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4. SUBJETIVIDADE-CORPO-TERRA-TERRITÓRIO: A DIALÉTICA DA SAÚDE

real e o imaginário, o físico e o afetivo, o individual e coletivo, o jurídico e o político.

(HAESBAERT 2006; VIDAL, 2012). Como afirma Haesbaert (2006, p. 72), “o poder do laço territorial revela que o espaço está investido de valores não apenas materiais, mas também éticos, espirituais, simbólicos e afetivos”.

Suas lembranças, como as fotografias, objetos que pertenceram a outras gerações da família, as paisagens naturais, tudo foi reduzido à lama. Nos constituímos enquanto sujeitos e, ao mesmo tempo, construímos relações com os outros, dentro de uma dimensão temporal de experiência e existência atrelados a uma dimensão socioespacial. É por meio das relações subjetivas, simbólicas e objetivas que estabelecemos contextos/meios/territórios nos quais nos inserimos e estes arcabouços de referências que constroem parte do que somos e, também, constituem parte da nossa história geracional e cultural. (BARRETO; ROSA; MAYORGA, 2020, p. 4)

Na cosmovisão dos povos originários e comunidades tradicionais, a terra e os rios representam espíritos vivos. A morte de Watu, nome do Rio Doce na língua Krenak, representou a morte do espaço sagrado e em consequência a morte simbólica dos povos indígenas. Como afirmou Geovani Krenak (2015, s/p), “Com a gente não tem isso de nós, o rio, as árvores, os bichos. Somos um só, a gente e a natureza, um só. Morre o rio, morremos todos.” A “Pacha” ou a totalidade representada pela terra diz respeito a um sistema de vida, onde não há separação ou hierarquia entre os seres e a natureza (SÓLON, 2019). Dessa forma, a destruição e impacto ambiental decorrente do rompimento da barragem também impactou diretamente na construção simbólica e no conjunto de valores e crenças das populações tradicionais atingidas.

O Rio Doce possui cerca de 853 km de curso d´água, sendo uma das mais importantes bacias hidrográficas da região sudeste do Brasil. As cidades que dele dependiam para o abastecimento de água, pesca, irrigação de plantações, lazer, entre outras atividades, estão impossibilitadas de fazerem uso da água do rio. Essa situação para os índios Krenaks é emblemática, pois além das atividades de pesca e plantio possuíam uma relação espiritual com o rio (Watu) considerado sagrado. O rompimento de Fundão afetou profundamente a vida de comunidades e cidades que dependiam do Rio Doce para seu sustento, subsistência, lazer e, também, afetivamente. Sendo ainda mais graves e profundos os impactos sobre comunidades tradicionais.

(BARRETO; ROSA; MAYORGA, 2020, p. 7)

A destruição do território socioespacial acarretou na alteração da vida comunitária representada através do modo de vida, relações e vínculos estabelecidos pelos habitantes. Com a mudança das relações comunitárias vivenciadas nos territórios atingidos, o território passa a se reduzir ao próprio o corpo dos sujeitos. No entanto, apesar da desterritorialização e deslocamento provocado pelo rompimento da barragem, os atingidos resistem e reivindicam o restabelecimento das relações interpessoais e com o antigo território através da sua ocupação em momentos de confraternização, cerimônias religiosas ou mesmo visita às ruínas das antigas casas (BARRETO; ROSA; MAYORGA, 2020).

Percebe-se a importância do território enquanto espaço vivido para a constituição subjetiva das mulheres e como constituinte de vínculos sociais que lhes dava suporte. Assim, neste espaço se constroem relações com os outros, dentro de uma dimensão temporal de experiência e existência e atrelados a uma dimensão sócio espacial.

É por meio das relações subjetivas, simbólicas e objetivas que se estabelece com contextos/meios/territórios que se constrói também parte da história geracional e cultural de uma sociedade. Mesmo diante de processos de deslocamento obrigatório de um território para outro, essas memórias/histórias compõem as diásporas e ajudam a manter laços e vínculos culturais de uma comunidade. (ROSA, 2019, p. 199)

A relação entre o território e o corpo das populações atingidas, pode ser relacionada com a concepção de corpo-terra-território formulada teoricamente e politicamente pelo feminismo comunitário, anticolonial, decolonial ou feminismo de Abya Yala17 (CABNAL, 2010; CRUZ, 2015; GAGO, 2020). O feminismo comunitário surge a partir da demanda de construção e reconstrução de uma epistemologia política e ideológica feminista que abarcasse a realidade e as condições de vida das mulheres indígenas, pertencentes aos povos originários de territórios latino-americanos. Esta epistemologia é criada a partir do contexto histórico e busca refletir a condição das mulheres a partir das cosmovisões originárias, dos contextos

17 De acordo com Seabra (2021, p. 36), “Abya Yala, termo cunhado em língua Kuna, e Afroamérica podem ser compreendidas como categorias críticas à contracorrente do imaginário imperial ocidental predominante. (...) Aqui expressam que os megaprojetos não se territorializam de forma aleatória pelos territórios, mas objetivam a pluralidade de mundos tecidos a partir de histórias de opressão racial e também de afinidades culturais e ações políticas de resistência.”

comunitários tradicionais em que vivem essas populações e dos atravessamentos do patriarcado colonial e de origem ancestral em suas comunidades (CABNAL, 2010).

Esta proposta foi elaborada a partir dos pensamentos e sentimentos de mulheres indígenas que se consideram feministas comunitárias, neste caso as aimarás bolivianas de Mujeres Creando Comunidad e as mulheres Xinka que são membros da Associação de Mulheres Indígenas de Sta. María na serra de Xalapán, Guatemala, para contribuir com a pluralidade de feminismos construídos em diferentes partes do mundo, com o objetivo de fazer parte do continuum de resistência, transgressão e epistemologia das mulheres nos espaços e temporalidades, para a abolição do patriarcado original ancestral e ocidental. (CABNAL, 2010, p. 12 [tradução nossa])

Protagonizado por mulheres indígenas feministas, o feminismo comunitário reúne saberes e concepções que estão ancoradas nas cosmovisões das culturas originárias latino-americanas e centrada sobretudo, na concepção de defesa do comum18. De acordo com Gargallo (2013), o feminismo comunitário propõe modelos societais baseados em novas formas de cooperação, solidariedade, distribuição das riquezas, integração e respeito a natureza e todas as formas de vida.

Apesar da defesa e reinvindicação das suas cosmologias originárias como ponto de partida, rejeitam as expressões do patriarcalismo presente em suas culturas através dos resquícios das heranças e imposições coloniais e também dos elementos tradicionais que reforçam o dualismo de gênero e heterossexismo presentes nas cosmovisões indígenas (CABNAL, 2010; GARGALLO, 2013; FEDERICI; VALIO, 2020, GAGO; 2020).

De forma crítica, radical, rebelde e transgressora, com a qual tem sido fundamental dar-lhe vida, a partir do auto-reconhecimento de pensadoras. A partir de nós mulheres indígenas nos assumimos como sujeitas epistêmicas, pois dentro das relações e inter-relações dos povos originários, temos solvência e autoridade para questionar, criticar e propor a abolição e desconstrução das opressões históricas em que vivemos, poderemos contribuir enormemente com as nossas ideias e propostas para a revitalização e recriação de novas formas e práticas, para a harmonização e plenitude da vida. Nossas categorias e conceitos, que até agora continuam sendo construídos e fortalecidos, têm sido elementos fundamentais para podermos propor reflexões tanto dentro dos espaços organizacionais comunitários, das

18 Segundo Federici e Valio (2020, p. 6), “o conceito de comum é entendido para expressar um único ponto de vista com uma concepção específica de espaço, tempo, vida e corpo humano.”

mulheres indígenas, do movimento de mulheres e das feministas.

(CABNAL, 2010, p. 12 [tradução nossa])

O surgimento dos feminismos comunitários na América Latina possui em seu fundamento a histórica resistência campesina, indígena e popular contra o modelo de desenvolvimento e crescimento neoliberal, contra o extrativismo e avanço das grandes transnacionais nos territórios e a defesa da Pachamama (Mãe terra). Além de trazer de forma intrínseca a relação entre o patriarcado, compreendido como a matriz de todas as opressões, o racismo e o capitalismo estruturais das sociedades coloniais (CABNAL, 2010; PRIETO, 2017).

A construção de uma epistemologia feminista escrita por mãos de mulheres do Sul global é ainda uma alternativa ao pensamento feminista hegemônico ocidental, formulado a partir da concepção e dos dilemas das mulheres brancas do Norte global.

Apesar das similaridades da agenda feminista internacional, os processos de subjetivação e desigualdades vivenciadas pelas mulheres indígenas, negras e mestiças oriundas de territórios atravessados pelo colonialismo diferem-se das mulheres brancas dos centros políticos e econômicos mundiais (PRIETO, 2017).

A luta das feministas comunitárias implica ainda na superação do capitalismo, do eurocentrismo, antropocentrismo, etnocentrismo, racismo e do patriarcado em seus territórios, além da construção de caminhos alternativos que envolvem a compreensão do comunitário como um espaço afetivo e político, a ecologia e a economia feminista, o pensamento decolonial e democrático para a transformação social e garantia da sobrevivência de todas as formas de vida na Terra (PRIETO, 2017).

Desta produção epistêmica, política e ideológica é que nasce o conceito político de corpo-terra-território articulado neste estudo. Nesta definição, o corpo é compreendido “como um continuum com a terra, com ambos possuindo memória histórica e ambos implicados igualmente no processo de liberação” (GARGALLO, 2013, p. 227). Nesta concepção elaborada, sobretudo, por mulheres racializadas, ou seja, mulheres não brancas, negras, mestiças e indígenas, afirma-se que os modos de exploração do corpo, violação e espoliação são os mesmos que ocorrem nos territórios colonizados (SEABRA, 2021).

As duas premissas para o uso da categoria são as seguintes: a) Em primeiro lugar, baseia-se na recuperação do trabalho com o corpo como veículo criativo, emancipatório e criador de conhecimentos, um espaço de memórias. Acreditamos que o corpo foi desprovido de sua sensibilidade, sua carne, suas entranhas, suas misérias, suas alegrias e seus prazeres. Portanto, o colocamos no centro de nossos diálogos e metodologias. Desejamos que o corpo fale “de si” e é nesta abertura que encontramos a emergência da rebeldia pela construção de

“outros” mundos possíveis. O segundo princípio é a coletividade, uma base essencial para os feminismos do sul. Acreditamos no postulado da coletivização e entendemos o verbo como a criação conjunta de conhecimento, militância, afetividades e a própria vida. Esse princípio nos leva a criar pontes e articulações com outros movimentos, principalmente de mulheres e feministas, para que em conjunto sejam geradas condições que permitam transformações sociais, políticas e ambientais que perpassam nossa corporeidade, subjetividade e intersubjetividade e a emergência de sujeitos com digna raiva. Esses princípios se convertem em nossas estratégias de ação emancipatória, na atual conjuntura que vivem os países do sul. Nós estabelecemos esses postulados em defesa de territórios - criativos e habitáveis. (CRUZ, 2015, p. 2 [tradução nossa])

Os corpos, compreendidos como territórios vivos e históricos, são valorados, apreendidos e significados de formas diferentes no contexto político e social. A exploração e violência racista e patriarcal sobre os corpos alojados na periferia do sistema capitalista desvelam as contradições do modelo de crescimento econômico que atualiza as práticas da colonização no nosso continente (CABNAL, 2010; CRUZ, 2015; GARCÍA-TORRES et al., 2020).

Essa articulação entre corpo e território, de modo mais amplo, “coloca no centro o comunitário como forma de vida”, permitindo abordar o território em múltiplas escalas, ressaltando a importância “escala mais micro, mais íntima, que é o corpo”, “primeiro território de luta”. O corpo, e notadamente o corpo feminino e de outros grupos dissidentes, revela a concretude de inúmeras “outras escalas de opressões, de resistências: família, praça pública, comunidade, bairro, organização social, território indígena, etc.” (Cruz Hernández, 2017, p. 43). A autora afirma que a concepção “corpo-território” é “uma epistemologia latino-americana e caribenha feita por e desde mulheres de povos originários” e suas posições se encontram dentro do que denomina

“novos olhares ecofeministas desde o Sul”. Assim, muito mais do que um conceito, é uma metodologia para a vida. Isso fica claro em seu

“Colectivo Miradas Críticas del Territorio desde el Feminismo”, criado em 2012. Segundo este coletivo (2017), falar em corpo-território é

“pensar em como nossos corpos estão unidos aos territórios que habitam” (p. 52), o território, a partir das disputas de poder, visto também como “o espaço habitado”, enfatizando que o corpo é o nosso

“primeiro território” (HAESBAERT, 2020, p. 53).

A compreensão de que a exploração que atinge os territórios também atinge os corpos dos sujeitos que o habitam, permite, portanto, relacionar os processos de organização da subjetividade e a condição de saúde, muitas vezes, afetada pela expressão de sintomas físicos e psíquicos, com as elaborações da vivência das populações atingidas em um contexto atravessado pela acumulação capitalista protagonizada pelas grandes mineradoras.

Nota-se através da escuta ativa do sofrimento da população atingida no trabalho de campo desenvolvido durante a pesquisa de mestrado e no acompanhamento de lideranças comunitárias de um território atingido pela mineração, que os índices alarmantes de depressão podem denunciar o sentimento de desesperança e luto pela perda da moradia, do modo de vida, dos direitos e dos espaços comunitários de produção de potência de vida. A ansiedade generalizada e o pânico podem sinalizar o medo de viver sob o risco de uma nova tragédia anunciada.

O estresse pós traumático é ativado diante de estímulos estressores, como as explosões das minas ou mesmo do barulho da chuva que produzem emoções e reativam memórias traumáticas. As dermatites na pele são similares a corrosão que exploração e o contato com os metais pesados promovem na terra, assim como os problemas respiratórios alertam sobre a baixa qualidade do ar, contaminado pela poeira de minérios lançado nas operações.

Os testemunhos que nos dão várias mulheres indígenas e camponesas, serão apresentados hoje para sabermos como os nossos corpos e territórios estão intrinsecamente unidos. Os rios são desenhados nas mãos porque a água passa pelo nosso corpo antes de chegar ao solo. Somos terra como dizia uma companheira. As mulheres produzem bem-estar, conectadas com o coração e o ventre.

A voz das mulheres mostra como quando há conflito, sentimos dores e elas se materializam de forma diferente se somos homens ou mulheres, se somos mulheres urbanas e rurais. As metodologias atravessadas por conflitos de estradas, minas, água contaminada, violência e feminicídios nos mostram que há territórios que estão sendo violados e há corpos que precisam ser cuidados, e nós mulheres sabemos muito disso. Parte do que os depoimentos nos mostram é que se nosso corpo não estiver bem, pouco poderemos contribuir para a luta. Por isso, devemos atentar para a importância de buscar o bem-estar coletivo e individual, reconhecendo que também devemos ser cuidadas. A ideia é resgatar que as lutas pelo território devem ser acompanhadas pelas lutas pelos nossos corpos. (CRUZ, 2015, p. 6 [tradução nossa])

A organização subjetiva que ocorre através da noção de corpo-terra-território indissociados dialoga com o conceito de subjetividade e saúde que se dá dentro do arcabouço teórico da Psicologia Sócio-Histórica, que partilham dos fundamentos epistemológicos, metodológicos e ontológicos decorrentes do materialismo histórico e dialético, e concebe os fenômenos psicológicos enquanto fenômenos concretos, contraditórios e desenvolvidos na historicidade (BOCK et al., 2007).

4.1 A SUBJETIVIDADE E DIALÉTICA DA SAÚDE E DO SOFRIMENTO NA ARTICULAÇÃO COM O CONCEITO DE CORPO-TERRA-TERRITÓRIO

A concepção sócio-histórica pressupõe que o psiquismo humano é forjado a partir da relação dialética entre o organismo e o seu contexto social, ambiental, econômico, político e cultural. A psique humana está em constante transformação e dinamismo, se modifica à medida que os sujeitos promovem ação concreta na realidade e ao transformarem a realidade objetiva, também promovem alterações subjetivas no seu psiquismo (JACQUES et al., 2011).

A partir da adoção do pensamento materialista e dialético, a subjetividade, é compreendida, portanto, a partir da sua relação com base material da sociedade, de forma a romper a dicotomia subjetividade e objetividade, ou a compressão de subjetividade como sinônimo de subjetivismo, mundo interno separado da realidade social ou somente influenciado por ela (GONZALÉZ REY, 2003, 2017).

Neste sentido, a análise da subjetividade a partir de uma concepção sócio-histórica, compreende que a cognição e afetos das populações atingidas são constituídas também a partir da mediação da atividade mineral que ocorre historicamente em seus territórios. O secular contexto de violação e exploração mineral que dão nome inclusive ao estado de Minas Gerais são constituintes da socialização e sistemas de crenças dos sujeitos oriundos dessas regiões, expressos na forma de ser, sentir, se comportar, resistir e agir na realidade.

O psiquismo humano, entendido aqui como a dimensão subjetiva do homem, se expressa e se desenvolve com base nos determinantes históricos, econômicos e sociais. Isto significa dizer que o psiquismo humano não é o mesmo desde o aparecimento da espécie. Ele

também é histórico e podemos falar em uma história de seu desenvolvimento. Mesmo sua base natural, o cérebro humano, se modifica conforme as condições históricas do desenvolvimento do homem. (FURTADO, 1998, p. 33)

De acordo com González Rey (2017), a subjetividade pode ser compreendida como um sistema plurideterminado e complexo, e não só pode ser definida a partir de categorias que operam na lógica do determinismo mecanicista, mas através de um tensionamento constante que envolve processo e organização, continuidade e ruptura, se organiza em múltiplas formas de expressão através de sentidos subjetivos que não estão visíveis ao observador de forma imediata.

É possível pensar a subjetividade como uma tessitura que ocorre de forma dinâmica no interior da realidade social, das condições objetivas e da organização social. Dessa forma, o contexto constitui a subjetividade dos sujeitos, através das configurações subjetivas individuais, mas não apenas, pois também implica subjetivamente nos espaços sociais e estruturas da sociedade (GONZÁLEZ REY, 2011, 2017)

Um dos giros que o arcabouço de uma psicologia cultural-histórica trouxe para definir a subjetividade dentro de uma nova perspectiva foi justamente o seu deslocamento de um espaço íntimo do indivíduo e a sua especificação como qualidade de um psiquismo que transcendeu a sua natureza individual para qualificar um nível gerador em que as emoções se organizam em produções simbólicas que não respondem ao vínculo com o externo do imediato vivido, convertendo-se em produções subjetivas consubstanciais com um novo sistema de produções humanas que, com o tempo, tem sido designado sob o conceito de cultura. (GONZÁLEZ REY, 2011, p. 32)

A partir deste pressuposto, González Rey (2017) formula o conceito de subjetividade social, que se apresenta através dos ensinamentos da cultura expressos nas representações sociais, das crenças, concepções morais, hierárquicas, a respeito de papéis sociais, mitos, regras, costumes, e significados compartilhados pelo coletivo em determinado momento histórico. A subjetividade social forja e atravessa os diferentes ambientes, instituições públicas e privadas e contextos societais e se expressam através dos discursos e produções de sentidos compartilhados.

Mantemos o conceito de subjetividade para explicitar um sistema complexo capaz de expressar através dos sentidos subjetivos a diversidade de aspectos objetivos da vida social que ocorrem em sua formação. Esse conceito nos permite transcender a taxonomia de categorias pontuais e fragmentadas que historicamente tem sido utilizada pela psicologia para referir-se a comportamentos concretos nas diversas esferas da vida do sujeito. Historicamente, a divisão dos diferentes campos no interior da psicologia tem sido delimitada pelo uso de categorias diferentes que, mais do que explicar sistemas qualitativamente distintos, apenas descrevem comportamentos concretos distintos e específicos de atividades humanas também diversas. A subjetividade como sistema permite-nos transcender tal fragmentação, bem como permite-nos representar um sistema cujas unidades e formas principais de organização se alimentam de sentidos subjetivos definidos em distintas áreas da atividade humana.

(GONZÁLEZ REY, 2017, p. 19)

Similar ao conceito de subjetividade social, Bock e Gonçalves (2009) apresenta o conceito de dimensão subjetiva da realidade, ou seja, a síntese das condições materiais de determinada realidade social com o conjunto de sentidos, significados, representações e interpretações a respeito da mesma, formulada de maneira individual e coletiva pelos sujeitos. Baseia-se no pressuposto que a relação entre subjetividade e objetividade, indivíduo e sociedade são relações dialéticas e não dicotômicas. A subjetividade individual se constitui em um determinado contexto sócio-histórico e objetivo, da mesma forma que a realidade social se constrói no processo histórico, através da ação do sujeito sobre a realidade. Dessa forma, a relação entre sujeito e sociedade é de constituição mútua, com determinações que não estão na aparência dos fenômenos e mediações que compõe a própria relação.

(BOCK; GONÇALVES, 2009).

Entende-se dimensão subjetiva da realidade como construções da subjetividade que também são constitutivas dos fenômenos. São construções individuais e coletivas, que se imbricam, em um processo de constituição mútua que resultam em determinados produtos que podem ser reconhecidos como subjetivos. Os produtos subjetivos têm o mesmo caráter social, processual e dialético de constituição da subjetividade. É preciso reconhecer a existência de produtos subjetivos “sociais” e abordá-los da mesma forma. A subjetividade não se esgota em seus elementos individuais: o indivíduo age sobre o mundo, relaciona-se, realiza, objetivamente, o que elaborou subjetivamente. (BOCK; GONÇALVES, 2009, p. 143-144)

De acordo com Furtado (1998), a dimensão subjetiva da realidade possui caráter dialético e interacional entre a realidade política, econômica e social e as diversas configurações subjetivas produzidas pelos sujeitos. A dimensão subjetiva da realidade apresenta o acúmulo cultural e histórico de determinado povo, e pode ser reconhecida através do seu sistema de crenças, valores, hábitos, costumes, rituais, representações sociais, ideologia, leis, regras e mitos, ou seja, em diversos produtos coletivos que contemplam os sujeitos e suas subjetividades (BOCK; GOLÇALVES, 2009).

Os produtos objetivos e subjetivos que compõe a dimensão subjetiva, emergem a partir da sua aparência e pseudoconcreticidade (KOSIK, 1978). Como afirma Furtado e Svartman (2009), a compreensão da base concreta da dimensão subjetiva da realidade se dará através de determinado repertório social que agirá na compreensão dos fenômenos. O mesmo acontece com o processo de trabalho no capitalismo, quando alienado torna-se aparente somente a relação de consumo e não a relação de produção e suas determinações.

A relação que produz o campo de significados é a relação de consumo, e não a relação de produção. Essa é a base concreta das dimensões subjetivas da realidade e o repertório social disponível é o que garantirá a compreensão possível do fenômeno vivido. Apesar disso, a relação de produção é a relação básica, mas é ocultada no processo de alienação. (FURTADO; SVARTMAN, 2009, p. 103)

Este fenômeno fica mais ilustrativo, quando se analisa a realidade afetada pela exploração mineral na região de Minas Gerais. O rompimento da barragem de Fundão na região de Mariana, alterou a dimensão subjetiva da realidade local. Estabeleceu um marco temporal no território, um antes e depois do acontecimento, que produziu novos sentidos, crenças e representações a respeito da realidade nos diversos territórios afetados pela construção de barragens de rejeitos e atividade mineral.

Anteriormente ao desastre-crime, a presença das mineradoras e das barragens próximas as comunidades eram percebidas de forma naturalizada e reificada, significada como “um Deus”, tendo em vista que atividade mineral é desenvolvida nesses territórios de forma secular. O discurso da geração de empregos, a contribuição dos impostos que agregam na receita para as cidades e investimento nos equipamentos e projetos locais prevalecia e integrava o cenário de uma aparente

relação amistosa entre mineradoras e moradores. Os conflitos e resistência histórica de organizações e lideranças locais sempre existiram, no entanto, após o rompimento da barragem de Fundão e da barragem de Córrego do Feijão em Brumadinho, a contradição da exploração mineral torna-se mais explicita, o que interfere no imaginário local a respeito da presença e relação de confiança com as mineradoras.

Meu avô, minha mãe e meu pai, minha família, falavam assim: “Olha, lá em cima tem um monstro. E se um dia esse monstro romper, ele acaba com tudo que tá aqui embaixo, ele destrói tudo que nós levamos ano para construir, ele mata os nossos”. Na época se falava que era uma represa que tinha lá em cima, que ela era um monstro. Eu escutava meu avô falando assim. O rio ficava todo vermelho, sujo direto, os peixes boiavam no rio. O pessoal falava assim: “ó! a Samarco soltou minério lá em cima hoje". Eu tenho quarenta e três anos, eu era pequenininha. Eu cresci ouvindo isso. A gente não sabia de nada. Quando veio o primeiro mineroduto, passou dentro da comunidade de Gesteira, arrasou as comunidades, a comunidade toda. Quem tinha plantação de milho, feijão, passavam em cima de tudo, destruía tudo, e a gente não tinha direito nenhum. Porque a gente não sabia o que era o direito, que a gente tinha direito de ter direito.

Pra nós, a mineradora era deus. Nós não éramos nem o anjo. “Ah, a gente era o anjo do processo”. Não! Nem o anjo a gente não era ninguém. Mas aí mal sabia o meu avô que, treze anos após a sua morte, a profecia se cumpriu, né? É destruiu realmente. O monstro tava lá em cima. O monstro tinha vida. O monstro se rompeu. Aquilo que ele contava não era um conto, não era um mito. Realmente este malvado deste monstro estava lá. Igual este monstro estava lá, têm outros monstros lá em cima, que a gente não sabe o que vai ser do futuro. E têm outros monstros em outras comunidades. O monstro tem vida, o monstro é ganancioso, o monstro é capitalista. [Simone Silva, moradora atingida de Gesteira e Barra Longa (SILVA, 2021, p. 44)]

Com o rompimento da barragem, significada como “monstro” pelo avô de Simone, tornam-se explícitos processos até então ocultos ao conjunto majoritário da população, como falhas nas condições de monitoramento e segurança, os mecanismos de controle utilizados pelas empresas, a morosidade para o pagamento das indenizações e a reparação integral, a cooptação e atuação ineficaz do poder público e as sistemáticas violações de direitos das populações atingidas. Estes processos vivenciados pelas populações agregam novos conteúdos e conjuntos de sentidos e significados a determinada realidade, que operava com seus processos de exploração naturalizados.