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Entendemos as disciplinas escolares como representações culturais, partindo da ideia de Pereira (2010), para a qual elas são mais que modos de reprodução de determinados conhecimentos que são valorizados socialmente ou que estão em prol de projetos de construção de determinadas formas de sociedade de produção, mas como modos de transmissão de uma cultura comum.

Assim, “concebidas como artefatos culturais, as disciplinas escolares expressam mais do que elementos cognitivos, elas estão carregadas de princípios e valores, estão a serviço de um projeto cultural” (PEREIRA, 2010, p. 426). Essa concepção irá dialogar com o conceito de

cultura desenvolvido por Canclini, no qual “Pode-se afirmar que a cultura abarca o conjunto de processos sociais de significação ou, de um modo mais complexo, a cultura abarca o conjunto de processos sociais de produção, circulação e consumo da significação na vida social” (CANCLINI, 2005, p. 41).

Mobilizaremos as disciplinas escolares como conjuntos de processos de produção, circulação e consumo de significações que vão além dos conhecimentos a serem socializados, mas buscam produzir projetos culturais. Constituídas na modernidade através de processos culturais que formam mecanismos de hibridização de textos e discursos.

Canclini (2003) desenvolveu o conceito de híbrido ao analisar as culturas da América Latina, evidenciando relações mistas de pertencimentos e misturas. Ele assim se mostra como um caminho interessante para pensar nas disciplinas de maneira ainda aliada a perspectiva apresentada anteriormente, que foi pautada na recontextualização, porém agora de modo mais abrangente a formas de construção dos artefatos culturais na modernidade. “Para Macedo (2003), a compreensão da disciplina como um híbrido de textos originados em outros contextos permite-nos pesquisar os discursos hibridizados e, também, as finalidades em jogo” (PETRUCCI-ROSA, PAVAN, 2011, p. 90; 91).

O trabalho de Macedo (2003) discute como os currículos escolares brasileiros se configuram como misturas de influencias produzidas em outros contextos, baseadas principalmente sobre três narrativas: a iluminista, a cidadania e a do mercado, sendo a primeira uma das grandes influências para a centralidade da matriz disciplinar no currículo.

O estudo de Kliebard (1986, apud DUSSEL, 2002) nessa direção estuda como no caso do currículo norte-americano existe a tendência entorno de uma hibridização com a influência de quatro linhas discursivas diferentes: humanista (com base nas disciplinas clássicas), paidocentrista, eficientista social (com base nas teorizações de Taylor e Bobbitt) e reconstrucionista social.

Essas influências são hibridizadas na dinâmica da circulação dos discursos, na qual “entenda-se a dimensão cultural como processos de significação responsáveis pelos sentidos atribuídos às diferentes práticas sociais e que são objetos de disputa no campo da discursividade” (SOARES, 2011, p. 139). Canclini (2003) irá apresentar esta hibridização através de processos de descoleção, de desterritorialização e de reterritorialização.

A primeira referencia os modos que as sociedades modernas conseguem desconstruir as organizações que antes eram estáticas e inflexíveis. As tecnologias multimídias, o acesso à arte,

o uso dos livros, são exemplos analisados pelo autor para demonstrar como a segmentação por categorias rígidas agora pode ser transgredida pelos sujeitos, que podem criar modos próprios de selecionar e organizar suas coleções.

A segunda e a terceira se referem aos processos nos territórios geográficos e sociais em que a cultura perde suas referencias de origem bem definidas, estabelecendo novos vínculos com outros espaços de manifestação e pertencimento. Ao analisar a fronteira entre o México e Estados Unidos, Canclini evidencia o desprendimento que a cultura moderna vive, no qual ela atravessa as barreiras sociais que delimitavam suas possibilidades de existência.

Desterritorialização e reterritorialização. Nos intercâmbios da simbologia tradicional com os circuitos internacionais de comunicação, com as indústrias culturais e as migrações, não desaparecem as perguntas pela identidade e pelo nacional, pela defesa da soberania, pela desigual apropriação do saber e da arte (CANCLINI, 2003, p. 326).

Essa fluidez das fronteiras propiciada pelos meios de comunicação e a intensa circulação de pessoas e produtos, além da instabilidade das tradições para ele produzem contradições e fontes de conflitos na modernidade, marcadas pela desterritorialização e reterritorialização, além das disputas por poder e pelas práticas sociais e econômicas.

Para a hibridização, a modernidade produz de forma rápida e dinâmica esses novos sentidos dentro dos discursos e das relações entre as culturas, rompendo com as ideias de essencialidade e pureza, e se interessando mais com as formas de articulação entre manifestações que anteriormente eram classificadas separadamente.

[...] refere-se aos fenômenos difusos da cultura em virtude de o mundo se tornar cada vez mais complexo e fragmentado. Pelos processos de hibridização, os discursos perdem suas marcas originais: são rompidas coleções organizadas pelos sistemas culturais e novas coleções são formadas, os processos simbólicos são desterritorializados e os gêneros impuros se expandem (LOPES, 2008, p.31).

Para Canclini, as interações culturais possibilitam a ação do poder de forma oblíqua naqual são concebidas brechas para descentralizar o poder verticalizado. Para ele (CANCLINI, 2003, p. 349) “em toda fronteira há arames rígidos e arames caídos”, metáfora interessante para entender que os híbridos se situam nesse meio, no qual a abertura de brechas estabelece a conexão entre diferentes. Nesse contexto, o distanciamento da participação pública sobre os meios culturais restaura parcialmente a verticalidade do poder.

Através dessas ideias, Lopes (2005b) discute a possibilidade de esses processos terem maior abertura para a participação dos membros da sociedade, criando uma maior

horizontalidade entre os contextos de produção de novas articulações entre os discursos circulantes, estabelecendo formas hibridas e recontextualizadas.

Com essas concepções, a verticalidade associada à recontextualização é desconstruída, bem como os binarismos que caracterizam as mudanças nas regras discursivas na passagem de um contexto a outro. Não será pelas regras de classificação e de enquadramento que o poder e o controle se expressam, ou pelo menos não apenas por intermédio delas, mas também pelos hibridismos (LOPES, 2005b, p. 58).

Assim, a construção dos híbridos acontece entre disputas e negociações, nas quais há possibilidade de se desprender das relações rígidas e binárias que permitem e coagem determinas construções.

A disciplina escolar pensada na lógica do híbrido se manifesta dessa forma como uma estrutura não apenas regida pela recontextualização e pelos graus de enquadramento e de classificação (modos de articulação dos conhecimentos, controles e poderes), mas também por misturas entre discursos, sendo produzidas pelos sujeitos. Para (MATOS, PAIVA, 2007), o poder e o controle também estarão nos híbridos formados, porém agora dentro de uma base na qual há viabilidade para se pensar outras relações.

É importante evidenciar que “o resultado não é um „pastiche‟ desconexo, mas uma rearticulação de discursos heterogêneos que produziram efeitos profundos na estrutura do sistema educativo” (DUSSEL, 2002, p. 73; 74). Para a disciplina escolar, essa assertiva continua válida dentro das concepções sobre os discursos, nos quais não é possível ler qualquer coisa em qualquer lugar. O híbrido apresenta determinadas direções de ação, que foram associadas a partir de outras tradições, criando novos sentidos (EYNG, SCHERER, 2011).

Esses processos de hibridização têm marcado fortemente as políticas curriculares nas últimas duas décadas no Brasil, configurando direções diversas na noção de disciplina escolar, em matrizes teóricas não apenas diferentes, mas por vezes contraditórias.

Particularmente nas atuais políticas de currículo no Brasil, as mesclas entre construtivismo e competências; currículo por competências, currículo interdisciplinar ou por temas transversais e currículo disciplinar; valorização dos saberes populares, dos saberes cotidianos e dos saberes adequados à nova ordem mundial globalizada são exemplos de construções híbridas que não podem ser entendidas pelo princípio da contradição (LOPES, 2005b, p. 57).

Analisar os antagonismos nos discursos curriculares que constroem as disciplinas escolares é uma das grandes possibilidades ao se levar em conta os processos de hibridização, que superam a perversidade da entrada da ideologia entre os contextos e agentes de recontextualização (BERNSTEIN, 1996).

Para a hibridização, o diálogo entre diferentes é polifônico e multifacetado, envolvendo a subjetividade dos sujeitos como indutora de direções das misturas realizadas em prol de determinados fins, assim como as “[...] experiências individuais e coletivas do conjunto de sujeitos que transitam, significam e produzem o currículo escolar” (EYNG, SCHERER, 2011, p. 63).

Como apontado anteriormente, essas misturas estão imersas em espaços de brechas, nas quais o poder atua de forma obliqua, e institui possibilidade de hibridizar discursos através de processos marcados pela subjetividade e experiências dos sujeitos, que “[...] mobiliza alguns sentidos e reprime ou apaga outros. Constrói-se tanto pelo reconhecimento e sanção de alguns discursos, como pelo esquecimento e repressão de outros” (MATOS, PAIVA, 2007, p.188).

Assim, novamente se faz necessário articular uma forma de nos aproximar dos sujeitos desse processo de forma menos estruturada, e que tente contemplar a dimensão mais subjetiva dos modos de construção das disciplinas escolares. Essa aproximação também se torna necessária ao pensarmos nas disciplinas acadêmicas universitárias, que compõem os currículos universitários.

Nessa perspectiva de análise, os currículos escolares e também universitários– estes últimos objetos de investigação desta pesquisa – ao serem pensados como espaços-tempos de fronteira, aparecem como híbridos culturais (SOARES, 2011, p.150).

Sendo o problema de pesquisa apresentado marcado pela dimensão da reestruturação do curso de Licenciatura em Física, consideramos que esse processo é permeado pelos meios de disputa e negociação em torno das subjetividades, interesses e experiências dos sujeitos. Elas são indutoras de hibridizações de discursos sobre a disciplina escolar Física, a serem mobilizadas para os alunos de licenciatura através de disciplinas acadêmicas universitárias, também resultando em híbridos culturais.

Ao estudar as políticas culturais e o currículo, Costa (1998) defende que as disciplinas escolares e o currículo instituem e reproduzem representações culturais sociais de gênero, classe social e de etnia/raça, se situando no campo dos processos de produção de regimes de verdade (com base foucaultiana). Para ela, essas políticas culturais serão modos de produção de “realidades” a partir de narrativas e discursos, que são tecnologias sociais que respondem a “uma „vontade de saber‟ inseparável de uma „vontade de poder‟” (COSTA, 1998, p. 51).

Nessa direção, buscamos construir uma base para compreender a Narrativa e o Discurso como formas de aproximação à questão levantada.