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Capítulo III- A natureza das ciências

III.8- Provisoriedade e devir

Quando digo que todas as ciências pressupõem provisoriedade e devir quero afirmar que o conhecimento científico é sempre a resposta a um problema ou a um conjunto de problemas específicos. Assim, novos problemas tendem a exigir novos conhecimentos e, muitas vezes, a revisão de teorias e fatos antes estabelecidos. Pode-se dizer, por essa razão, que a ciência é uma aventura e um desenvolvimento no tempo. Como nos diz Bachelard (1996, p. 17):

O conhecimento do real é luz que sempre projeta algumas sombras. Nunca é imediato e pleno. As revelações do real são recorrentes. O real nunca é ‘o que se poderia achar’, mas é sempre o que se deveria ter pensado. O pensamento empírico torna-se claro depois, quando o conjunto de argumentos fica estabelecido. Ao retomar um passado cheio de erros, encontra-se a verdade num autêntico arrependimento intelectual. No fundo, o ato de conhecer dá-se contra um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal estabelecidos.

AS CIÊNCIAS PRESSUPÕEM Empreendi- mento Coletivo Argumento e Persuasão Imaginação e Modelização Provisoriedade e Devir Autoridade, Reificação e Fatos Múltiplas Linguagens Múltiplas Estratégias Coordenação entre Teorias e Evidências Diagrama III.8

O ponto de visto expresso no texto de Bachelard pode ser defendido desde múltiplas perspectivas. Bronowski (1979, p. 26), por exemplo, destaca o fato de que todo ato de conhecimento é também um ato de criação, para nos dizer que:

Se a tarefa do pintor fosse copiar para os homens aquilo que estes vêem, o crítico faria apenas um juízo: ou a cópia está ou não está conforme. Se a ciência fosse uma cópia do fato, então qualquer teoria estaria certa ou errada, e seria assim para sempre. Nada ficaria para nós dizermos senão: isto é assim ou não é assim. Ninguém que tenha lido uma página de um bom crítico ou de um cientista teórico pode tornar jamais a pensar que esta escolha estéril de sim ou não é tudo o que o espírito

oferece. A realidade não é uma exposição a ser vistoriada pelo homem, com o rótulo ‘Não tocar’. Não há aspectos fotografados, experiências copiadas, em que não tomemos parte. A ciência, tal como a arte, não é uma cópia da natureza, mas uma recriação da mesma.

Pode-se dizer também, tal como Latour e Woolgar (1997) ou Latour (2000), que a realidade produzida pelas ciências é limitada a teias teórico-empíricas que as próprias ciências constroem. Esses autores comparam as ciências a locomotivas que podem percorrer grandes viagens, mas jamais são capazes de andar fora dos trilhos. Desde esse ponto de vista, a realidade extra- laboratório é sempre mais complexa que a realidade produzida pelas ciências. Afinal, no laboratório as situações são simplificadas para que se possam produzir novas realidades. Assim, todas as realidades extralaboratório, nas quais o conhecimento científico se mostra efetivamente útil, podem ser concebidas como “anexos dos laboratórios”.

Esses diversos argumentos levam-nos à conclusão de que a única certeza que possuímos acerca do conhecimento científico é a de que ele é provisório ou, em outras palavras, de que a ciência é devir. Mas, admitindo este ponto de vista, é possível falar em progresso, desenvolvimento ou evolução do conhecimento humano sobre os fenômenos naturais? Os trilhos das ciências apenas se expandem para regiões diferentes ou eles nos levam a lugares melhores? O conhecimento científico progride ou ele simplesmente muda conforme mudam as questões de interesse e as teorias utilizadas para abordá-las?

À primeira vista, parece não haver dúvidas de que o conhecimento científico evolui. Afinal, a ciência é um empreendimento cultural. Alguém, em sã consciência, pode negar que, pelo menos desde a invenção da escrita, os sábios, pensadores e cientistas têm contato com as idéias de seus pares e antecessores ou as utilizam como ponto de partida de seus próprios trabalhos intelectuais? Isso por si só já não garantiria o “progresso” da cultura e do conhecimento científico?

Reflexões mais cuidadosas sobre esse problema sugerem que há mais aspectos a se considerar, além das possibilidades de acumulação de conhecimentos permitidas pelo acesso aos saberes de gerações anteriores que foram registrados através da escrita ou de outros objetos culturais. Vou iniciar uma incursão por essas reflexões a partir das idéias de alguns dos epistemólogos que mais se ocuparam da questão do desenvolvimento do conhecimento científico.

Popper (1975) aborda o desenvolvimento científico como um processo de aproximação da verdade. Ele não acredita que o conhecimento científico possa ser “provado”, alcançando o status de conhecimento definitivo. Em outras palavras, ele não acredita em um conhecimento científico estático. Apesar disso, seu ponto de vista é o de que a mudança científica é um processo racional, que nos leva a alcançar e a produzir teorias melhores.

Para Popper, se as teorias científicas não podem ser provadas, elas podem ser falseadas ou refutadas mediante o confronto com evidências experimentais ou observacionais. Quando isso acontece, são produzidas novas teorias, ainda especulativas e provisórias. Tais teorias precisam explicar o que as teorias anteriores explicavam, além de fazer novas previsões que poderão vir a ser, posteriormente, refutadas. Todavia, pelo menos enquanto tal refutação não ocorre, “o excedente empírico” associado às novas previsões indicará, ainda que virtualmente, para o avanço do conhecimento sobre o mundo natural.

Kuhn (1979a e 1979b) aborda o tema do desenvolvimento científico sob uma perspectiva muito diferente. Ele, como muitos outros epistemólogos que se seguiram a Popper, rejeita a idéia de que tal desenvolvimento possa vir a acontecer mediante um processo de substituição de teorias refutadas pela experiência. Em outras palavras, ele não acredita que teorias possam ser escolhidas mediante testes experimentais capazes de mostrar qual é a teoria mais adequada. Sua resposta ao problema da escolha entre teorias é a seguinte:

Tome-se um grupo das pessoas mais capazes com a motivação mais apropriada; adestrem-se essas pessoas em alguma ciência e nas especialidades pertinentes à escolha em perspectiva; inculta-se-lhes o sistema de valores e a ideologia vigentes em sua disciplina (e numa grande extensão em outros campos científicos também); e, finalmente, permita que eles façam a escolha. Se essa técnica não explicar o desenvolvimento científico como nós o conhecemos, nenhuma outra o fará. Não pode haver um conjunto de regras adequadas de escolha que se possam impor ao desejado comportamento individual nos casos concretos que os cientistas encontrarão no decorrer de suas carreiras. Seja o que for o processo científico, temos de explicá-lo examinando a natureza do grupo científico, descobrindo o que ele valoriza, o que ele tolera e o que ele desdenha (KUHN, 1979b, p. 294).

Apesar de usar o termo técnica na citação anterior, o texto de Kuhn é claro em apontar sua descrença na existência de regras metodológicas, a priori, para a escolha entre teorias. Lakatos

(1979) reconhece as críticas que Kuhn fez à visão do progresso científico proposta por Popper. Assim, ele admite que evidências experimentais não são capazes de refutar teorias. Além disso, Lakatos concorda com a postulação de Kuhn de que a tenacidade, isto é, a capacidade das teorias científicas em conviver com evidências, supostamente refutatórias, é um valor intrínseco às “boas teorias”.

A tenacidade é uma característica atribuída por Kuhn a todas as teorias. Por um lado, a tenacidade está relacionada ao fato de que as teorias sempre têm a chance de incorporar ou assimilar, posteriormente, evidências que se comportavam, a princípio, como anomalias37. Por outro lado, a existência de anomalias só se torna perturbadora quando essas se mostram persistentes e quando novas teorias são postuladas para interpretá-las, colocando-se na perspectiva de teorias rivais àquela teoria, que antes convivia de modo não problemático com as anomalias.

Depois de aceitar as críticas de Kuhn e romper com as teses do refutacionismo ingênuo de Popper, Lakatos decide criticar o ponto de vista de Kuhn e, particularmente, a idéia de que não é possível estabelecer regras para a escolha de teorias. Ele encara a necessidade de estabelecer esse tipo de regras como a manutenção da perspectiva popperiana que crê na existência de um processo racional de desenvolvimento do conhecimento científico. Lakatos, então, se propõe a postular novos critérios que permitam abandonar ou “refutar” teorias, bem como promover a escolha entre teorias rivais, a ponto de afirmar que uma delas é mais promissora. O conjunto de critérios apresentados por Lakatos é designado por ele através do termo “convencionalismo revolucionário”.

Lakatos atribui os germes de seu convencionalismo revolucionário às idéias dos neokantianos, a Poincaré e, finalmente, ao próprio Popper. Os neokantianos são chamados por Lakatos de “ativistas revolucionários”. Ele utiliza o termo “ativistas” para denominar todos aqueles que, em alguma medida, partilham da tese racionalista de que a origem do conhecimento encontra-se no sujeito cognoscente e não no objeto do conhecimento. Segundo Lakatos, aos “ativistas” se contrapõem os “passivistas” que, a exemplo dos empiristas clássicos, acreditam que a origem do

conhecimento é o objeto do conhecimento e não o sujeito cognoscente. Nas palavras do próprio autor:

Os Kantianos, ou ativistas conservadores sustentam que nós nascemos com nossas expectativas básicas; com elas transformamos o mundo em ‘nosso mundo’ mas, depois, temos de viver para sempre na prisão do nosso mundo.... (....) Mas os ativistas revolucionários acreditam que os referenciais conceituais podem ser desenvolvidos e também substituídos por novos e melhores referenciais; somos nós que criamos nossas ‘prisões’e também podemos, com espírito critico, demoli-las” (LAKATOS, 1979, p. 127).

Poincaré é identificado como um “convencionalista conservador”. Lakatos resume a concepção do convencionalismo conservador a partir de uma citação de Poincaré que diz que à proporção que a ciência cresce, a força da evidência empírica diminui. Segundo essa perspectiva, após um período considerável de êxito empírico inicial, os cientistas podem decidir não permitir que a teoria seja refutada. Uma vez tomada essa decisão, resolvem (ou dissolvem) as aparentes anomalias por meio de hipóteses auxiliares. A principal desvantagem desse convencionalismo conservador, segundo Lakatos, é a de nos incapacitar de sair das prisões que nós mesmos nos impusemos.

O convencionalista conservador torna não-falseáveis por decreto algumas teorias universais, que se distinguem por seu poder explanatório, sua simplicidade ou sua beleza. O convencionalista revolucionário toma decisões para demarcar a teoria que está sendo testada do conhecimento de fundo não-problemático. O elemento convencional concentra-se aqui na decisão de conceder – num dado contexto – um status metodologicamente ‘observacional’ ou inquestionável a uma teoria.

Além disso, o convencionalista revolucionário, também chamado por Lakatos de “falseacionista metodológico”, assinala que as convenções acerca do que se considera “teoria sob teste” e “teoria observacional inquestionável” devem ser endossadas pela comunidade científica. Do mesmo modo, a lista de evidências “falseadoras”, aceitas como anomalias, deve ser fornecida pelo veredicto dos cientistas experimentadores.

Todas essas convenções, ou decisões metodológicas, supostamente permitiriam o estabelecimento de uma ‘base empírica’ sobre a qual o conhecimento científico poderia ser erigido e o julgamento de progresso e avanço desse conhecimento poderia ser estabelecido. Se a ‘base empírica’ definida a partir de todos esses consensos colidir com uma teoria, a teoria poderia ser dita ‘falseada’, não no sentido de que está sendo “refutada”, mas no sentido de que será abandonada pelos cientistas.

Considero problemática a tentativa de Lakatos de reduzir à perspectiva metodológica toda a complexa rede de decisões que permitem aos cientistas estabelecer a base empírica das ciências e promover a avaliação de teorias. Esta atitude de Lakatos é decorrente de sua decisão de descartar as contribuições da sociologia da ciência que ele chama pejorativamente de “psicologia das multidões”.

Assim como Kuhn (1977, 1979 e 1998), Feyrabend (1979), Ziman (1979, 1981 e 1996), Latour e Woolgar (1997), Latour (2000), Lacey (1998) e outros, não acredito que existam padrões atemporais e estritamente racionais para explicar a mudança de teorias e o desenvolvimento do conhecimento científico. Em uma nota de pé de página, mas não no texto principal, o próprio Lakatos reconhece as dificuldades práticas da aplicação de seu falseacionismo metodológico ou convencionalismo revolucionário38:

Nossa exposição mostra claramente a complexidade das decisões necessárias à definição do ‘conteúdo empírico’ de uma teoria – isto é, o conjunto dos seus falseadores potenciais. O ‘conteúdo empírico’ depende da nossa decisão sobre as ‘teorias observacionais’ e as anomalias que devem ser promovidas a exemplos contrários. Se tentarmos comparar o conteúdo empírico de diferentes teorias científicas, a fim de verificar qual é o ‘mais científico’, ver-nos-emos envolvidos num sistema de decisões muito complexo e, portanto, irremediavelmente arbitrário a respeito de suas classes respectivas de ‘enunciados relativamente atômicos’ e seus ‘campos de aplicação’. Mas uma comparação dessa natureza só é possível quando uma teoria suplanta outra (cf. ‘A lógica da pesquisa Científica’, de Popper, 1959, p. 401, nota de rodapé nº 7). E mesmo assim pode haver dificuldades (as quais, todavia,

38 Em minha opinião, a oscilação que se pode notar em Lakatos (1979) entre o uso desses dois nomes já e um sinal de inconsistência ou de movimento pendular entre a dimensão convencionalista e necessariamente sociológica de sua epistemologia e a dimensão metodológica e, portanto, “racional”.

não se somariam à irremediável ‘incomensurabilidade’) (LAKATOS, 1979, p. 135 e 136, nota de rodapé 79).

Utilizarei a crítica de Lakatos à idéia de incomensurabilidade – que aparece no final da citação anterior – como uma deixa para introduzir algumas novas contribuições de Thomas Kuhn para o tema que está em discussão. Kuhn é o principal defensor do conceito de incomensurabilidade, que já foi preliminarmente abordado no início da seção em que eu defendi a idéia de que as ciências pressupõem múltiplas linguagens. Naquela ocasião, afirmei que o conceito de incomensurabilidade foi um dos principais critérios utilizados por Popper e Lakatos para afirmar que a epistemologia de Kuhn instituía uma visão irracional do processo de desenvolvimento científico.

Por essa razão, abordarei, num primeiro momento, a discussão sobre o lugar dos aspectos racionais e irracionais nas transformações do conhecimento científico que ocorreram ao longo da história. Para isso, resgatarei e discutirei um texto no qual Paul Feyrabend caracteriza esses aspectos, de modo muito semelhante àquele no qual eu mesmo acredito. Para Feyrabend (1979), pode-se considerar a ciência uma atividade racional no sentido de que somos capazes de explicar alguns dos seus traços em função de razões aceitas no tempo de sua ocorrência, ou inventadas no decurso de seu desenvolvimento. Por outro lado, também podemos considerar a ciência como uma atividade irracional porque:

(...) nem essas razões lógicas que mudam de uma idade para outra bastam para explicar todas as características importantes de determinado episódio. Precisamos acrescentar acidentes, preconceitos, condições materiais (como a existência de um tipo particular de vidro num país e não em outro), as vicissitudes da vida de casados, inadvertência, superficialidade, orgulho, e muitas outras coisas para se obter um quadro completo (Feyrabend, 1979, p. 267).

As tentativas de Popper e Lakatos de extirpar qualquer traço de irracionalidade da atividade científica, que são enfaticamente criticadas por Feyrabend, me fazem lembrar de uma série norte- americana produzida para a televisão, e que fez muito sucesso na minha época de menino, sendo reprisada até hoje. Trata-se da série Star Trek ou “Jornada nas estrelas”, na qual o cientista da expedição, chamado Dr. Spock é caracterizado como um personagem atormentado pela sua

herança humana materna - que o leva a ter, ocasionalmente, emoções, que interferem negativamente em sua capacidade de avaliação “puramente racional”. O tormento desse personagem é o de negar sua natureza parcialmente humana e se apegar a sua herança paterna e extraterrestre que, supostamente, lhe garantiria a capacidade de agir e julgar sob bases “puramente racionais”.

Embora Kuhn (1979b) rejeite veementemente a acusação de Lakatos (1979) e Popper (1979) de que sua concepção do desenvolvimento científico instaura o irracionalismo como base da epistemologia, eu, particularmente, não vejo razão para uma reação tão veemente contra esse tipo de “acusação”. Talvez ela se deva mais à surpresa ou à indignação de ver o princípio da incomensurabilidade ser utilizado como evidência da irracionalidade das ciências.

Em minha opinião, os cientistas não são seres puramente racionais, caso contrário, eles não seriam seres humanos, e nem sequer “meio humanos”, como o Dr. Spock da série Star Trek. Embora a ciência, vista como um todo, ou “vista de longe”, possa e deva parecer um empreendimento em que prevalecem atitudes racionais, isso não deveria nos levar à conclusão de que os cientistas como indivíduos agem de modo estritamente racional nos micro-processos de negociação e de condução da prática científica do dia a dia. Como nos mostram Latour e Woolgar (1997), os cientistas não agem racionalmente quando se trata de disputas entre teorias, carreiras, prestígio ou poder. David Bohm, um dos grandes físicos do século XX, nos apresenta uma contestação ainda mais veemente à tese ingênua que propõe a estrita racionalidade das ciências e dos cientistas. Ele, então, nos pergunta:

E como pode a ciência levar os seres humanos a controlarem-se a si mesmos? Como poderiam os cientistas moderar os ódios e aversões entre as nações, as religiões, as ideologias, se a própria ciência é fundamentalmente limitada e controlada por essas últimas? (BOHM e PEAT, 1989, p. 23).

Para encerrar essa discussão sobre racionalidade versus irracionalidade, eu gostaria de perguntar: Afinal, o que ganhamos ao extirpar todos os aspectos irracionais da atividade científica? Não seria suficiente afirmar que as ciências constituem um gênero da atividade humana, no qual a racionalidade é altamente valorizada, ou como diria Bachelard, exacerbada?

Como argumenta Kuhn (1977), o conceito de incomensurabilidade que passarei a discutir e caracterizar, agora com mais detalhes, não carrega nenhum traço de irracionalidade. Esse conceito, isso sim, liga-se diretamente à questão da continuidade versus ruptura, que está no seio da discussão sobre a evolução ou o desenvolvimento do conhecimento científico.

Quando mudanças radicais ocorrem nas teorias ou matrizes disciplinares utilizadas para guiar a pesquisa científica, fica difícil estabelecer critérios gerais a partir dos quais as teorias que se sucedem podem ser comparadas. Assim, por exemplo, é muito difícil comparar a física aristotélica à física newtoniana, no sentido de afirmar que a segunda destas teorias é superior ou explica todos os fenômenos que a primeira explicava, apresentando, além disso, um “excedente empírico”, ou corrigindo limitações ou “erros” contidos na teoria anterior. O mesmo pode-se dizer quando se compara a física newtoniana com a teoria da relatividade formulada por Einstein39.

Considero correto dizer que a teoria newtoniana é melhor e mais minuciosa do que a teoria aristotélica, no que diz respeito à sua capacidade em responder os problemas para os quais ela foi formulada. A teoria relativística também merece a mesma avaliação quando comparada à mecânica newtoniana. Mas, já que essas três teorias respondem a problemas muito diferentes, pode-se afirmar que elas são, em certa medida, incomensuráveis. A incomensurabilidade é um conceito sutil e relativo. Não pode ser usado na perspectiva do “oito ou oitenta”. Por essa razão, vale a pena falar um pouco mais sobre ele.

Vejamos em primeiro lugar, a afirmação de que a mecânica newtoniana corrigiu “erros” contidos na física aristotélica. Uma das várias limitações da física aristotélica em relação às mecânicas newtoniana e relativística era o conceito de velocidade usado por Aristóteles. Kuhn (1977, p. 293-321) analisa as características desse conceito e descreve as experiências de pensamento formuladas por Galileu para mostrar sua inconsistência em relação à maneira como o próprio Galileu formulava as questões relativas ao movimento. A longa citação que reproduzo abaixo é

39 Piaget e Garcia (1987) comparam as mecânicas aristotélica, newtoniana e relativista para apresentar evidências de evolução cultural e intelectual da primeira a ultima dessas teorias. Como não disponho de espaço, e tendo em vista o modo sofisticado como esses autores elaboram sua análise dessa suposta evolução, decidi não apresentar e nem comentar a comparação que eles realizam.

necessária, tendo em vista que eu dificilmente teria a mesma clareza que o autor para contrapor os conceitos de velocidade de Aristóteles e Galileu, de modo a contribuir para que possamos aprofundar nossa compreensão acerca do conceito de incomensurabilidade:

O conceito de velocidade de Aristóteles, com seus dois critérios simultâneos, pode aplicar-se sem dificuldade à maior parte dos movimentos que vemos à nossa volta. Os problemas aparecem apenas para aquela classe de movimentos, também bastante raros, em que o critério de velocidade instantânea e o critério de velocidade média