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Existe essa tal “natureza das ciências”?

Capítulo III- A natureza das ciências

III.1- Existe essa tal “natureza das ciências”?

Minha pesquisa não teria nenhum sentido se eu não acreditasse na possibilidade de atribuir uma “natureza” às ciências. O título desta seção, portanto, é apenas uma provocação e insinua a existência de controvérsias sobre qual seria a natureza das ciências. É extremamente importante compreender a diferença entre afirmar que não há consenso sobre qual é a natureza das ciências e dizer que a ciência não possui características que a distinguem de outros empreendimentos intelectuais humanos.

Posso afirmar, logo de saída, minha descrença em relação à posição defendida por pensadores relativistas radicais, que insistem na ausência de critérios para distinguir ciência e não-ciência, ignorando até o critério básico ou “supremo” que é o lugar ou a função social das ciências. As ciências são formas especiais de um empreendimento que se distingue de outros empreendimentos humanos, embora certamente se relacionem com eles sob vários pontos de vista.

Se, por um lado, a apresentação e a defesa de um conjunto de imagens das ciências é algo imprescindível em uma tese que discute a necessidade de incluir reflexões sobre a natureza das ciências como conteúdo da educação escolar básica, também é verdade que não é fácil capturar ou atribuir uma “natureza” às ciências. A este respeito, Bachelard (1993) nos diz que a ciência não tem uma natureza estática, mas uma história e um “espírito” que se distingue do “espírito comum” no sentido da especialização, da autocrítica, da consciência dos sistemas conceituais que utiliza e da exacerbação da racionalidade. Feyrabend (1979, p. 265), por outro lado, vai dizer que a dificuldade de caracterização das ciências liga-se, antes de tudo, à sua própria complexidade, ao fato de que ela tem aspectos distintos, e de que não pode ser prontamente separada do resto da história.

Sendo a natureza das ciências algo difícil de “capturar”, quem estaria mais apto para tentar realizar esta tarefa? Os sociólogos? Os historiadores? Os filósofos? Além dos atores já

mencionados, sabe-se que professores, jornalistas e até o grande público fala sobre as ciências. Mas, com que autoridade?

Latour e Woolgar (1997) fazem uma pergunta semelhante a essa ao se proporem a estudar o processo de produção das ciências e não as ciências já sancionadas. Esse não é o projeto dos filósofos e epistemólogos e, geralmente, eles não estão capacitados a falar da ciência conhecendo-a em detalhe ou em primeira mão.

A aparente falta de autoridade de não cientistas para falar, com propriedade, sobre a atividade científica conduz a uma situação perturbadora, bem caracterizada por Latour e Woolgar (ibidem, p. 25) quando eles imaginam o que aconteceria se os políticos ou economistas dissessem que ninguém além dos membros de suas próprias comunidades de especialistas estariam autorizados a falar de política ou de economia. Em relação às ciências naturais, contudo, é isso o que aparentemente acontece:

Os próprios cientistas fazem suas ciências, seus discursos sobre a ciência, sua ética da ciência, suas políticas da ciência e, quando são de esquerda, suas críticas e autocríticas da ciência. Os outros ouvem. O ideal político e epistemológico é que não haja uma palavra da metalinguagem da ciência que não seja tomada dos próprios cientistas.

Decididos a postular sua própria autoridade para caracterizar o trabalho dos cientistas, esses autores buscam legitimar o discurso que eles produzem sobre as ciências expondo todos os cuidados metodológicos utilizados na pesquisa etnográfica que eles desenvolveram. Eu, por outro lado, utilizo uma estratégia diferente para reivindicar o direito de propor uma caracterização da atividade científica. A idéia aqui é a de promover um diálogo entre diversos autores que procuraram nos oferecer uma caracterização da atividade científica dentro da perspectiva pós- positivista que prevaleceu a partir da segunda metade do século XX.

A falta de consenso acerca da natureza das ciências entre os autores que consultei não me impede de dialogar com suas diferenças de opinião ou acusar semelhanças entre suas imagens das ciências. É desse diálogo que surgiram as idéias esquematizadas no diagrama III.1-A. A ideologia das ciências que pretendo desenvolver com o auxílio deste diagrama não estará, obviamente, a salvo de controvérsias. Mas, qual é a metaciência que pode pretender alcançar esta condição?

AS CIÊNCIAS PRESSUPÕEM Empreendi- mento Coletivo Argumento e Persuasão Imaginação e Modelização Provisoriedade e Devir Autoridade, Reificação e Fatos Múltiplas Linguagens Múltiplas Estratégias Coordenação entre Teorias e Evidências Diagrama III.1-A

Sendo dimensões de uma mesma entidade, todos os elementos presentes no diagrama III.1-A estão relacionados uns com os outros. Assim, por exemplo, as linguagens e as estratégias das ciências podem ser entendidas como instrumentos para coordenar teorias e evidências e fornecer os fundamentos dos processos de modelização dos fenômenos naturais, dentro do marco dos valores e compromissos epistemológicos vigentes no interior de comunidades de especialistas, envolvidas em determinados empreendimentos coletivos. No interior dessas comunidades ocorrem os processos de argumentação e persuasão que levam à reificação dos fatos e das teorias que os sustentam. Tanto as estratégias e métodos utilizados nesses processos, quanto seus produtos, exibem a condição de provisoriedade que pode levar à relativização e até mesmo à desvalorização de conhecimentos, que antes haviam alcançado o status de fatos ou “verdades científicas”.

Os elementos do diagrama representam características simultaneamente necessárias a qualquer ciência natural. A retirada de qualquer um deles do diagrama empobrece profundamente qualquer imagem das ciências que possamos vir a constituir. Não direi, a princípio, que essas dimensões representam um conjunto suficiente de características. Outros autores podem reivindicar a inclusão de dimensões ou aspectos que não estão explicitamente mencionadas no diagrama, embora seja provável que eles os percebam contemplados na discussão que farei ao caracterizar melhor cada um deles. A função do diagrama é mediar a interação do leitor desta tese com o texto

deste capítulo, no sentido de criar expectativas que serão possivelmente confirmadas ou confrontadas durante a leitura.

Há, obviamente, outras maneiras geométricas de dispor os itens que aparecem no diagrama. A dimensão Empreendimento Coletivo, por exemplo, poderia aparecer no topo do diagrama. Afinal, os propósitos ou metas das ciências, que estão associados a essa dimensão, constituem para Chalmers (1995) a característica definidora e o principal critério de demarcação entre ciências e não ciências. O diagrama, entretanto, não deve ser confundido com um fluxograma. Ele não apresenta níveis hierárquicos, mas apenas como um conjunto de elementos que se inter- relacionam.

O último esforço que farei antes de dar início às seções nas quais discutirei separadamente cada dimensão atribuída à natureza das ciências pelo diagrama III.1-A, será o de colocar essas dimensões em comunicação com os cinco aspectos da natureza das ciências abordados nos materiais de ensino concebidos para subsidiar o aprender sobre as ciências na experiência de ensino-aprendizagem que constituiu a parte empírica de minha pesquisa. A inclusão destes cinco aspectos resulta em uma fusão entre os diagramas I.1 e III.1-A, da qual surge o diagrama a seguir.

Processo de validação do conhecimento cientifico Propósitos

da ciência

Papel das idéias & evidências nas explicações

Provisoriedade do conhecimento Estratégias usadas para investigar

questões de interesse das ciências AS CIÊNCIAS PRESSUPÕEM Empreendi- mento Coletivo Argumento e Persuasão Imaginação e Modelização Provisoriedade eDevir Autoridade, Reificação e Fatos Múltiplas Linguagens Múltiplas Estratégias Coordenação entre Teorias e Evidências Diagrama III.1-B

É importante frisar que os diagramas III.1-A e III.1-B sintetizam o início de uma resposta ao meu problema de pesquisa, isto é, o início de uma caracterização e defesa do tipo de conhecimento sobre as ciências que, em minha opinião, deve constituir o currículo de ciências naturais na educação básica.

As oito dimensões da natureza das ciências extraídos do diagrama III.1-A e os cinco aspectos originários do diagrama I-1 têm estreitas relações entre si. A dimensão Provisoriedade e Devir é, obviamente, equivalente ao aspecto Provisoriedade do Conhecimento. A dimensão denominada

Coordenação entre Teorias e Evidências está diretamente associada aos aspectos Estratégias usadas para investigar questões de interesse das ciências, Papel das idéias e evidências nas explicações e Processo de validação do conhecimento científico. Este último item, por sua vez,

também está associado à dimensão Argumento e Persuasão, e assim por diante.

Ao apresentar o diagrama III.1-A eu o descrevi como resultado de um diálogo entre diversos autores que se propuseram a investigar ou a refletir sobre a natureza da atividade científica, tendo explicitado o fato de que dialoguei apenas com autores afinados com uma caracterização pós- positivista das ciências. É legitimo, então, perguntar: como tal caracterização se situa dentro da tensão existente entre a tendência à descrição ou à prescrição? Em outras palavras, até que ponto eu estarei descrevendo a atividade científica ou construindo uma imagem deformada para atingir os objetivos educacionais que dirigem meu esforço nessa tese?

Como nos lembra Kuhn (1979b), em resposta a uma crítica dirigida a ele por Feyrabend (1979), a separação entre descritivo e normativo (ou prescritivo) é mais sofisticada e difícil do que se costuma pensar. Kuhn assume que sua caracterização das ciências contém esses dois elementos, mas também assinala que ele começou sua incursão na epistemologia como historiador, não como filósofo. Embora qualquer historiografia das ciências esteja efetivamente impregnada de filosofia, dar a devida atenção à história é um princípio fundamental a ser seguido por qualquer um que queira fazer uma caracterização das ciências que não se limite à perspectiva normativa ou prescritiva.

A atenção que dei em minhas leituras a algumas das contribuições da sociologia das ciências e minha antiga admiração e dedicação à história das ciências me levam a acreditar que o diagrama III.1 não se limita apenas à perspectiva normativa.