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Ressignificar o passado a fim de questionar e compreender o que está posto como estável e natural é a forma de ação presente nos estudos das histórias das disciplinas escolares, que se configuram como objetos de estudo que muito podem dizer sobre a escola, o currículo e o conhecimento na sociedade.

Uma grande referência neste campo é o trabalho de Ivor Goodson, historiador inglês que dedicou parte de sua pesquisa à história das disciplinas escolares, evidenciando mecanismos de transformações em suas trajetórias. Para ele (GOODSON, 2001), o estudo das disciplinas escolares tem crescido desde a década de 60, com acentuada produção sobre as disciplinas do ensino secundário em diversos países.

Para Goodson, “a disciplina escolar é construída social e politicamente e os atores envolvidos empregam uma gama de recursos ideológicos e materiais à medida que prosseguem as suas missões individuais e coletivas” (GOODSON, 1997, p. 43). Goodson (1983) aplicou o modelo sobre os estágios de evolução das ciências naturais desenvolvido por David Layton, constatando a evolução das disciplinas através de processos de consolidação de tradições, nas quais o conhecimento disciplinar se dispõe a objetivos sociais da educação, através de uma

progressiva academização de sua estrutura (LOPES, MACEDO, 2002). Esse processo esta incluso em espaços de embate entre os grupos envolvidos por recursos e território, nos quais são legitimados vencedores e perdedores.

Os atores sociais envolvidos com as disciplinas escolares lutam por recursos para suas ações, disputam o território a ser ocupado (carga horária nas grades curriculares, espaço e poder nas diferentes ações curriculares) e defendem o status de seu campo disciplinar, sendo cada uma essas ações inter- relacionadas com as demais (MELLO, LOPES, 2003, p. 51).

Assim ele evidencou que as disciplinas escolares têm destinos não necessariamente vinculados às direções da educação acadêmica, a disciplina de referência ou ao mundo do trabalho, nos quais “[...] os atores envolvidos, formadores da comunidade disciplinar, empregam recursos ideológicos e materiais para desenvolverem suas missões individuais e coletivas” (LOPES, MACEDO, 2011, p. 119).

Apesar de evidenciar que as disciplinas escolares são diferentes das disciplinas acadêmicas, o trabalho de Goodson estuda os processos nos quais são estabelecidas aproximações entre elas, através do apresentado por Ramos (2008b) como:

Isso não significa dizer que não há aproximações entre as mesmas, porém essa relação se faz por intermédio das disciplinas acadêmicas, vistas como as principais responsáveis pela definição do caráter de uma disciplina escolar, conferindo a essa maior prestígio, apoio social e posição na hierarquia curricular. Assim, as disciplinas escolares tornam-se acadêmicas na medida em que se tornam socialmente mais excludentes (RAMOS, 2008b, p. 21; 22).

Portanto estudar as disciplinas escolares historicamente é buscar conhecer o que elas representam dentro dos currículos e da sociedade, como entidades mais ou menos responsáveis por processos de exclusão, nos quais o caráter acadêmico demonstra grande relevância.

Esse caráter se configura na obra de Goodson (2001) como uma de três tradições, a acadêmica. Esta é estudada em relação a outras duas, a utilitária e a pedagógica. Elas são formas de atuação das disciplinas escolares que evoluem com o tempo, e que Goodson demonstra terem direção à consolidação de tradições acadêmicas como forma de buscar a estabilização do campo disciplinar.

A primeira se refere aos processos de mobilização de avaliações externas, com recursos destinados ao desenvolvimento da organização das disciplinas e da formação de profissionais para exercerem as suas funções, além do atrelamento estreito a conhecimentos abstratos e descontextualizados. A segunda se refere aos meios relacionados aos conhecimentos de baixo status do mundo do trabalho, da vida cotidiana e do senso comum. A terceira se relaciona ao desenvolvimento de ações ligadas às metodologias de ensino e da aprendizagem (IGLESIAS,

2014).

A preponderância da tradição acadêmica nessa evolução “[...] reitera a percepção de que a estabilidade das disciplinas está fortemente ligada à formação de professores nas instituições universitárias” (PETRUCCI-ROSA, 2010, p. 409), que capacitam profissionais para atuar nas escolas que tenham marcas da noção de disciplina escolar mobilizadas também durante a formação inicial.

Esse processo é realizado por influências em diversos âmbitos e por diversos atores sociais que não são movidos apenas por anseios globais, mas também pelas suas individualidades, consolidando direções de transformação. Assim são construídos embates entre posições que coexistem na sociedade, e que constroem o que se legitima como disciplina escolar naquele momento.

Assim, não basta pensar nas agendas governamentais e mundiais e nas grandes instituições como fontes de pressão sobre a noção de disciplina escolar. Ela é construída no tempo e no espaço dentro de diversas esferas de atuação dos sujeitos, que não se limitam a estruturas deterministas nas quais não há possibilidade de ruptura entre os atores sociais e os discursos das instâncias oficiais. Para Goodson (2001), as transformações das disciplinas estão estritamente conectadas aos anseios, desejos e convicções dos professores, que em todo o Mundo exercem pressões em direções próximas, atreladas a subculturas locais disciplinares.

Goodson (2011) evidencia essa potencialidade de se conhecer a história das disciplinas e o currículo dentro de contextos mais locais analisando alguns casos, nos quais os movimentos dos grupos disciplinares e os contextos da ação de profissionais vão com o tempo consolidando tradições.

A elaboração de um currículo pode ser considerada um processo pelo qual se inventa tradição. Com efeito, esta linguagem é com frequência empregada quando as “disciplinas tradicionais” ou “matérias tradicionais” são justapostas, contra alguma inovação recente sobre temas integrados ou centralizados na criança. A questão é que o currículo escrito é exemplo perfeito de invenção da tradição. (GOODSON. 2011, p.29).

Dessa forma, a historicidade do fenômeno estudado é concebida como essencial. Ela configura como uma situação em peculiar, vivida por um grupo de pessoas inseridas em um momento histórico singular e que se tornam agentes de sua construção. Na perspectiva da história das disciplinas escolares essa historicidade é determinante para se buscar entender as direções para as quais as disciplinas se movimentam, dentro de pressões exercidas em diferentes escalas de atuação de forças políticas.

Lidar com a história, atravessada pela complexidade e investigações entre escalas fenomenológicas variadas, dialoga com a perspectiva apresentada por Revel (2010), para o qual os processos sócio-históricos devem ser compreendidos como resultados de múltiplas ações realizadas por grupos e indivíduos. Para ele esses fenômenos devem ser entendidos a partir de uma abordagem que contemple uma “multiplicidade desordenada e em parte contraditória” (REVEL, 2010, p. 443).

Estudar os objetos curriculares a partir de múltiplos contextos de análise, além de dialogar com instâncias macro e micro, se conecta assim a “condição pós-moderna”, entendida por Lopes (2006a) como uma posição na qual o trabalho do pesquisador é permeado pela discussão em torno das “relações entre estrutura e ação, totalidade e fragmento, transcendência e contingência” (LOPES, 2006a, p.621).

Articulamos assim uma abordagem contingente para se entender estes fenômenos, como a própria resistência histórica atribuída às disciplinas escolares. Elas se configuram como um dos alicerces do formato escolar tradicional da educação básica (Grupo Viernes, 2008), e para compreender a sua estabilidade ou possíveis processos de desestabilização, mobilizamos uma dinâmica dos estudos curriculares atuais que contempla a teoria do contexto que dialogue diretamente com a ação (GOODSON, 2003).

Esta perspectiva interescalar permeia as análises prudizas no trabalho de Goodson, que para Viñao integra “Por um lado, a teoria e a ação, e, por outro, as estruturas disciplinares e os indivíduos ou grupos que as integram. Em ambos os casos, uma relação entre o macro e o micro” (VIÑAO, 2008, p. 182).

Enfatizamos o diálogo entre as escalas de análise das disciplinas ao invés de focalizar as instâncias da ação por nos apoiarmos na ideia de Chervel de que as disciplinas escolares atravessam as escolas e integram “também as grandes finalidades que presidiram sua constituição e o fenômeno de aculturação de massa que ela determina” (CHERVEL, 1990, p.184).

Como construção humana que se transforma no tempo e espaço, a disciplina escolar assim é pensada com um alvo de pressões dos sujeitos, das instituições e da sociedade, e dessa forma ela pode ser observada entre perspectivas, tomando como referência Revel (2010, p. 438), “Retomando uma metáfora que foi muito utilizada nos últimos anos, variar a focalização de um objeto não é unicamente aumentar ou diminuir seu tamanho no visor, e sim modificar sua forma e sua trama.”.

Ao se buscar evidenciar mecanismos históricos de transformação das disciplinas escolares em diferentes contextos, eles podem se apresentar como mecanismos diferentes, uma vez que a perspectiva de analise evidencia e privilegia apenas algumas formas deles. Apesar de não terem influencia unicamente em um contexto, eles são vistos de maneiras diferentes em cada um deles, dependendo de como podem ser observados.

Na próxima sessão serão discutidos mecanismos políticos de construção discursiva da noção de disciplina, mas que não deixam de ser também históricos, uma vez que representam apenas diferentes enfoques de um conjunto de fenômenos que integradamente sustentam a noção de disciplina escolar Física.