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A tendência endoreconstrutora de conceitos em Spinoza é desde logo motivo suficiente para suscitar um mínimo de desconfiança perante a integração de um elemento regulador nas suas definições de direito de natureza. E ao embrenharmo-nos na análise do significado desse direito de natureza spinozano, cedo se comprova quão longe de uma qualquer irrazoabilidade se encontra a dita desconfiança. Sem dúvida é consueto o emprego da noção de regra em não apenas um sentido, podendo significar um critério de medida, um levantamento estatístico médio, um princípio distintivo de uma estrutura, ou uma prescrição obrigatória, consoante o contexto em referência e o objecto referido. Quando o âmbito de aplicação da regra é dito ser a natureza, esta multiplicidade de sentidos é preservada, e quando a regra da natureza é tida por direito natural, a sua tendência tradicional aponta-a sempre como prescritiva obrigatória. Mas em Spinoza uma ontologia do necessário natural exige a edificação primacial de um outro sentido, que o próprio empreende, mesmo sem a supressão do sentido mais tradicional. É que a regra em Spinoza também não é unívoca ao significar-se, mas assume igualmente um ou outro sentido consoante o contexto em que está inserida, até numa mesma obra. Contudo, ao verter para uma outra via o conceito de natureza, Spinoza vê- se levado a reverter também para uma outra via a regra reputada como referindo-se-lhe. E isto ocorre em simultâneo com a palavra lei1, a qual partilha de tal maneira esta característica com a regra que ambas tornam-se legítimas substitutas uma da outra: eis porque regra e lei se equivalem no contexto spinozano e a análise de uma acarreta a análise da outra, ao ponto de no TP ambas integrarem par a par as referências ao direito de natureza – leges seu regulas2.

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Seria fútil aqui uma listagem exaustiva de todas as ocorrências, nos seus vários sentidos, das palavras regra e lei nos textos spinozanos, não só por não vir a servir aqui qualquer propósito relevante, mas também por ter já sido eficazmente realizado esse trabalho. V. E. Giancotti-Boscherini, Lexicon Spinozanum, vol. II, pp. 636-647 (quanto a lex), e pp. 919-920 (quanto a regula). Note-se apenas, a título de exemplo, que as Cartesii regulae motus (Ep. XXXII, G IV, p. 174) não se assemelham às rationis humanae regulae (E IV P18 Sch, G II, p. 222), nem às regulae hebraicae Grammatices (TTP, IX, G III, p. 137) ou às leges et regulae motis et quietis (TTP, VII, G III, p. 102). E que a lex divina vel Dei (E V P41 Sch, G II, p. 307) não é a mesma que as leges patriae (TTP, Praef, G III, p. 12), que as leges mechanicae (Ep. XIII, G IV, p. 67) ou as leges imaginationis et intellectus (TIE, G II, p. 18).

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O mesmo não sucede já com uma outra noção muitas vezes equiparada à regra e à lei, a de norma. É verdade que esta partilha com aquelas a característica de uma multiplicidade de significados consoante o contexto integrado, sobretudo o sentido estático do que seja o homem numa vertente estatística que define a normalidade, ou o sentido dinâmico (prescritivo) que aponta um ideal a realizar, segundo as formulações de Georges Canguilhem3. Porém, em Spinoza a norma nunca é referida à natureza, e ademais tende a perder essa dupla relevância canguilhemiana para adquirir uma outra, a de critério e a de aferição da verdade como medida de si mesma, sentidos aliás nem sequer incluídos no tratamento da regra ou da lei.4 Em conformidade com o disposto, não surpreende sequer que a palavra norma não emirja uma só vez no TP, a obra de Spinoza que talvez mais se preocupe, no seu capítulo II, com a explicitação do que seja o direito de natureza, e que trata da temática política, aquela mais frequentemente percebida como arrastando consigo a inevitabilidade de um horizonte prescritivo. Logo, não só se pode concluir que um estudo do direito de natureza em Spinoza não acarreta uma análise da norma, como também um dos seus sentidos predominantes, com uma relevância menor na regra e na lei, se desliga das menções spinozanas à naturalidade – a medida estatística definindo o normal não pode ocupar posição alguma na noção de direito de natureza.

Ora, tradicionalmente, tanto a regra como a lei são mencionadas a título prescritivo, enquanto padrões de procedimento incidindo apenas sobre as partes da natureza concebidas como humanas, incidência previamente exterior a essa humanidade. Elas constituem então a prescrição, a afirmação de um valor positivo ausente da definição de humano mas enquadrável na sua actividade existencial, fazendo com que a valoração positiva do humano particular dependa da conformidade deste a essa positividade afirmada. Desta maneira, a

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«On a souvent noté l’ambiguïté du terme normal qui désigne tantôt un fait capable de description par recensement statistique – moyenne des mesures opérées sur un caractère présenté par une espèce et pluralité des individus présentant ce caractère selon la moyenne ou avec quelques écarts jugés indifférents – et tantôt un idéal, principe positif d’appréciation, au sens de prototype ou de forme parfaite. Que ces deux acceptions soient toujours liées, que le terme de normal soit toujours confus, c’est ce qui ressort des conseils mêmes qui nous sont donnés d’avoir à éviter cette ambiguïté […].» É esta a maneira com que G. Canguilhem inicia o seu “Le normal et le pathologique” [1951], pp. 155-6, sendo exactamente no mesmo tom que G. Le Blanc e P. Sévérac iniciam “Spinoza et la normativité du conatus, lecture canguilhémienne”, 2002, pp. 121-137.

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Note-se aliás a ausência de um elenco relativo à norma no Lexicon Spinozanum de E. Giancotti-Boscherini, 1970. J. Lagrée, in “Spinoza et la norme du bien”, 2002, p. 116, nota 3, tenta suprir sem pretensões de exaustividade essa lacuna, notando que norma sempre se refere à verdade como medida de si mesma, ou como critério aferível de algo (treze ocorrências no TIE, sempre no sentido de norma veritatis, apresentando três vezes esta expressão (G II, p. 26 e 29), 9 vezes a expressão norma ideae verae (G II, pp. 15, 16, 17, 18, 28, e 32), e uma vez a expressão norma ideae datae Entis perfectissimi (G II, p. 16); sete ocorrências no TTP, uma vez no sentido de norma miraculi (G III, p. 84), três vezes no sentido de norma Scripturam interpretandi (G III, pp. 116, 117, 134), uma vez no sentido de verbum Dei pro norma habere (G III, p. 164), e duas vezes no sentido de norma fidei (G III, p. 174); e quatro ocorrências na Ética, sempre referindo-se à verdade, enquanto norma veritatis (E I App, G II, p. 79; E II P43Sch, G II, p. 124) e veritas norma sui (E II P43 Sch, G II, p. 124)).

prescrição não é mera afirmação de valor positivo, mas uma exigência ininterrupta ao humano de direcção da sua existência para essa positividade que se afirma. A prescrição neste sentido é portanto obrigatória, pois ela não prevê somente um valor positivo a cumprir perante condições precisas, mas inclui também um “operador de comando” que exige ou solicita o efectivo cumprimento desse valor, enriquecendo assim uma mera avaliação proposicional com as características de uma finalidade prática. Regra e lei são então acepções primariamente prescritivas, conceptualizando-se numa perspectiva deôntica: é isto o que sucede na Torah hebraica, no nomos grego, na lex romana5, e nas subsequentes considerações sobre a naturalidade do direito, quer em versão estóica, cristã, jurídico-romana, escolástica, ou já moderna6. Não ocasiona isto que o direito de natureza seja exclusivo do deôntico,7 nem tão pouco que o deôntico se torne característica exclusiva nas regras ou leis naturais: simplesmente, quaisquer outros sentidos tornam-se subalternos deste, ao ponto de serem apenas tomados como sentidos metafóricos partilhando uma qualquer característica com a prescrição. É isso mesmo a que alude Francisco Suárez quando, a propósito da lei, afirma que

Portanto, à eficácia da virtude divina e à necessidade natural […] chama-se

metaforicamente lei […]. E de acordo com este mesmo sentido costumadesignar-se a

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No contexto hebraico, a palavra Torah, que pode significar lei (em especial o Pentateuco) ou instrução, tem como raiz primitiva o verbo yarah, que significa “fluir como água” ou “lançar em transição”, ou simplesmente indicar, apontar, impelir. No contexto grego, releva sobretudo a distinção imposta a partir de Antifonte entre physis e nomos, a primeira referindo-se à necessidade da natureza, a segunda referindo-se ao convencional deôntico (v. M. H. Rocha Pereira, Hélade, p. 292). No contexto romano, basta que se atente no que diz Papiniano: «Lex est commune praeceptum» (in Justiniano, Digesta, I.3.1, vol. I, p. 11).

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Exemplificando. Aqui próximo do estoicismo, Cícero: «[…] doctissimis viris […] idem definiunt, lex est ratio summa insita in natura, quae iubet ea, quae facienda sunt, prohibetque contraria. […] Quod si ita recte ducitur […] a lege ducendum est iuris exordium.» [os homens sábios… além disso definem a lei como a suprema razão, inserida na natureza, que julga o que deve ser feito e proíbe o contrário. … Pois assim se diz rectamente que… o começo do direito deve ser encontrado na lei.], De Legibus , I, 6 (18-9), pp. 316-8. Pelo cristianismo, v. Mt 22, 34-40, em que Cristo recita o Schemá Israel (Dt 6, 4-5) na resposta à pergunta por um legista fariseu de qual o maior mandamento (entolê) da Lei (nomos): no versículo 40, o entolê chega a ser considerado o fundamento do nomos (en tautais tais dusin entolais holos ho nomos krematai kai hoi prophêtai [destes dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas]), o elemento sem o qual se não pode concebê-lo; v. também Mc 12, 29-33, Lc 10, 25-28, Jo 13, 33-35. Pela Escolástica, Tomás de Aquino: «lex quaedam regula est et mensura actuum, secundum quam inducitur aliquis ad agendum, vel ab agendo retrahitur» [a lei é uma regra e medida de actos, segundo a qual se induz alguém a agir ou se retrai alguém de agir], Summa Theologiae, Iª-IIae q. 90, art. 1. Pela Modernidade, v. Hobbes: «law is a just statute, commanding those things which are honest, and forbidding the contrary», A Dialogue between a Philosopher and a Student of the Common Laws of England, EW IV, p. 25.

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Basta lembrar a tripartição do direito que Michel Villey parece reelaborar a partir da tripartição grotiana, opondo um secundário entendimento prescritivo do direito natural, de herança judaico-cristã, a um primário entendimento do direito enquanto ordem objectiva de justiça, juste partage, seguindo o dikaión aristotélico que Tomás de Aquino recuperará. V. M. Villey, La formation de la pensée juridique moderne [1968], pp. 125-7. No sentido contrário, não vendo aí qualquer oposição mas sim uma compatibilização contínua entre essa tradição judaico-cristã e a aristotélica-tomista, v. J. Finnis, Natural Law and Natural Rights, 1980, p. 228, e B. Tierney, The Idea of Natural Rights. Studies on natural rights, natural law, and church law, 1150-1625 , 1997, pp. 22-6.

inclinação natural por meio do nome lei, quer porque é a medida da obra para a qual

induz, quer porque existe por causa da lei do Criador.8

Contudo, a ênfase pode ser ainda colocada por tradição sobre uma outra perspectiva da regra e da lei, aquela que as menciona a título descritivo, desviando o campo de investigação que tais conceitos integram da deontologia para uma pura ontologia. Neste sentido, elas são o registo através do qual as essências são afirmadas, a descrição do ser e das maneiras do ser acompanhando o fazer-se do ser. Logo, não só não são prévias ao ser mesmo, como não envolvem a exigência de um valor positivo atingível, uma vez que o valor positivo que agora é afirmado está já incluído na definição daquilo que cada coisa é, e essa essência não é senão a afirmação da positividade a que respeita, isto é, a descrição do próprio ser, todo o ser, e não só o humano. Este registo descritivo é portanto a maneira de inteligir o necessário, e determinar o como de todas as modificações do ser.

O duplo revestimento destes conceitos, com um ou outro sentido consoante o contexto em que se inserem, parece transparecer em Spinoza logo na abertura do capítulo IV do TTP, em referência à lei, sem que aí pareça haver a preeminência de um sentido sobre o outro.

A palavra “lei”, tomada em sentido absoluto, significa aquilo em conformidade com o qual cada indivíduo, ou todos, ou alguns de uma mesma espécie, agem de uma certa e determinada maneira. A lei depende, ou [vel] da necessidade da natureza, ou [vel] da decisão do homem. A lei que depende da necessidade da natureza é aquela que deriva necessariamente da própria natureza ou definição da coisa; a que depende de uma decisão humana, e à qual se chamaria com mais propriedade direito, é aquela que os homens, para viver mais segura e comodamente, ou por outro motivo qualquer,

prescrevem a si mesmos e aos outros.9

O uso da expressão “vel…vel…” parece aqui apontar mais para uma alternativa entre o ôntico e o deôntico, caso em que ambos terão um valor similar independente. Spinoza, porém, mais adiante no mesmo capítulo, menciona a perspectiva ôntica da lei como constituindo um seu campo não originário:

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«Efficacia ergo divinae virtutis et necessitas naturalis […] per metaphoram appellatur […]. Et iuxta hanc etiam significationem solet inclinatio naturalis legis nomine significari, vel quia est mensura operationis ad quam inducit, vel quia est ex lege conditoris.», De Legibus ac Deo Legislatore, I, I, 2, vol. 1, p. 12.

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«Legis nomen absolute sumptum significat id, secundum quod unumquodque individuum, vel omnia vel aliquot ejusdem speciei, una eademque certa ac determinata ratione agunt; ea vero vel a necessitate naturae, vel ab hominum placito dependet. Lex, quae a necessitate naturae dependet, illa est, quae ex ipsa rei natura sive definitione necessario sequitur; ab hominum placito autem, et quae magis proprie Jus appellatur, est ea, quam homines ad tutius et commodius vivendum, vel ob alias causas, sibi et aliis praescribunt.», TTP, IV, G III, p. 57 (DPA, p. 179).

No entanto, como a palavra “lei” parece aplicar-se metaforicamente às coisas naturais, e visto que, de costume, só se entende por lei uma ordem que os homens tanto podem

executar como desrespeitar […].10

Parece então seguir Francisco Suárez, o que acarretaria a primazia do deôntico sobre o ôntico, tratando-se de direito11. Repare-se no entanto que Spinoza menciona “parece aplicar-se” [applicatum videtur] e “de costume” [communiter], estando ele portanto a tratar não da natureza mesma da lei ou do seu significado primordial, mas tão só do sentido próprio em que comummente é entendida a lei – o prescritivo. Com efeito, poucas linhas antes o leitor do TTP deparara-se pelo contrário com uma espécie de fortalecimento da perspectiva ôntica:

E embora eu sustente sem qualquer reserva [quamvis absolute concedam] que todas as coisas são determinadas por leis universais da natureza a existir e a agir de uma certa e determinada maneira, ainda assim [tamen], afirmo que estas leis dependem de decisão

dos homens.12

Atente-se no uso da expressão quamvis absolute concedam: quamvis [embora] sublinhando a expectativa por Spinoza de a sua alternativa enunciada poder vir a suscitar no leitor alguma descrença, por o ôntico poder vir a acarretar a supressão do deôntico; absolute [sem qualquer reserva] sustentando a ilimitação e o carácter omni-inclusivo da lei por necessidade natural, isto é, acarretando a sua aplicação a todo o ser, também portanto ao humano, aquele único em relação ao qual se pode falar de prescrição deôntica; e o uso de tamen [ainda assim] reflecte que Spinoza não está preparado para deixar de abordar uma dimensão deontológica da lei, a qual, sendo limitada e exclusiva, refere-se apenas a parte do ser descrito por necessidade natural, ou seja, a sua valoração nunca acarreta a supressão da dimensão ontológica da lei, mas exige-a, enquanto que pelo contrário esta pode ser percebida sem a intervenção daquela. Logo, em rigor, a alternativa que abriu o capítulo não é senão uma ilusão semântica, uma vez que o ôntico não envolve ausência, e o deôntico só é aferível enquanto cumulado ao ôntico, tomando este então primazia sobre aquele.13 Em Spinoza, portanto, a prescrição tem de ser

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«Verum enimvero, quoniam nomen legis per translationem ad res naturales applicatum videtur, et communiter per legem nihil aliud intelligitur quam mandatum, quod homines et perficere et negligere possunt […]», TTP, IV, G III, p. 58 (DPA, p. 180).

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«[…] ab hominum placito autem, et quae magis proprie Jus appellatur […]»,TTP, IV, G III, p. 57 (DPA, p. 179). V. nota 9.

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«Et quamvius absolute concedam, omnia ex legibus universalibus Naturae determinari ad existendum et operandum certa ac determinata ratione, dico tamen, has leges ex placito hominum pendere.», TTP, IV, G III, p. 58 (DPA, p. 179).

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G. Belaief, Spinoza’s Philosophy of Law, 1971, p. 11, reconhece aqui nem tanto uma alternativa de sentidos, mas sim uma autêntica ambiguidade na noção spinozana de lex, a qual aliás se desequilibra a favor da lei entendida como comando em detrimento do seu entendimento enquanto “regulação de comportamentos”. No mesmo sentido, v. B. Dejardin, Pouvoir et impuissance. Philosophie et politique chez Spinoza, 2003, p. 216. Nenhum dos dois, contudo, se preocupa com uma explicitação destas passagens no TTP que parecem contrariar tal posição. J. Wetlesen, The Sage and the Way. Spinoza’s Ethics of Freedom, p. 332, pelo contrário, reconhece

entendida também pela ordem da necessidade natural, e é isso o que ele encetará nas linhas seguintes do TTP, as quais se completam na definitiva construção ontológica do necessário, presente na Ética.

Que a prescrição só pode ser assimilada à regra ou à lei quando expressa um certo grau de exigência, isto é, quando a sinonímia a identifica com a imperatividade, é uma consideração partilhada entre a maneira como a tradição a concebe e a maneira como Spinoza a concebe. Contudo, o estatuto dessa identificação está longe de qualquer traço de univocidade. Ainda antes de Spinoza, aliás, é possível discernir duas fontes distintas da imperatividade de uma lei: trata-se do debate entre “voluntarismo” e “intelectualismo” legalistas (expressões introduzidas por historiadores do direito já no século XIX), uns tomando a motivação formal da exigência de conformação de uma lei como sendo a expressa revelação da vontade de alguém em autoridade na forma de comando14, outros como sendo um princípio racional formulável que conduz algo a um estado reconhecido15. Outros ainda reconhecem uma necessidade cumulativa de ambas as fontes: assim, para F. Suárez, por exemplo, a lei natural reflecte as duas características da natureza de Deus, o seu juízo racional sobre as coisas e a sua vontade de imposição ao criado do resultado desse juízo16; e Hobbes, também, entende as leis naturais como conclusões de um processo de intelecção racional que

primazia semântica à perspectiva prescritiva obrigatória da lei, e primazia ontológica a uma perspectiva descritiva da lei: distinção aceitável, aliás, que tende a irrelevar o semântico na busca da compreensão do que seja a lex.

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Trata-se afinal do «displacement of Reason in favour of will», nas palavras de M. Oakeshott, “Introduction to Leviathan”, in Hobbes on Civil Association, p. 63. São os casos de Salomon Ibn Gabirol (Avicebron) e de John Selden. Quanto ao primeiro, v. H. Rudavsky, “Matter, Mind, and Hylomorphism in Ibn Gabirol and Spinoza”, pp. 207-235; quanto ao segundo, v. R. Tuck, Natural Rights Theories, pp. 93-5. Um dos mais usados exemplos de “voluntarismo” legalista é o Grotius do De Jure Praedae, que afirma na abertura dos seus Prolegomena: «Quod Deus se velle significarit, id jus est.» [O que Deus quer fazer conhecer, isso é o direito.], De Jure Praedae, Prolegomena, pp. 7-8. B. Tierney, The Idea of Natural Rights, p. 327, nota contudo que não há uma ausência da razão no De Jure Praedae, pelo que o “voluntarismo” de Grotius é paralelo ao seu “intelectualismo”. Deve no entanto salientar-se que o “voluntarismo” é sobretudo displacement of reason, e não an absence of reason.

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Dir-se-ia que é Tomás de Aquino quem mais parece favorecer um displacement of will in favour of reason. Para Aquino, o enunciar define-se como a razão que enuncia, mas a lei define-se como a razão que impera, como o que revela uma via a seguir (independentemente da sua formulação positiva ou negativa, comandando ou proibindo); neste sentido, não será concebível uma prescrição não imperativa, toda a prescrição é deôntica. «Respondeo dicendum quod, sicut enuntiatio est rationis dictamen per modum enuntiandi, ita etiam lex per modum praecipiendi.» [Respondo dizendo que, tal como a enunciação é um ditame da razão enunciando algo, assim também a lei o é prescrevendo algo.], Summa Theologiae, Iª-IIae q. 92, art. 2. A razão contudo não adquire ainda validade paralela e independente à vontade de Deus em Aquino: a “hipótese impiíssima” é-lhe ulterior.

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Cfr. K. Haakonssen, Natural Law and Moral Philosophy. From Grotius to the Scottish Enlightenment, 1996, pp. 22-3, e J. B. Schneewind, The Invention of Autonomy, 1998, pp. 74-5. Desta maneira ainda mais se compreende por que, para Suárez, os sentidos não prescritivos das leis naturais são apenas metafóricos, enquanto regras ou leis da Natureza instituídas por um Regulador ou Legislador Supremo. B. Tierney, The Idea of Natural Rights, 1997, p. 100, avança a tese de esta mescla entre “voluntarismo” e “intelectualismo” em Suárez ser uma herança já presente na obra de William de Ockham; no sentido de uma tendência mais “voluntarista” de Ockham, cfr. J. Kilcullen, “Natural Law and Will in Ockham”, 2001, pp. 851-882.

se legalizam quando são impostas por alguém numa posição de autoridade17. Spinoza porém afasta-se por completo desse debate: a prescrição começa por ser um juízo enunciativo, o qual apresenta características suficientes para suportar um processo mental que lhe imporá uma qualidade imperativa. A prescrição é portanto um enunciado que é feito conquistar imperatividade, isto é, o deôntico não é dado no ôntico mas emerge a partir dele: dir-se-ia em