buscou em suas investigações conhecer os modos que os sujeitos eram produzidos em relações entre verdade, poder e saber, Benjamin dialoga com um sujeito mais capaz de se produzir a partir de suas experiências. Tais divergências são marcantes, porém concebemos que no processo de entendê-las, há abertura para problematizar a sua coexistência.

Se para Foucault o estudo e as “escavações” da história, dos discursos, dos regimes de verdade e das relações de poder-saber tornam possível entender a constituição desse sujeito moderno e de subjetividades, em Benjamin parece haver um processo inverso: as experiências dos sujeitos é que possibilitam a construção de um retrato do contexto sóciohistórico de determinada época,

conforme vemos em sua obra ‘Infância em Berlim por volta de 1900’. (RAMOS, 2012, p.28)

Para Foucault, (de forma mais incisiva até o final de seu momento genealógico) o sujeito tem pouco espaço para mobilizar a sua própria construção, estando mais preso às relações que o qualificam, sendo um resultado da articulação de outras forças em disputa. Em suas primeiras obras, o foco esta em trazer visibilidade às relações que saberes e poderes conferem aos sujeitos, posicionando-os nas redes discursivas.

Este modo de ver a história da sujeição é transformado nas últimas obras de Foucault, nas quais há o olhar para a construção de subjetividades, experiências de si mesmo, porém ainda conectadas a necessidade de ver as trajetórias pessoais inseridas em dinâmicas discursivas mais amplas, que subjetivam as próprias subjetividades.

Já Benjamin dialoga com uma perspectiva mais alargada, na qual sujeitos, suas experiências e narrativas produzem a sua própria construção (MARQUESIN, PASSOS, 2009). Ele seria capaz de articular de forma consciente e inconsciente, através de suas memórias e esquecimentos, parte de sua própria construção (PETRUCCI-ROSA, RAMOS, 2015).

Para Veiga-Neto (2014) a desconstrução da noção de sujeito desde sempre aí presente na obra de Foucault o desliga de qualquer posição que defenda a possibilidade de um sujeito que precede sua construção, como sujeito essência de um espaço sócio-temporal. Em contrapartida, Benjamin assume a possibilidade de se conceber um sujeito que se constrói na sua própria experiência, o narrador, no ato de rememorar e contar histórias.

Ao mesmo tempo, o próprio Foucault concebe a participação da narrativa no processo de construção de uma história fragmentada, na ótica de A Vida dos Homens Infames (FOUCAULT, 2003), mobilizando os relatos daqueles que não puderam manter as suas vozes em uma posição de visibilidade:

Persisti para que esses textos mantivessem sempre uma relação, ou melhor, o maior número de relações possíveis com a realidade: não somente que a ela se referissem, mas que nela operassem; que fossem uma peça na dramaturgia do real, que constituíssem o instrumento de uma vingaça, a arma de um ódio, um episódio de uma batalha, a gesticulação de um desespero ou de um ciúme, uma súplica ou de uma ordem. Não procurei reunir textos que seriam, melhor que outros, fiéis à realidade, que merecessem ser guardados por seu valor representativo, mas textos que desempenharam um papel nesse real do qual falam, e que se encontram, em contrapartida, não importa qual seja sua exatidão, sua ênfase ou sua hipocrisia, atravessados por ela: fragmentos de discurso carregando os fragmentos de uma realidade da qual fazem parte (FOUCAULT, 2003, p. 206).

possibilidade de conhecer uma perspectiva da realidade discursiva. Esse movimento singular é mais próximo ao que atravessa toda a produção de Benjamin, que vê nas pequenas liberdades, resistências e experiências, uma possibilidade de conhecer um contexto sócio-histórico.

Esta possibilidade já é amplamente discutida em produções atuais, como por Tamboukou (2008), que discute minuciosamente as possibilidades e implicações de inserir a prática narrativa em pesquisas genealógicas foucaultianas. Sem realizar esta discussão entorno da produção benjaminiana, ela evidencia como a história dos acontecimentos, das rupturas, na perspectiva dos não previlegiados na ordem do discurso, porém inseridos nas estratégias das relações de poder e saber, é capaz de problematizar a construção da história como tem sido mobilizada na sua forma tradicional.

Ao contemplar o sujeito como autor da representação de sua vida, mas ainda sim na lógica de um autor múltiplo, cuja voz é constituída na pluralidade de sujeitos que estão posicionados na ordem do discurso, é reforçada a possibilidade de integrar discurso à narrativa na ótica de Walter Benjamin. Para este a narrativa é o resultado de uma experiência coletiva, mobilizada por um sujeito que a insere dentro de sua subjetividade, assim, cuja autoria é fluída em um tempo e espaço social.

Na pluralidade das concepções articuladas, construímos assim uma relação entre narrativa e discurso com o fim de estudar o currículo em diversas de suas dimensões: ao ouvirmos as experiências de profissionais em diferentes contextos através das narrativas benjaminianas, trazemos com elas os discursos, enquanto vozes institucionais que tensionam relações de poder-saber e que nos possibilitam compreender a constituição de políticas curriculares (PETRUCCI-ROSA, RAMOS, 2015). As narrativas exteriorizam dentro das experiências intercambiáveis, discursos que integram a formação dos sujeitos e espaços sociais mais amplos (OKUBO, 2012, RAMOS, 2012, RAMPINI, 2011, FERRAÇO; GABRIEL, 2009).

Para Foucault o sujeito é uma posição discursiva, portanto está imerso em práticas discursivas. Estas podem ser vistas como marcas de suas narrativas, que estão inseridas na ordem do discurso. Elas manifestam meio a tensões e subjetividades, os mais diversos desejos, interesses e perspectivas dos sujeitos (REIS FILHO, 2011).

A narrativa é uma construção coletiva de experiências de vida, uma vez que nunca somos autores individuais, mas coletivos. Dessa forma, ao rememorarmos determinadas experiências, trazemos com elas as vozes de outros que estiveram juntos e compartilharam conosco essas mesmas experiências. Nessa tessitura, emergem os discursos, enquanto vozes institucionais que tensionam relações de poder-saber. (RAMOS, 2012, p. 137)

Ao superarem a transmissão característica das questões da linguagem e construírem sobre o que falam e aqueles que falam, estes não se limitam ao portador da voz, pois tanto a experiência da qual o narrador se baseia é a experiência coletiva de um contexto sócio histórico, quanto os discursos circulantes estão inseridos em uma rede discursiva sem relações de autoria definidas.

Dessa maneira, concebemos a narrativa na perspectiva benjaminiana como uma forma de comunicação atravessada pela dimensão humana que apenas a experiência de uma vida pode prover, mas ainda capaz de revelar tensões e disputas de discursos em uma noção foucaultiana.

Tendo como referência as aproximações realizadas nestes tópicos, damos continuidade com a construção de uma metodologia que tenha como desafio se aproximar de narrativas e discursos, e dessa forma, do problema de pesquisa que foi proposto no primeiro capítulo.