• Nenhum resultado encontrado

Entender as disciplinas escolares como uma tecnologia de organização curricular esta na direção das discussões realizadas a partir da promulgação dos PCNEM (BRASIL, 1999), que apresentavam outra possibilidade de organização do Ensino Médio, com base em áreas de conhecimento ao invés de disciplinas. Para entender a dimensão dessa proposta de mudança, discutimos o que significa para a escolarização o papel estruturador do ensino articulado às disciplinas:

É por meio das disciplinas escolares que os professores se organizam em grupo, orientam sua formação e seu trabalho. É por intermédio da organização disciplinar que o trabalho de professores e alunos nas escolas é controlado: quem pode fazer o quê, quando, que lugar, de que maneira; qual o conteúdo é ministrado em que horário, em que lugar, por quais professores e para quais alunos. Nessa perspectiva, o currículo disciplinar pode ser compreendido como uma tecnologia de organização curricular, controlando sujeitos, espaços, tempos e saberes (LOPES, 2005a, pg. 266).

Essa forma de pensar nas disciplinas levará em conta uma dinâmica que ultrapassa o território da escola básica. A organização disciplinar curricular irá promover determinadas formas de construção da escolarização, que privilegiam a fragmentalização do conhecimento, o

isolamento dos profissionais, o afastamento da realidade local e a normalização do tempo e do espaço. Para instaurar essas características ela produz uma sistematização do trabalho pedagógico que induz o que é valido em cada momento a partir de definições previamente estabelecidas (LOPES, MACEDO, 2011).

Esse tipo de organização de caráter positivista se estabilizou nos currículos brasileiros a partir do final do século XIX, instaurando as disciplinas consideradas científicas nessa organização (THIENSES, 2011). Para Chervel (1990), esse movimento define determinadas direções para a escolarização, que impõe as disciplinas como responsáveis pela instituição de conhecimentos instrucionais para vincular dispositivos educacionais.

A instituição escolar é em cada época, tributária de um complexo de objetivos que se entrelaçam e se combinam em uma delicada arquitetura da qual alguns tentaram fazer modelo. É aqui que intervém a oposição entre educação e instrução. O conjunto dessas finalidades consigna à escola a sua função educativa. Uma parte somente entre elas obriga-a a dar instrução. Mas essa instrução está inteiramente integrada ao esquema educacional que governa o sistema escolar, ou ao ramo estudado. As disciplinas escolares estão no centro desse dispositivo. Sua função consiste em cada caso em colocar um conteúdo de instrução a serviço de uma finalidade educativa (CHERVEL, 1990, p. 188).

Dessa maneira, as disciplinas compõem a organização curricular ao instituírem os conteúdos que servem às finalidades educativas, e dessa forma delimitando quem pode exercer essa instrução, além de quando, como e onde essa instrução é possível.

Para Petrucci-Rosa (2007), essas delimitações da organização disciplinar são marcadas materialmente por três dimensões no cotidiano escolar: “[...] representadas pelos livros didáticos, pela grade de horários e pelas aulas coordenadas separadamente por diferentes professores especializados” (PETRUCCI-ROSA, 2007, p. 52).

Os livros didáticos evidenciam modos de exercer a presença das disciplinas escolares nos currículos, influenciando o trabalho de professores durante gerações, além de por vezes definirem a programação dos conteúdos, os exercícios e atividades de ensino, além de métodos de avaliação. Essa materialização histórica das disciplinas escolares é estudada no campo de currículo como uma manifestação dos processos de transformação das disciplinas com o tempo.

Os horários escolares são outro marco da organização escolar disciplinar. Palamidessi (2002) estuda o processo de evolução dos quadros de horário no ensino infantil da Argentina através das grandes mudanças em sua forma entre 1888 e 1980. Para ele:

No emprego do tempo que dispõe todo horário se atualizam três questões: a) o estabelecimento de ritmos por intermédio da subdivisão e do detalhamento de suas unidades; b) a determinação de atividades, exercícios ou ocupações

determinadas; e c) a reiteração dos ciclos (PALAMIDESSI, 2002, 115).

O quadro de horários marca relações entre as disciplinas escolares, evidenciando vencedores e perdedores no processo de legitimação do espaço para articulação de seus conhecimentos. Ele veicula o que pode acontecer em cada momento, atribuindo a cada disciplina determinados momentos da semana em cada sala de aula, com um determinado ritmo para as atividades pedagógicas, além de vinular o cotidiano escolar a certos padrões de repetição.

As aulas são ministradas por professores especialistas, formados para lecionar para as disciplinas escolares prescritas no currículo, o que irá terminar de produzir o alicerce do currículo organizado disciplinarmente, definindo métodos de ensino e orientando a formação de professores (LOPES, MACEDO, 2011, MELLO, LOPES, 2003).

Assim, a organização disciplinar determina modos de ação que são possíveis para um professor, delimitando conhecimentos, atividades, horários e lugares em que ele poderá se colocar como educador, além das suas relações com a comunidade escolar, que estarão marcadas pela sua amálgama disciplinar. Para Lopes (2006b), essas delimitações constituem uma micropolítica da atividade docente, que fortifica as fronteiras disciplinares entre os sujeitos.

Petrucci-Rosa (2007) propõe com essa base a ideia do currículo disciplinar se aproximar de um curículo-loteamento, que “[...] estabelece uma lógica de controle das relações de trabalho e dos processos de conhecimento no contexto da cultura escolar” (PETRUCCI-ROSA, 2007, p. 55). Esse controle institui uma economia de poder que administra os processos de escolarização.

Dessa forma se define uma barreira bastante resistente e auto-sustentável que protege a organização disciplinar, mobilizando a disciplina escolar como um “[...] padrão de estabilidade curricular porque se legitima legitimando a própria idéia de escolarização” (LOPES, MACEDO, 2002, p. 93).

Enquanto “ideia curricular bem sucedida” há bastante tempo, o currículo disciplinar não se mantém inabalado às críticas da sociedade acadêmica, que, simplificando a discussão, o acusa de ser uma forma de escolarização “[...] incapaz de integrar saberes, de permitir uma compreensão global dos conhecimentos ou de gerar maior aproximação com saberes cotidianos dos alunos, dessa forma dificultando a aprendizagem de conhecimentossignificativos” (LOPES, MACEDO, 2002, p. 74). Dentro da busca por superar essas críticas, são realizadas propostas em busca de novas formas de organizar a matriz curricular educacional, como a apresentada nos PCNEM (BRASIL, 1999).

A predominância da organização escolar disciplinar contribui para a sua própria resistência, uma vez que ela é uma das estruturas já naturalizadas na história do ensino (LOPES, 2007).

Essa presença tão marcante das disciplinas tende a fazer com que cada uma delas, bem como a própria organização disciplinar, seja tratada como destituída de uma história. É desconsiderada a história das disciplinas escolares, com seus significados próprios, capaz de compor uma cultura escolar que ultrapassa os limites do sistema de ensino (LOPES, 2007, p. 197; 198).

Pensar na desnaturalização das disciplinas escolares então é um movimento necessário, que pode ser atravessado pelo olhar histórico visando compreender de que forma as disciplinas conseguiram adquirir tamanha estabilidade no currículo.

Essa abordagem está presente em um campo da área do currículo, que busca compreender essas tecnologias de organização curricular dentro de um contexto mais amplo, no qual tradições, disputas, recursos e grupos sociais estão em jogo, construindo historicamente o que se constitui legitimamente como disciplina escolar.