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Sendo a essência de Deus omni-inclusiva do ser e do existir não ao jeito de uma uniformidade estagnada, mas numa dinâmica sequencial de causalidade que permite identificá-la com a potência de Deus, então toda a produtividade integra a auto-produção de Deus. Por isso mesmo é que, no ensejo de sublinhar uma justaposição do ontológico ao causal, Spinoza inicia a Ética com a definição de causa sui, como se pretendesse afirmar que “tudo o que se segue é uma história da causalidade de Deus”.

A produtividade causal conecta-se com qualquer concepção do ser ao ponto da identificação mútua, enquanto expressão de tudo o que é e compõe a natureza: toda a essência explana-se numa lógica própria que é a sua definição, e esta envolve por inerência uma sequência necessária de causa para efeito onde intervêm a essência e as respectivas propriedades.197 Assim, aí onde houver produtividade, enquanto auto-produção de Deus ou

195

Neste sentido, v. D. Den Uyl,Power, State and Freedom. An interpretation of Spinoza’s political philosophy, 1983, pp. 7-10, que porém vê a natural law em Spinoza como descritiva de uma regularity of nature, e não de todo inscritiva; G. Lloyd e M. Gatens, Collective Imaginings, 1999, pp. 107-9; ou ainda M. Walther, in “Die Transformation des Naturrechts in der Rechtsphilosophie Spinozas”, 1985, pp. 77-8, e especialmente in “Philosophy and Politics and Spinoza”, 1993, p. 55, onde se lê: «there is no deontology in Spinoza, neither in his ethics nor in his political theory. What there rather is, is an explanation of the genesis and the functioning of normative projections of what one or of what a society wants to be. And it is just via those imaginative projections that the real acting force of a society and of its members is enforced. […] the notion of a self- validating normative order, be it morally or juridical, is but a fetish.» Se ainda, em Spinoza, a uma maior naturalidade do direito possa ser correspondida uma identificação da justiça, toda a filosofia de Spinoza será então o delinear de uma estratégia de obtenção do justo, constituindo-se, como afirma J. Lagrée, numa “philosophie de l’exigence sans qu’il s’agisse pour autant d’une philosophie du devoir” (in “Spinoza et la norme du bien”, 2002, p. 110).

196

J. Miller, in “Spinoza and the Concept of a Law of Nature”, pp. 263-8, aponta sim quatro características das leis naturais em Spinoza (e não as nossas seis): uma primeira, a de serem necessárias; uma segunda, a de serem necessitantes, por não causarem por si só os eventos naturais a que respeitam, carecendo de algo mais; uma terceira, a de serem determinantes e sem excepções; e uma quarta, a de terem importância prática. Quanto à primeira e à terceira características apontadas, elas parecem óbvias. Quanto à segunda, parece que J. Miller pensa ainda as leis naturais em Spinoza como anteriores à realidade da natureza e estabelecendo condições de causalidade, mas não sendo elas mesmas afirmações de necessidade causal. Quanto à quarta, parece que J. Miller apresenta ainda alguma dificuldade em distinguir entre leis naturais inscritivas e o mecanismo de funcionamento das leis prescritivas enquanto construções da imaginação – estas sim, em rigor, de importância prática em Spinoza.

197

«[…] ex data cujuscunque rei definitione plures proprietates intellectus concludit, quae revera ex eadem (hoc est, ipsa rei essentia) necessário sequuntur» [da definição dada de uma qualquer coisa, o intelecto conclui várias

causalidade entre coisas naturais, haverá também a verdade da essência, ou seja, a causalidade é a chave que permite abrir o espesso bloco do fundamento do que é: o causal é a razão de ser de tudo o que há, pelo que é também uma lógica do ser. Eis porque o conhecimento da essência exige a intervenção do elemento causal198: a causa não é apenas a origem do efeito, mas também o seu fundamento ôntico, a justificação da presença do ser. Causa seu ratio199 – causalidade e ontologia consumam-se na realidade e na lógica de um mesmo expressar-se da natureza, numa identificação válida e inquebrantável em qualquer plano deste expressar-se, ou, por outras palavras, características ambas de um mesmo ordo.200 Portanto, se as leis naturais são o registo da inscrição em Deus de toda a essência, elas serão também a marca de toda e qualquer sequência de necessidade envolvendo a essência, seja enquanto resultado existente ou enquanto dedução das características próprias do ser. Este amálgama das leis de uma natureza à estrutura da sua necessidade é ostentada explicitamente por Spinoza:

Da necessidade de apenas a natureza divina, ou (o que é o mesmo) das leis de apenas

essa mesma natureza, seguem-se, absolutamente, infinitas coisas.201

As leis da natureza e as resoluções da sua necessidade são “o mesmo”. Averiguar então o que seja uma lei natural exige a descoberta do desenrolar das determinações da necessidade natural, isto é, o reconhecimento das especificidades da causalidade.

Bem se sabe desde Trendelenburg202 que o tratamento divisionário da causalidade por Spinoza é sobretudo uma herança de Franco Bürgersdijck, por intermédio do seu discípulo A. Heereboord (autor cuja obra Spinoza conhecia bem, citando-o algumas vezes nos CM), que rejeita a tradicional tetrapartição aristotélico-escolástica das causas substituindo-a por uma partição mais detalhada de um primeiro género de causa que subsume qualquer outro.203

propriedades, as quais na realidade dela (isto é, da própria essência da coisa) se seguem necessariamente], E I P 16 Dem, G II, p. 60.

198

V. E I Ax IV, G II, p. 46.

199

V. E I P11 Dem II, G II, pp. 52-3.

200

A tese de S. Paul Kashap, Spinoza and Moral Freedom, 1987, pp. 117-125, que distingue entre causas e razões, tomando as primeiras como mecanismos de realização próprios do atributo extensão, e as segundas como princípios de desenvolvimento lógico próprios do atributo pensamento, não faz portanto qualquer sentido. Toda a causalidade está na essência de Deus, cujos atributos, embora mutuamente autónomos, expressam Deus pela sua natureza, pelo que em todos os atributos haverá também expressão da causalidade de Deus. Neste mesmo sentido, v. M. L. Ribeiro Ferreira, A Dinâmica da Razão na Filosofia de Espinosa, 1997, p. 286.

201

«Ex sola divinae naturae necessitate, vel (quod idem est) ex solis ejusdem naturae legibus, infinita absolute sequi», E I P17 Dem, G II, p. 61.

202

V. Historische Beiträge zur Philosophie, IIIer Band, pp. 316-398.

203

F. Bürgersdijck apresentara a sua doutrina das causas na obra Institutionum Logicarum Synopsis (1645), mas esta apenas se celebrizou pelo tratamento que dela fez A. Heereboord, em Hermeneia Logica seu Explicatio Synopseos Logicae Burgersdicianae (1650), e especialmente em Meletemata Philosophica (1654), obra que Trendelenburg denuncia como sendo bem conhecida por Spinoza e a fonte primeira das citações de Heereboord presentes em CM, II, 12, G I, p. 279. V., quanto a isto, M. Gueroult, Spinoza, I-Dieu, 1968, pp. 245-6, nota 7. A propósito do conhecimento de Heereboord por Spinoza, v. a interessante (mas pouco suportada

Aristóteles fizera do conhecimento das causas e dos princípios (archai) o alvo constitutivo da sophia, a qual, não sendo ela mesma produtora, poiética,204 chegava a dividi-las em quatro tipos: a causa material, substrato do qual provém originariamente a coisa-efeito, como o material-bronze causa da estátua-em-bronze; a formal, essência afirmando-se em definição que inclua todas as propriedades que lhe dão unicidade; a eficiente, anterioridade imediata que impele todo o movimento ou mudança; e a final, propósito para que tudo tende, que, imiscuindo-se na forma essencial da natureza, constitui por si só a razão de ser intrínseca a cada coisa.205 Heereboord, contudo, seguindo Bürgersdijck, assume que a presença da causalidade exige incondicionalmente eficiência e finalidade, sendo que esta é sobretudo a motivação ou o fundamento da consecução da eficiência, pelo que a causa final apenas metaforicamente constitui um movimento sucessivo de causa para efeito206: causalidade é portanto eficiência, e a causa dita eficiente é muito superior (praestantissima) a qualquer outro género207, ao ponto de todo o género ser-lhe enfim subgénero. A causa eficiente é divisível então em nove destes subgéneros:

I. Causa procreativa, que marca a passagem ao ser do causado e que se institui como a origem incipiente de algo; causa conservativa, que não é mais incipiente mas continuada e que produz a permanência no ser daquilo que passara ao ser pela causa procreativa, não sendo senão a causa que preserva o que há;

II. Causa emanativa, em que entre a causa e o efeito não intervém qualquer causalidade intermédia, a causa e o causado sendo um só e resultando o efeito apenas e necessariamente do mero posicionar-se da causa. Os efeitos desta causa são então aquelas propriedades que, quando retiradas, não permitem sequer que a essência da coisa seja concebida, e muito menos enquanto causal, como ocorre por exemplo no calor enquanto propriedade do fogo. E causa activa, em que o efeito se dá não da mera colocação da causa, mas requer uma

documentalmente) tese de M. Gullan-Whur, Within Reason. A Life of Spinoza, 2000, pp. 106-110, segundo a qual Spinoza chegou a ser aluno de Heereboord numa sua eventual passagem pela universidade de Leiden, conhecendo até alguns dos seus textos inéditos.

204

Cfr. Aristóteles, Metafísica, 981b25-982b10, pp. 3-5, e também Ética a Nicómaco, 1141a15-20, pp. 119-120.

205

Cfr. Aristóteles, Física, 194b16-195a27, e também Metafísica, 983a24-983b6, pp. 7-8.

206

V. Heereboord, Meletemata Philosophica, disp. XXIII, pp. 264-5. M. Gueroult, Spinoza, I-Dieu, pp. 245-8, nem sequer menciona a presença da causa final em Heereboord, provavelmente por não integrar o quadro da causalidade eficiente.

207

actividade intermédia entre a causa e o efeito, havendo então três elementos de produção, a causa, a causalidade e o causado – ocorre por exemplo quando o calor do fogo aquece algo exterior ao fogo.208 Da causa activa diz-se poder ser tanto procreativa como conservativa, mas a causa emanativa é apenas conservativa, pois o procreativo exige sempre actividade intermédia, caso contrário não haveria passagem ao ser, o ser estando sempre já posto. Mas quando a causa procriativa produz uma causa emanativa, à relação entre a causa procriativa e o efeito da causa emanativa chama-se refultantia.

III. Causa imanente, em que o efeito é produzido nela mesma, isto é, a causa e o efeito imputam-se a uma mesma entidade, que é assim tanto agente como paciente de si própria; causa transitiva, em que o efeito é produzido fora dela mesma, agente e paciente sendo entidades distintas. Assim, a transitividade exige três condições, (a) que a causa produza sempre o efeito in alio, (b) que o agente causal seja sempre distinto (dissimilis) do paciente causado, e (c) que haja uma conjunção entre o paciente causado e o agente causal que force aquele a ser concebido só com a produção deste. Quanto à imanência, ela ocorre também quando entre a causa e o efeito surge uma actividade intermédia de produção (por exemplo, o intelecto é causa imanente das ideias por si pensadas, mas não causa emanativa, pois entre o intelecto-causa e a ideia-efeito ocorre uma actividade intermédia, a intelecção), pelo que causa emanativa e imanente não coincidem plenamente entre si, tendo em comum apenas a identidade do agente e do paciente num mesmo centro de imputação – logo, se toda a causa emanativa é imanente, nem toda a causa imanente é emanativa. IV. Causa livre, que não é determinada exteriormente a ser causal, respeitando sempre um juízo da razão; causa necessária, aquela integrando o jogo de determinações próprio de um mundo regendo-se por relações de causalidade, a que Heereboord chama de “necessidade da natureza”.

208

Esta distinção é sobretudo uma herança escolástica, estando já presente em Tomás de Aquino enquanto causalidade secundum esse e causalidade secundum fieri (Summa Theologiae, Iª q. 104, art. 1, co): o fogo surge como causa secundum esse do calor, e a cessação da causa acarreta a cessação do efeito; o construtor surge como causa secundum fieri da casa, e a cessação da actividade do construtor não acarreta a cessação da casa. A exigência de uma actividade intermédia na causa activa é também o solo específico que Aristóteles identificara já como receptivo à aparição do movimento. V. Aristóteles, Física, 201a10-201b15, onde surgem aliás os mesmos exemplos.

V. Causa por si (per se), em que o efeito surge da sua natureza ou de um apontamento da razão; causa por acidente (per accidens), em que o efeito surge sem qualquer dependência da sua natureza ou de um apontamento da razão. VI. Causa principal, em que o efeito surge sobretudo em razão daquela causa; causa menos principal, que se divide em três, (a) procatarctica, enquanto aquilo que extrinsecamente incita a causa principal à sua produtividade, (b) proegumena, enquanto aquilo que internamente dispõe a causa principal à sua produtividade, e (c) instrumental, enquanto aquilo a que recorre a causa principal na sua produtividade.

VII. Causa primeira, que é causa do efeito sem a ocorrência de uma causa anterior para a sua produtividade daquele efeito; causa segunda, que produz o efeito apenas na ocorrência de uma causa anterior para aquele efeito.

VIII. Causa próxima, em que o efeito dela resulta directamente; causa remota, em que o efeito é produzido com recurso a um intermediário, pelo que a causa emanativa nunca pode ser remota.

IX. Causa total, que produz vários tipos de efeitos, os quais constituem uma unidade que remonta àquela origem causal; causa parcial, que produz um tipo de efeitos, os quais constituem parte de um todo unitário cujas outras partes têm outras causas.209

Spinoza, por seu turno, parece retomar sem reservas no seu Tratado Breve a divisão por Heereboord da causa eficiente, partindo-a embora em oito partes210, sem menção da causalidade procreativa ou conservativa: e isto porque, por um lado, Spinoza não segue tanto Heereboord nesta temática pelos Meletemata Philosophica, mas mais pela Hermeneia Logica (que reproduz o quadro de Bürgersdijck, no qual se não incluem as causas procreativa e conservativa), e porque, por outro lado, ao buscar um entendimento da causalidade enquanto

209

V. Heereboord, Meletemata Philosophica, disp. XII-XXII, pp. 225-264.

210

«Aangezien men dan gewoon is de werkende oorzaak in agt deelen te verdeelen [...]» [Uma vez que é costume dividir a causa eficiente em oito partes], KV, I, 3, G I, p. 35.

(auto)produtividade de Deus, esse primeiro par subgenérico da causa eficiente é o único em que nenhuma das alternativas se adequa ao Deus de Spinoza, pois se a essência de Deus impõe a própria presença em si da eternidade211, não pode acarretar qualquer incipiência, não sendo causa procreativa, e se Deus cumpre-se na sua produtividade, que é assim auto- produtividade, toda a causalidade não é apenas um mero conservar do que já seja, mas é também o próprio constituir-se de Deus em contínuo, não sendo então causa conservativa que se limite a preservar o seu ser-posto. Assim, pelo Tratado Breve, Spinoza aplica esta chave conceptual à decifração das características da causalidade real de Deus. Deus é sobretudo eficiência, e esta eficiência é especificável: Deus é em simultâneo causa emanativa, pois as propriedades da sua essência presentificam-se enquanto efeitos numa consecução lógica, e causa activa ou eficiente, pois a actividade do fazer-se e tudo o que é efeito está e é concebido só na essência existente de Deus, não havendo aqui qualquer alternativa, emanação e eficiência coincidindo; Deus é ainda causa imanente, e não transitiva; causa livre, e não natural, por natural entendendo-se aqui a imposição de uma natureza externa, evitando assim Spinoza a dicotomia de Heereboord entre liberdade e necessidade; causa por si, e não por acidente; causa principal do que faz resultar imediatamente, tendo na sua perfeição a causa menos principal proegumena, e não sendo causa menos principal procatarctica, pois nada tem de extrínseco, nem causa menos principal instrumental, que ocorre só nas coisas particulares; causa primeira ou inicial, e não causa segunda; causa universal, enquanto não requer qualquer causa particular para ser omniprodutividade; causa próxima das coisas infinitas e causa remota das coisas particulares.212

Na Ética, contudo, a exposição da causalidade de Deus é depurada não só em virtude de um desenvolvimento conceptual do Deus spinozano, mas também por instituição da geometria do texto. Deus é apresentado como causa também com o recurso a alguns dos subgéneros de Heereboord em posições e com justificações distintas, ao longo da parte primeira. A abordagem frontal da causalidade dá-se com a proposição XVI:

Da necessidade da natureza divina devem seguir-se infinitas coisas em infinitos modos (isto é, tudo o que possa cair sob um intelecto infinito).213

211 Cfr. KV, I, 1, G I, p. 15, e também KV, I, 4, G I, p. 37. 212 Cfr. KV, I, 3, G I, pp. 35-6. 213

«Ex necessitate divinae naturae, infinita infinitis modis (hoc est, omnia, qua sub intellectum infinitum cadere possunt) sequi debent.», E I P16, G II, p. 60.

Esta proposição, que Spinoza assume ser quase evidente por si mesma214, permite por si só uma primeira e tríplice qualificação em termos heereboordianos de Deus enquanto causa. Em primeiro lugar, Deus é causa eficiente de todas as coisas (corolário I)215: a eficiência é a primeira característica da causalidade de Deus, e em rigor não poderia ser de outra maneira, perante o disposto já em Heereboord e no Tratado Breve. Eficiência aqui não surge como mero indicador sinonímico da causa activa que se opõe (em Heereboord) ou se identifica (no Tratado Breve) com a causa emanativa, o que ocorrera no Tratado Breve quando Spinoza utilizara a causa eficiente (werkende oorzaak) para designar tanto a causalidade de Deus divisível em oito partes, como a própria causa activa – pelo contrário, eficiência aqui é a característica por excelência da causalidade, não seguindo definitivamente a indicação aristotélico-escolástica, mas sublinhando que a causalidade é toda a sequência da natureza de Deus enquanto necessária, isto é, por a essência de Deus envolver necessariamente a sua existência, toda a produtividade essencial e existente é a produtividade mesma de Deus, a efectivação da natureza, Deus divinizando-se eficiente. E a validade desta proposição XVI para as essências e para as existências é precisamente o que dispensa Spinoza de referências a Deus como causa emanativa e causa activa: M. Gueroult menciona que as expressões emanativa e activa desaparecem na Ética por ser abolida a distinção que as justificava, embora elas permaneçam implicitamente, a primeira na forma de consecução lógica, na proposição XVI (pelo verbo sequi), e a segunda na forma de acção conducente a um resultado, na proposição XVII (pelo verbo agit)216; no entanto, esta é uma explicação pouco satisfatória, não só porque a distinção que as justificava fora já abolida no Tratado Breve, e não obstante as expressões marcam aí ainda presença, mas também e sobretudo porque, essência e existência estando ambas nessa necessidade da natureza de Deus da qual tudo se segue, não faz sentido afirmar que uma produção por acção (existente) não esteja já incluída na proposição XVI. A eficiência é a natureza mesma da causalidade, e em Deus tanto as propriedades seguindo necessariamente das essências como as realidades seguindo necessariamente das existências constituem a natureza produtiva de Deus – emanação e actividade tornam-se designações obsoletas.

Em segundo lugar, Deus é causa por si, e não por acidente (corolário II)217. Spinoza negligencia assim a ordem de exposição dos vários subgéneros de causalidade utilizada por

214

«Haec Propositio unicuique manifesta esse debet, si modo ad hoc attendat [...]» [Esta proposição deve ser manifesta a cada um, se apenas atentar nisto], E I P16 Dem, G II, p. 60.

215

«[...] Deum omnium rerum [...] esse causam efficientem.», E I P16 Cor I, G II, p. 60.

216

V. M. Gueroult, Spinoza, I-Dieu, p. 251.

217

Heereboord ou no Tratado Breve. Mas não o faz arbitrária ou levianamente. Fá-lo sim porque, sendo a causa por si aquela em que o efeito surge pelo mero posicionar-se da sua natureza, dependendo dessa natureza, ela remete para essa sequência da necessidade divina que é apanágio da proposição XVI. E esta justificação é aplicável também à qualificação da causalidade que surge explicitamente em terceiro lugar, a de que Deus é absolutamente causa primeira (corolário III)218: pois se tudo o que é e pode ser concebido está em Deus (proposição XV), e segue por necessidade da sua natureza (proposição XVI), nada pode haver anterior a Deus, caso contrário haveria algo que se não “seguisse” da sua natureza, mas que a “precedesse”, contrariando a proposição XVI. Ademais, a própria proposição XVI, mencionando os efeitos da causalidade de Deus como «infinitas coisas em infinitos modos», «tudo o que possa cair sob um intelecto infinito», não deixa lugar a que algo seja ou exista que não tenha Deus por causa, pelo que implicitamente Deus não pode ser tido como causa parcial do que quer que seja219: Spinoza não torna explícita esta característica da causalidade de Deus, no que seria talvez um quarto corolário à proposição XVI, porque se o fizesse estaria simplesmente a repetir-se.

Muito embora da proposição XVI apenas por si só nenhum outro subgénero se retire no imediato, quando tomada em consonância com o que a precedera a propósito da natureza de Deus, espaço é aberto a que uma nova proposição surja com legitimidade equivalente. É que já no corolário primeiro à proposição XIV fora estabelecida a indiscutível clareza (clarissime) da unicidade de Deus – entendida como ausência de exterior –, ainda antes da abordagem essencial e existencial da sua produtividade: e não é senão isto o que traz a proposição XVII, a saber, a introdução definitiva de uma tal unicidade na produtividade sequencialmente necessária da natureza de Deus que fora arguida na proposição XVI. Assim,

Deus age somente pelas leis da sua natureza, e sem ser coagido por ninguém.220

Nesta proposição, o mais relevante nem é a utilização de um verbo de acção, pois ele estava já implícito na proposição XVI, e sobretudo na noção de eficiência do seu corolário primeiro, nem sequer o recurso à expressão “leis da natureza”, que nem chegam a ser aqui