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3. A ENCRUZILHADA DO COLONIALISMO, PATRIARCADO, RACISMO E

3.3 A LUTA E ORGANIZAÇÃO DAS MULHERES ATINGIDAS NOS SEUS

3.3.1 Arpilleras: bordando a resistência das mulheres atingidas por

A participação feminina nas revoltas, revoluções e lutas sociais é histórica e datada desde o processo de resistência frente à colonização ibérica e enfrentamento a escravidão no continente latino-americano. No Brasil, a mobilização das mulheres em organizações e movimentos populares perpassou a luta abolicionista, o enfrentamento dos regimes ditatoriais, a luta pela anistia e democracia, a criação de organizações comunitárias e movimentos de bairro

,

grupos de mães, além dos os movimentos de trabalhadores rurais e campesinos (GIULANI, 2015; GONZALEZ, 2020, FONTES, 2021).

As mulheres do campo e da cidade sempre estiveram presentes no cenário de luta por direitos, por melhores condições de trabalho e cidadania. De acordo com Giulani (2015), no final dos anos de 1960, as mulheres protagonizaram diversas iniciativas reivindicatórias, com a destaque, nos centros urbanos, ao Movimento Nacional contra a Carestia; o Movimento de Luta por Creches; O Movimento Brasileiro pela Anistia; e na conformação de Grupos Feministas e Centro de Mulheres. No meio rural, destaca-se a participação das mulheres nos movimentos de luta pela terra, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e nas Pastorais da Terra. Estes espaços de organização permitiam que as mulheres refletissem a respeito do seu papel social enquanto esposa, dona de casa e mãe, além das reivindicações dos movimentos. Giuliani (2015) destaca ainda a

resistência das mulheres camponesas organizadas nos movimentos de ocupação de terra. Segundo a autora, no contexto rural, as mulheres assumem diversas tarefas que envolvem desde os cuidados domésticos, à mobilização ativa em resistência à violência e a organização e manutenção do espaço comunitário dos acampamentos e assentamentos. (SILVA; EUGENIO, 2020, p. 276)

No contexto da jornada de luta das mulheres no dia 08 de março de 2016, meses após o rompimento da barragem de Fundão na região de Mariana-MG, cerca de 1500 mulheres organizadas no Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra ocuparam a sede da mineradora Samarco (VALE e BHP Billiton) e impediram o fluxo da extração de minério através do fechamento das estradas e trilhos de ferro em denúncia aos impactos socioambientais e as violações de direitos nas comunidades atingidas pelo rompimento da barragem de rejeitos de minérios (MONTEIRO, 2016).

Figura 11 – 8 de março de 2016 – Mulheres do MST ocupam a ferrovia da Vale em Minas Gerais

Fotografia: Setor de comunicação do MST.

Além das estratégias já aventadas de participação política e social protagonizada pelas mulheres atingidas, uma das formas de resistência das mulheres contra as barragens foi impulsionada pelo Coletivo de Mulheres organizadas no Movimento de Atingidos por Barragens que resgataram a produção das Arpilleras, apresentadas ao longo desse trabalho, com o objetivo de narrar suas histórias de luta e denúncia dos impactos desses grandes megaprojetos e as violações dos direitos vivenciadas nos seus territórios de origem (ARPILLERAS BORDANDO A RESISTÊNCIA, 2013; FERREIRA, 2018).

As Arpilleras são tessituras de bordado criadas por mulheres chilenas no período da ditadura militar comandada por Augusto Pinochet (1973-1990), em que relatavam seu sofrimento, denunciavam as perseguições, torturas, assassinatos e desaparecimento dos seus filhos, maridos e parentes. Através do suporte artesanal e da arte, as mulheres driblavam a censura e propagavam a sua luta política e social contra o regime ditatorial (FERREIRA, 2018; ALLUCCI, 2019). De acordo com Vital (2008), o bordado possibilitou que as mulheres vítimas da ditadura chilena encontrassem coletivamente similaridades entre as suas identidades, histórias e experiências de sofrimento, perdas e exílio.

Arpillera é uma técnica têxtil que nasceu em Isla Negra no Chile, e o seu nome faz referência ao suporte de pano rústico em que é feito o bordado. Fios, agulhas, crochês, retalhos das roupas dos familiares mortos e desaparecidos, bonecas de pano são alguns dos elementos que compunham a arte costurada à mão pelas mulheres e comercializada em feiras livres. As Arpilleras foram uma ferramenta política de denúncia das violações de direitos e sua tessitura era um ato de transgressão e subversão. Ao utilizar como base o bordado, historicamente associado ao feminino e julgado como inferior e doméstico, as mulheres chilenas quebram diversos paradigmas (VITAL, 2017; FERREIRA, 2018; ALLUCCI, 2019).

São uma técnica têxtil que usa telas montadas em um suporte de aniagem, um pano rústico, grosso, geralmente fabricados em cânhamo ou linho provenientes de sacos de batata ou farinha. Além de uma linguagem latino-americana, as Arpilleras representam precisamente a transgressão e a quebra de todos os elementos tradicionalmente atribuídos à costura, sejam estes simbólicos, estéticos, técnicos e conceituais. (VITAL, 2017, s/p)

Como afirma Allucci (2019), o bordado como ferramenta política traz como elemento central a agulha, enquanto instrumento de denúncia, expressão, união dos pedaços de retalhos que visam contar histórias e cicatrização de feridas históricas. O ato de bordar o sofrimento possibilita a expressão e ressignificação do luto referente as perdas dos familiares torturados, assassinados e desaparecidos pelo regime ditatorial. As histórias de dor e violência se transformam em linhas, lãs, fios, cores, desenhos, simbologias, imagens que, por fim, contarão e registrarão a história individual coletiva em uma obra de arte16.

Os atos de entrelaçar, coser, bordar [...] assumem-se simultaneamente como exercícios de subversão (ao relatar e denunciar desaparecimentos e assassinatos através de formas de expressão associadas a estereótipos de domesticidade e submissão)

16 O bordado é concebido em um lugar inferior no bojo da arte ocidental, que estabelece uma hierarquia que desconsidera determinadas práticas artísticas, sobretudo ligadas as práticas estéticas originárias ou produzidas em um âmbito doméstico e cotidiano por mulheres. O bordado é reconhecido como artesanato, assim como a cerâmica, e mesmo com a recente valorização e preservação do trabalho das artesãs pela UNESCO, ainda há uma divisão valorativa que envolve a produção de arte erudita e popular. Neste sentido, o uso do termo obra de arte para referir-se as Arpilleras é uma forma de contrapor o pensamento ainda vigente, que deprecia e inferioriza o trabalho artístico e artesanal feminino (ALLUCI, 2019).

mas também de cura já que, através da arte há uma sutura/cicatrização das feridas infligidas ao tecido social. (PEREIRA, 2016, p. 44-45)

Os povos originários latino-americanos sempre lançaram mão das técnicas têxteis como elemento importante de transmissão e preservação de valores, costumes, práticas religiosas, rituais, conhecimentos, símbolos e expressão das culturas locais. A tecelagem como atividade histórica no seio da humanidade foi se transformando ao longo do tempo e apresenta as mudanças que aconteceram também no nível socioeconômico e político das sociedades. Como afirma Allucci (2019, p. 3), “Os tecidos e tapeçarias, com seus bordados, tornam-se suportes de narrações nas quais vão-se costurando e entrelaçando acontecimentos, histórias, fábulas e mitos”.

A história contada através das linhas, agulhas e tecidos conformam imagens que narram as histórias de violação de forma crítica e transcendem a linguagem verbal, muitas vezes silenciada pelo sofrimento, sentimento de impotência e dificuldade de elaboração do pensamento (VITAL, 2008; BUSQUETS, 2020).

As imagens ajudam a captar os sentidos ocultos, o não-dito, o que ultrapassa a organização do discurso e do pensamento estruturado o e dessa forma pode ser analisado como parte da dimensão subjetiva das mulheres atingidas por barragens.

Além das narrativas compartilhadas, os desenhos, o posicionamento das imagens, as cores e materiais utilizados revelam características da subjetividade das mulheres que tecem as Arpilleras de forma singular e coletiva.

No Brasil, esta estratégia de auto-organização feminina reuniu os saberes tradicionais partilhados pelas mulheres mais velhas, artesãs e bordadeiras, na criação de obras de arte como estratégia de comunicação, que transcendem a dimensão estética ou econômica para a condição de ferramenta política. Extrapola a vivência singular de forma a construir e registrar coletivamente as memórias das mulheres que vivenciam violações de direitos sistemáticas em territórios explorados pelas grandes empresas de mineração e energia. Vale ressaltar, que “para além de seu conteúdo artístico, social e político, o bordado implica a sobreposição entre a vida das mulheres que o praticam e o produto artístico resultante” (ALLUCCI, 2019, p. 4).

O Coletivo de Mulheres do Movimento de Barragens, instrumentalizado pela experiência chilena, iniciou uma série de oficinas com aproximadamente 465 mulheres

atingidas pelo modelo energético de todas as regiões do Brasil no ano de 2013. De acordo com o MAB (2015), a partir do resgate da experiência de denúncia e registro das violações de direitos humanos desenvolvido pelas arpilleristas chilenas, as oficinas com mulheres atingidas pelo modelo energético visou refletir e explorar as potencialidades da utilização do testemunho têxtil como forma de resistência e construir um dossiê que relatasse e documentasse as violações de direitos e impactos socioambientais e psicossociais do modelo energético e da construção de barragens (BUSQUETS, 2020).

No caso das Arpilleras do MAB, nas mãos das mulheres atingidas, o bordado como testemunho têxtil tornou-se um ato transgressor assim como no Chile. O empoderamento das mulheres atingidas para o trabalho de organização das famílias nas comunidades trouxe para a tela da Arpillera as violações de direitos nos quais os territórios estão submetidos nas construções das barragens. Não se trata aqui de um testemunho com olhar que carrega a imagem do colonizador ou do opressor, trata-se do testemunho de alguém que viu com seus próprios olhos a violência do “paredão de concreto”, da barragem se erguer sobre suas comunidades e territórios, expondo a fragilidade de seus corpos e também do conceito de dignidade, liberdade e igualdade pregados pela Constituição Cidadã de 1988. Só conseguimos entender o cotidiano de uma comunidade ribeirinha se formos sensíveis o suficiente para entendermos a dinâmica do rio que banha essa comunidade, a comunidade é a expressão solida do rio que a banha. Digo isso porque sou ribeirinha e cresci numa comunidade em que o rio fazia parte de sua identidade. Desde que as Arpilleras foram usadas pelas mulheres chilenas para denunciar as violações de direitos humanos na ditadura, elas reivindicam a não associação destes bordados com a arte comum (esteticamente falando), pois a função delas não é expor uma beleza padrão da estética apresentada pelos bordados em geral, são instrumentos utilizados em uma determinada conjuntura histórica para denunciar as violações de direitos em algum lugar histórico que determinados indivíduos estavam submetidos. (FERREIRA, 2018, p. 135-136)

O trabalho de confecção das Arpilleras com as mulheres organizadas no MAB foi realizado em diversos estados brasileiros e reuniu aproximadamente 400 mulheres na produção das 58 telas (BUSQUETS, 2020). Esse processo resultou na organização coletiva, partilha das vivências, comunicação de saberes, consolidação do método de educação popular e feminista, expressão dos diversos sentidos subjetivos e denúncia das violações de direitos em que estão submetidas, à exemplo da violência doméstica, precarização do emprego e renda, prostituição e exploração sexual, dos impactos na

saúde e dificuldade do acesso aos direitos sociais e políticas públicas (RAMOS, 2011;

MAB, 2015; FERREIRA, 2018, BUSQUETS, 2020).

De acordo com Busquets (2020), as Arpilleras foram construídas coletivamente nas oficinas por grupos de 4 ou 5 mulheres que debatiam determinado tema relacionado a sua vivência antes da construção e feitura da peça. Neste momento, munidas de linha e agulha, as mulheres exercitam a atuação política, transformam-se em protagonistas e sujeitas da sua própria história, adquirem novas ferramentas de comunicação, reflexão e ação na realidade, trabalham a confiança, os sentimentos de fraternidade e comunidade, além da socialização e fortalecimento dos sujeitos e coletivos frutos da confecção das telas.

Com a técnica do bordado das Arpilleras como ferramenta de denúncia, proporcionou-se às mulheres atingidas, que são silenciadas em todo o processo de construção das barragens, o papel de protagonistas, de expressarem sua voz e serem ouvidas. aqui pode o subalterno falar, aqui a costura fala (MAB, 2013). Muitas das mulheres que vivenciam diariamente os estragos causados pela barragem tinham suas histórias invisibilizadas pela desigualdade de gênero na sociedade e também nos movimentos sociais. Em verdade, a

“utilização da técnica de bordado no MAB acabou por consolidar uma metodologia de trabalho feminista pouco conhecida no Brasil, uma metodologia de transmissão de linguagem através do bordado”, foi uma experiência que trouxe uma dinâmica de impacto nacional, onde mulheres de vários estados se conheceram através desse novo instrumento de resistência, as Arpilleras. (FERREIRA, 2018, p. 137-138)

O trabalho das bordadeiras foi exposto no Memorial da América Latina em São Paulo no ano de 2015, com a exposição intitulada “Arpilleras: Bordando a Resistência”, e atualmente as obras encontram-se expostas no acervo virtual do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB, 2020). As 24 telas expostas foram organizadas de forma a expressar a pluralidade das violações nos seguintes eixos temáticos: mundo do trabalho, laços comunitários, água e energia, violência e prostituição e acesso as políticas públicas (MAB, 2015; BUSQUETS, 2020).

Durante a exposição foram realizados debates, seminários e rodas de conversa sobre o modelo energético, as violações dos direitos humanos em campos de construção de hidrelétricas e o protagonismo das mulheres como agentes de transformação da realidade. Todas essas atividades contaram com a presença de pesquisadores,

autoridades políticas, agentes da sociedade civil, militantes de outros movimentos, organizações de direitos humanos, organizações feministas, entre outros. Mulheres de todo o Brasil afetadas por barragens vieram de suas comunidades para a culminância do projeto, puderam ver as arpilleras bordadas por elas expostas no Memorial e também trabalharam ativamente em toda a preparação do evento, bem como nas visitas guiadas da exposição. As arpilleristas e militantes se dividiram em pequenos grupos organizados por turnos e faziam explanações a respeito dos bordados contidos na mostra. A exposição contou com 24 telas produzidas pelas mulheres atingidas das mais variadas regiões do país, dentre as obras selecionadas, encontravam-se também arpilleras do MAB Nacional, realizadas na Argentina e nos primeiros encontros destinados à explanação da técnica. Era dado o primeiro passo para que as mulheres se reconhecessem como autoras de suas histórias e sujeitas de direitos.

(BUSQUETS, 2020, p. 164)

As Arpilleras contam histórias, costuram memórias e a identidade das mulheres atingidas, são produções narrativas, mediadoras e facilitadoras dos processos de integração e de rodas de conversas, escuta, trocas de experiências e expressão das emoções. Como afirma Busquets (2020, p. 163), “As arpilleras são uma forma de dizer de outra maneira, implicam em descobrir internamente os efeitos de uma determinada experiência, muitas delas traumáticas, e criar elementos e formas que possam explicitar o que vai no interior”. Vital (2016) aponta o potencial do bordado das Arpilleras como um recurso de ressignificação da identidade das mulheres atingidas, das suas vivências, histórias de vida e relações.

O ato de bordar é em si mesmo a partilha da memória no momento que as mulheres estão bordando, aquecido e reaquecendo a razão uma vez mais por meio da troca de experiências, sentimentos, entendimentos e narrativas, promovidas nas oficinas. E é também produto, quando uma tela nova é finalizada e embebida nas histórias e narrativas que comungam com as perspectivas nascidas no interior da luta. É por meio do bordado que o movimento de mulheres busca levar ao mundo dividido e profundamente marcado pela injustiça, o grito dos excluídos, isso em si mesmo é narrativa materializada.

(BUSQUET, 2020, p. 174)

Ao longo desse trabalho, foram apresentadas algumas fotografias de Arpilleras produzidas por mulheres atingidas por barragens, essas telas ilustram as narrativas, contam histórias dos territórios antes e depois da chegada dos empreendimentos, relatam as sistemáticas violações de direitos e são símbolos da resistência das

mulheres atingidas pelos megaprojetos, vivências que são singulares e também coletivas, pois apresentam pontos comuns que unem e tecem uma dimensão subjetiva própria compartilhada por mulheres de diversas regiões do país.

O bordado das Arpilleras aqui elucidado também se apresenta como um ato de resistência política. As imagens e a estética expressam significados e sentidos e que denunciam a ação do capitalismo racista e patriarcal nos territórios. O espaço de partilha coletiva é um incentivo a organização das mulheres pela luta por outro modelo de sociedade, que assim como as diversas experiencias apresentadas protagonizadas por mulheres em todo continente latino-americano apontam para a construção de um outro modelo econômico e político baseado na defesa da vida, da terra, da dignidade humana, produtor de novas dinâmicas sociais e comunitárias que envolvam a garantia dos direitos das mulheres, dos povos tradicionais e da natureza (BUSQUETS, 2020).

Figura 12 – Participação política das mulheres

Autoria: Mulheres atingidas de Clevelândia, Capanema, Capitão Leônidas Marques, Rio Bonito do Iguaçu, Francisco Beltrão, Honório Serpa. Fotografa: Lunéia Catiane de Souza – Acervo MAB (2020).

4. SUBJETIVIDADE-CORPO-TERRA-TERRITÓRIO: A DIALÉTICA DA SAÚDE