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Capítulo III- A natureza das ciências

III.7- Argumento e persuasão

Dizer que os fatos científicos são construídos no interior de comunidades de especialistas não implica em afirmar que as ciências pressupõem, necessariamente, argumento e persuasão. Não do ponto de vista de quem aceita o mito segundo o qual os fatos são “descobertos”, ou valoriza a máxima popular de que “contra fatos não há argumentos”. Esse mito é tão difundido que alguns estudiosos das ciências sentem que estão a desafiar o senso comum quando afirmam que a retórica tem contribuições importantes para a compreensão desse empreendimento cultural. A esse respeito Ziman (1979, p. 47) nos diz que:

O termo retórica pode parecer fora de lugar aqui, pois sugere vagamente uma tentativa de se reforçar um mau argumento apelando-se para as emoções e não para o intelecto. Mas não há dúvida de que essa é a única palavra que podemos usar, já que banimos o termo ‘positivismo’ e questionamos o absolutismo da prova científica.

AS CIÊNCIAS PRESSUPÕEM Empreendi- mento Coletivo Argumento e Persuasão Imaginação e Modelização Provisoriedade e Devir Autoridade, Reificação e Fatos Múltiplas Linguagens Múltiplas Estratégias Coordenação entre Teorias e Evidências Diagrama III.7

O questionamento do absolutismo da prova científica experimental, feito por Ziman (ibidem), já foi suficientemente desenvolvido nas seções anteriores deste capítulo. Nelas, apresentei e defendi o ponto de vista segundo o qual pode haver mais de um modo de interpretar uma evidência empírica, o que exige o estabelecimento de acordos tácitos entre os cientistas sobre quais são as teorias a serem mantidas longe das críticas, ou como as evidências empíricas devem ser interpretadas. Sendo assim, o que posso ter mais a dizer para defender a idéia de que as ciências pressupõem argumento e persuasão, ou que a retórica tem contribuições para a compreensão das ciências?

Meu objetivo agora não é mais defender essa idéia. Considero que o leitor cuja paciência permitiu acompanhar o texto até aqui já compreendeu meu ponto de vista ou, talvez, já compartilhasse dele há muito tempo. Ainda assim, julgo que a adoção de um ponto de vista como esse não encerra o problema. Há questões importantes que merecem ser destacadas. Escolhi duas delas e me proponho a discuti-las, brevemente, a seguir.

Vale a pena perguntar, em primeiro lugar, qual o papel ou a importância relativa dos processos de argumentação na produção do conhecimento científico. Essa pergunta é pertinente, pois o

processo de produção do conhecimento científico não se restringe às dinâmicas de argumentação. Há outros aspectos a considerar, como bem nos lembra o diagrama III.7.

A pergunta seguinte seria: existem formas de argumentação específicas que compõe a retórica das ciências? Essa pergunta torna-se importante desde o momento em que autores como Emeren, Grootendorst, Kuiger (1987) ou Perelman e Olbrechsts-Tyteca (1999) nos ajudam a compreender que existem muitas e diferentes formas e recursos de retórica.

Começarei pelo exame da primeira questão. Para isso, considero necessário introduzir os conceitos de ciência normal e ciência revolucionária propostos por Kuhn (1977, 1979 e 1998). Afinal, se dermos ouvidos a Kuhn e admitirmos a existência desses dois modos diferentes de funcionamento das ciências, teremos que atribuir pesos muito distintos à importância da argumentação em cada um deles.

Ciência normal é o termo que Kuhn utiliza para designar os períodos nos quais uma ciência madura é praticada sob a égide de uma cultura técnica e um referencial teórico, ambos bem estabelecidos. O termo normal não possui, necessariamente, qualquer conotação pejorativa. A “normalidade”, que se opõe às idéias de “crise” e “conturbação”, sinaliza a existência de grandes consensos, tanto tácitos, quanto explícitos, entre os membros de uma determinada comunidade de especialistas. O lado positivo e desejável da prática normal das ciências, que vincula os conceitos de ciência normal e ciência madura, surge como decorrência desses consensos.

Os acordos não são o resultado de uma autoridade despótica, que impõe padrões de pesquisa “goela abaixo” aos membros da comunidade. Ao invés disso, são decorrentes do sucesso teórico- empírico alcançado por um conjunto de teorias articuladas em torno de uma matriz disciplinar34.

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Grosso modo, as propriedades de uma matriz disciplinar são semelhantes àquelas que eu utilizei na terceira seção deste capítulo quando defini o significado do termo teoria com a intenção de explicar a idéia de que as ciências pressupõem a coordenação entre teorias e evidências. Matriz disciplinar é um dos dois termos criados por KUHN (1979b) para substituir a noção de “paradigma”. Neste seu trabalho de 1979 e no posfácio das várias edições seguintes à primeira edição de sua obra mais conhecida, “A Estrutura das Revoluções Científicas”, Kuhn substitui o termo paradigma, ora pelo conceito de “matriz disciplinar”, ora pelo conceito de “exemplares” ou “problemas exemplares”, ao qual eu já fiz alusão na segunda seção deste capítulo. Com isso, Kuhn separou os dois principais e diferentes sentidos que MASTERMAM (1979) havia identificado no uso original da noção de “paradigma”. Kuhn justifica a necessidade de abandonar a noção de paradigma ao reconhecer a validade das críticas de MASTERMAM (ibidem). Curiosamente, e talvez em função da imensa repercussão da “Estrutura das Revoluções

A adoção de uma matriz disciplinar madura e bem estruturada pela maioria daqueles que pertencem a uma dada comunidade permite a concentração de esforços e talentos na resolução de minúsculos enigmas ou “quebra-cabeças”. Essa é uma atividade considerada essencial ao processo de coordenação entre teorias e evidências. Tal prática conduz a um rigoroso ajustamento da matriz disciplinar à realidade, o que precipita o desenvolvimento do conhecimento científico. Uma das conseqüências atribuídas à hipótese da existência da ciência normal é a de que, nesse tipo de prática, o cientista deixa de ser um explorador do desconhecido para articular e concretizar aquilo é virtualmente conhecido ou previsto pela matriz disciplinar, de cujo desenvolvimento e amadurecimento ele participa. A outra conseqüência, e a que mais interessa ao tema desta seção, é a idéia de que a adesão maciça a uma matriz disciplinar impede a proliferação de teorias alternativas.

A idéia de que a proliferação de teorias alternativas é o motor do desenvolvimento das ciências foi chamada de “princípio da proliferação” por Feyrabend (1979). Tal princípio é atribuído por esse autor a Karl Popper e Imre Lakatos, para quem a proliferação de teorias diferentes, destinadas à investigação de um mesmo conjunto de problemas, é a marca do espírito criativo e crítico dos cientistas.

Na perspectiva de Thomas Kuhn, apenas nos períodos de crises é que proliferam teorias diferentes em um campo de pesquisa. Nesses períodos, o poder heurístico das matrizes disciplinares começa a ser posto em dúvida. Isso dá origem à crise e, posteriormente, ao surgimento de novas matrizes em relação às quais são formados novos consensos. O estabelecimento de uma nova matriz disciplinar hegemônica, por sua vez, inaugura um novo período de ciência normal.

Não tenho a intenção de defender a posição de Kuhn (1998) quando ele denomina como pré- científicas as áreas nas quais não se identifica a adoção majoritária de uma matriz disciplinar.

Científicas”, o termo “paradigma” caiu no gosto popular e até mesmo no gosto acadêmico. Embora seu próprio criador tenha parado de utilizá-lo, o termo “paradigma” - que já não continha um significado preciso quando foi criado - passou a ser utilizado nas mais diversas formas, contextos e culturas.

Reconheço, todavia, que ciência normal e proliferação são imagens conflitantes acerca da prática científica.

Nas ciências naturais, acredito ser difícil admitir que - dentro de cada comunidade de especialistas - exista espaço para o surgimento de críticas freqüentes que contestem as teorias observacionais de base e as crenças metafísicas fundamentais que estruturam uma matriz disciplinar promissora. Se isso acontecesse, o trabalho científico se tornaria muito pouco produtivo.

Creio que a tendência ao consenso - que Thomas Kuhn atribui à prática normal das ciências - é realmente um efeito da intensificação da comunicação e até da competição entre grupos de cientistas que lidam com a mesma classe de problemas, no mesmo campo de pesquisa. A esse respeito o físico David Bohm nos diz que:

Por tradição, os cientistas consideram que quando várias teorias parecem dar conta de um mesmo fenômeno só uma delas pode ser correta, o que implica a eliminação das outras ou, quando muito, como aconteceu com a teoria de Hamilton-Jacobi, a colocação de uma delas em posição de subserviência, prestável somente no contexto de certos cálculos (BOHM e PEAT, 1989, p. 78).

A idéia importante que eu defendo aqui é a de que, independentemente da extensão na qual possa se identificar uma prática de ciência normal, não há como descartar sua existência. Nesse tipo de prática ainda existirão processos de argumentação e persuasão, mas eles terão naturezas muito distintas daqueles que se pode conceber e experimentar em períodos de crise ou nas áreas das ciências que se caracterizem pela inexistência de matrizes disciplinares majoritariamente adotadas.

Os processos de argumentação e persuasão tendem a se tornar mais intensos, ou como diz Feyrabend (1979) mais “filosóficos”, quando há várias teorias distintas em competição. Por outro lado, na ciência normal, os argumentos em defesa de proposições factuais, ou de implicações e desdobramentos atribuídos às teorias, girarão em torno de sua coerência com os preceitos que fundamentam a matriz disciplinar.

Latour e Woolgar (1997) não usam o termo matriz disciplinar em sua análise e nem sequer fazem referência ao trabalho de Thomas Kuhn. Ainda assim, vou retomar informações da pesquisa

etnográfica desses autores para caracterizar como ocorrem dinâmicas de persuasão dentro de uma prática normal das ciências. Eles descrevem os cientistas como uma estranha tribo que gasta grande parte de seu tempo em uma frenética atividade literária dividida entre a leitura de artigos de outros autores e a produção dos próprios artigos, que são estruturados em torno dos dados construídos no laboratório pelos aparelhos inscritores35.

Os procedimentos de escrita e leitura dos artigos são caracterizados como operações que mudam o status epistemológico dos enunciados levando-os entre dois extremos: dos fatos aos artefatos, ou vice-versa. Os fatos são tidos como expressões de conhecimento objetivo, enquanto os artefatos reúnem conjecturas já refutadas ou ainda não estabelecidas. As operações de retórica envolvem o uso de expressões qualificadoras para elevar o status epistemológico de um enunciado. Por conseguinte:

A frase que ameaça destruir todos os enunciados (e as carreiras) assume a forma condicional, ‘você também poderia dizer que...’. E segue-se uma lista de enunciados igualmente prováveis. O resultado dessa formulação é muitas vezes a dissolução do enunciado em ruído. Desse modo, a finalidade do jogo é manobrar para obrigar o pesquisador (ou seus colegas) a admitir que os enunciados alternativos não são plausíveis na mesma medida...(...) Em lugar de ser o puro produto da imaginação (subjetiva), ele se tornará uma ‘coisa objetiva real’, cuja existência não poderá mais ser posta em dúvida (LATOUR e WOOLGAR, 1997, p. 274-275).

No processo de produção de novos conhecimentos dentro de uma “prática normal” das ciências não é apenas a partir do campo da retórica que se pode explicar como se introduzem desigualdades em um conjunto de enunciados, fazendo com que um deles seja considerado mais factual que os outros. A principal “técnica” usada para persuadir a comunidade de especialistas, de acordo com Latour e Woolgar (ibidem), seria a de aumentar o custo, para os outros, da sustentação de enunciados alternativos. Esse aumento de custo, tomado no sentido literal da palavra, envolveria o uso de equipamentos cada vez caros e sofisticados para gerar dados que sustentem supostos enunciados alternativos.

Além disso, é fundamental que os equipamentos utilizados na produção desses dados sejam reificações de teorias amplamente assumidas pela comunidade de especialistas. Em outras palavras, dados confiáveis dependem do uso de aparelhos inscritores sustentados por teorias observacionais bem corroboradas. No caso específico da comunidade de especialistas em neuroendocrinologia pesquisada por Latour e Woolgar (ibidem), um espectrômetro de massa foi utilizado para postular a existência de uma substância específica, posteriormente denominada TRF, que passou a ser interpretada como responsável pelo processo de liberação de determinados hormônios.

Outros modos de conceber o processo de liberação ou outros fatores responsáveis por esse processo haviam sido postulados como enunciados igualmente prováveis. Mas, não é fácil pôr em dúvida dados gerados por um espectrômetro de massa. Não se trata de dizer que, por princípio, é impossível contestar uma medida obtida por meio desse tipo de aparelho. O problema é que tal aparelho tem por trás de si uma teoria reificada após décadas de pesquisas básicas em física cuja validade não é colocada em dúvida desde uma longa data.

A possibilidade de questionar o enunciado que afirma a existência do TRF, a tal substância liberadora de hormônios, passa a implicar na contestação da teoria reificada no espectrômetro de massa ou, o que poderia ser ainda mais caro, no desenvolvimento de uma linha totalmente alternativa de pesquisa que implica em conceber e montar laboratórios talvez ainda mais sofisticados do aquele de onde saiu o enunciado que se poderia querer contestar. Na história específica da pesquisa sobre o TRF, o nível de investimento chegou a um ponto que inviabilizou os esforços de grupos rivais em persistir na pesquisa de enunciados alternativos:

Comparada ao que valem oito anos de documentos e um material de um milhão de dólares, a gama dos enunciados possíveis sobre a estrutura do TRF é restrita. O custo da seleção de um enunciado fora dessa gama é proibitivo (LATOUR e WOOLGAR, ibidem, p. 152).

Depois de longos processos de pesquisa empírica, a ausência de qualificadores e recursos de argumentação associados a uma proposição específica é o que eleva seu status, dando a ela o caráter de um fato. De modo simétrico, a existência de operações de argumentação e persuasão indica que um determinado enunciado não corresponde a um fato. Deste modo, um texto ou um

enunciado podem ser lidos como contendo um fato, ou estando submetidos a um fato, quando os leitores têm a convicção de que não há debate a respeito deles. Para se chegar a este ponto, no entanto, “muita água deve passar por debaixo da ponte”.

Até o presente momento, nesta seção, utilizei os conceitos de ciência normal e revolucionária para refletir sobre possíveis diferenças na intensidade com que os cientistas se envolvem em controvérsias. Também procurei assinalar a importância de fatores técnicos que compõem os processos de argumentação e que estão associados à adoção de teorias compartilhadas ou a necessidade de sustentar argumentos em dados de laboratório cuja produção envolve custos e investimentos. Assim, acredito ter me posicionado, minimamente, diante da questão que levantei no início da seção sobre o papel ou a importância relativa dos processos de argumentação na produção do conhecimento científico.

A partir de agora, passarei a me posicionar sobre a possível existência de formas de argumentação específicas da retórica das ciências. Latour e Woolgar (ibidem, p. 222-223) nos oferecem uma série de exemplos de diálogos entre pesquisadores registrados durante suas atividades rotineiras de trabalho. Reproduzirei aqui apenas um dos vários exemplos, que envolve uma conversa entre um cientista mais experiente, Scott, e outro quinze anos mais moço, Jürgen:

Jürgen: Olhe esses números, não está nada mal.

Scott: Hum... Acredite em minha experiência, quando não ultrapassa 100 não é nada bom, é ruído de fundo.

Jürgen: E, no entanto, o ruído parece quase consistente.

Scott: Ele não varia muito, mas com esse ruído não conseguiremos convencer as

pessoas, quero dizer, as pessoas importantes (grifo meu).

O trecho que eu mesmo grifei é uma evidência de que a avaliação dos dados está diretamente ligada a uma operação retórica de persuasão, além de variar com o indivíduo que o interpreta ou com o público para o qual se dirigem os resultados. Mas, também existem aí parâmetros técnicos que fazem parte do conhecimento tácito que se adquire com a prática dentro de uma matriz disciplinar. Desse modo, juntam-se em um único processo, a avaliação da qualidade dos dados estabelecida pela matriz disciplinar e o nível do público para o qual os dados serão destinados

como base de operações de argumentação. Essas são, basicamente, as especificidades dos processos de retórica e argumentação nas ciências.

Na análise que Latour e Woolgar (ibidem) fazem do uso da retórica na interação verbal entre cientistas eles constatam que há similitudes entre as trocas que tomam a forma de conversas no laboratório e aquelas que se passam no exterior. Nada indica que esses intercâmbios ou trocas integrem um tipo de processo de raciocínio radicalmente diferente daqueles que caracterizam os intercâmbios em ambientes não científicos.

Não constitui surpresa a existência de similaridades entre padrões de raciocínio e recursos de retórica utilizados nos empreendimentos científicos e não científicos. Afinal, todos esses empreendimentos são conduzidos por seres humanos, muitas vezes perspicazes e inteligentes. Pensar de outra forma seria dar crédito ao mito que caracteriza o cientista como um indivíduo genial e visionário, com extrema capacidade de raciocínio, muito além daquela dos humanos comuns. De acordo com Perelman e Olbrechsts-Tyteca (1999, p. 08):

As mesmas técnicas de argumentação se encontram em todos os níveis, tanto no da discussão ao redor da mesa familiar como no do debate num meio muito especializado. Se a qualidade dos espíritos que aderem a certos argumentos, em campos altamente especulativos, apresenta uma garantia do seu valor, a afinidade da sua estrutura com a dos argumentos utilizados nas discussões cotidianas explicará por que e como se chega a compreendê-los.

Segundo Emeren, Grootendorst, Kuiger (1987), todo processo de argumentação: (a) é uma atividade social, intelectual e verbal; (b) pressupõe a existência de opiniões divergentes acerca de um tema; (c) tem como propósito a justificação ou a refutação dessas opiniões; (d) coordena um conjunto de informações, questionamentos, proposições factuais e recursos explicativos destinados a fundamentá-los; (e) é dirigido para a obtenção de aprovação por uma determinada audiência.

É apenas essa última característica atribuída aos processos de argumentação que nos permite diferenciar a retórica científica da não científica. Em outras palavras, tal diferenciação não deve ser procurada nos padrões de raciocínio ou recursos de retórica, mas nos valores e na cultura que

distinguem as audiências formadas por cientistas de outras encontradas em outros setores da práxis social.

Isso nos conduz à seguinte questão: que características distintivas têm os valores e a cultura partilhada por especialistas que pertencem a uma mesma comunidade científica e, por essa razão, têm a necessidade e a oportunidade de recorrer à argumentação como recurso de retórica? Chauí (1997, p. 249), parte de um ponto de vista muito semelhante ao de Bachelard para estabelecer uma comparação ponto a ponto entre a “atitude científica” e as características das culturas de senso comum. Segundo essa autora:

Antes de tudo, a ciência desconfia da veracidade de nossas certezas, de nossa adesão imediata às coisas, da ausência de crítica e da falta de curiosidade. Por isso, ali onde vemos coisas, fatos e acontecimentos, a atitude científica vê problemas e obstáculos, aparências que precisam ser explicadas e, em certos casos, afastadas.

Apesar de interessante em seu conjunto, não é de todo correto o ponto de vista que Chauí apresenta no texto citado. Kuhn (1998), com seus conceitos de ciência normal e matriz disciplinar, nos mostra que a ciência não avançaria se a crítica, a curiosidade e a identificação de problemas e obstáculos promovessem um questionamento contínuo e incessante das teorias que permitem a produção do conhecimento científico. Os acordos tácitos e explícitos entre os membros da comunidade regulam o que pode ser questionado e o que deve ser assumido como verdade ou, pelo menos, como hipótese fundamental de trabalho.

Em minha opinião, o conceito que Thomas Kuhn denominou como matriz disciplinar é justamente aquilo que devemos investigar para delimitar a base da cultura científica que permite a um cientista individual, no interior de um laboratório, ou a um grupo de pesquisadores co- autores de um artigo, produzir recursos de retórica adequados à audiência formada pela comunidade de especialistas a que eles pertencem.

A matriz disciplinar inclui uma gama de estratégias concebidas para permitir a produção e a análise de evidências. Do modo como Kuhn (1977) as concebe, essas estratégias não podem ser