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Reciprocando o direito de natureza e a potência, Spinoza assenta no TP que

qualquer coisa natural tem por natureza tanto direito quanta potência para existir e operar tiver58.

Ora, as leis naturais compondo o direito do indivíduo sendo afinal as características próprias da inscrição na natureza da essência desse indivíduo, se a potência de cada indivíduo compondo o seu direito for aferida também à sua essência, parece não haver uma correspondência entre a potência e o direito de natureza individuais. É que as leis da natureza do indivíduo são a marca do que há nele de essencial, e dessa essência individual, que não

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Cfr. Aristóteles, Metafísica, III, 1046b29-1047a29, pp. 179-180.

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«[…] unamquamque rem naturalem tantum iuris ex natura habere, quantum potentiae habet ad existendum et operandum», TP, II, 3, G III, p. 276 (DPA, p. 80).

pode ser concebida senão em particularidade, não resulta necessariamente a existência e por conseguinte também não a actividade na existência desse indivíduo59, elementos distintivos da potência no direito de natureza. Por outras palavras, se da essência da coisa se não retira a sua existência, ela não tem potência para existir: como então considerar que tem direito de natureza?

Um primeiro passo, óbvio, necessário, e já mencionado, é o de alimentar de potência de existir o nexo infinito de causas entre singulares, para evitar que este se torne numa remissão perpétua de impotência, e a única maneira de o fazer é considerá-lo como a própria potência de Deus enquanto modificada nos indivíduos. Isto porém é insuficiente para justificar um direito de natureza nos indivíduos, pois se “cada coisa tem por natureza tanto direito quanta potência para existir e operar tiver”, só Deus, que não é indivíduo senão por analogia, terá direito de natureza, e apenas metaforicamente. Por outras palavras, perde-se uma concepção genética e ontológica do direito nos indivíduos, uma vez que nenhuma definição spinozana de direito preenche e se coaduna com o ser relacional de cada indivíduo per se. Um segundo passo explicativo advém necessário.

Sucede que a envolvência do potente numa sequência de causalidade necessária força à apreciação da potência como activa. Mas ao alegar-se que a potência em Spinoza é activa, intenta-se sobretudo inseri-la numa contextura de actividade, no sentido de ser presença em acto. Em rigor, em nada se relaciona portanto com a potência “activa” mencionada por Tomás de Aquino como recuperando a noção aristotélica de poiein, enquanto capacidade de se exercer sobre algo exterior, e correlativa da potência “passiva” recuperando a noção aristotélica de paschein, enquanto capacidade de se ser exercido a partir de algo exterior: em linguagem de causalidade, a potência “activa” e a “passiva” de Tomás de Aquino designam simplesmente a capacidade de se ser causa ou de se ser efeito.

Quando Spinoza contudo lança a potência para uma contextura de actividade em sequência de causalidade, realiza-se aí uma concepção da potência como ser causal em acto, e ela é então “activa” e “em acto”. Mas essa integração da potência numa contextura em acto de causalidade não afasta necessariamente o ser-se efeito em acto como inerência da potência própria, e isto atesta-se pela própria potência de Deus, que é em simultâneo causa e efeito de si mesmo sem deixar de ser omnipotente. Se o ser efeito de algo exterior envolver ainda potência e não tanto impotência, a potência em Spinoza enquanto causalidade em acto num indivíduo integrará tanto um sentido “activo” como “passivo”, em jeito similar ao que os

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Cfr. E I P8 Sch II, G II, pp. 50-1, que repete Ep. XXXIV, G IV, pp. 179-180 (v. supra, cap. II, 3, nota 193, p. 153) e E IV Def III, G II, p. 209, assim como TP, II, 2, G III, p. 276.

tomou Tomás de Aquino, pelo que potência entender-se-á como ser-se causal e causa do ser- se efeito. Ora, que a essência da coisa individual não é causa do existir dessa mesma coisa é uma evidência para Spinoza, a essência do indivíduo não sendo potência do seu existir ou da sua actividade na existência: o ser causa do seu existir não está na essência do indivíduo, ele não é por si potência “activa” e “em acto”. Mas não haverá ainda uma dimensão de potência “passiva” e “em acto” a carecer de análise, que remonte ao essencial dos indivíduos e que permita aferir a sua potência como sendo de natureza sua? Em última análise, poderá ser este o terreno donde brotará a potência individual de natureza que é direito, o espaço desse segundo passo explicativo, e a resposta ao problema que permanecera pendente no final do capítulo anterior, o do registo da causalidade imanente entre indivíduos.

Comece-se então por tomar uma essência individual: ela é concebida quer o indivíduo a que respeita exista ou não na duração. Contudo, a sua mera concepção é já existência, não em acto ou em duração, mas em eternidade, enquanto essência existente na eternidade. Spinoza distingue entre essência existente na eternidade e essência existente na duração:

quando as coisas singulares não existem, excepto enquanto compreendidas nos atributos de Deus, o seu ser objectivo ou as suas ideias não existem, excepto enquanto existe a ideia infinita de Deus; e logo que as coisas singulares são ditas existirem, não tanto enquanto compreendidas nos atributos de Deus, mas enquanto são ditas também

durarem, as suas ideias envolverão também a existência, pela qual são ditas durarem.60

Ora quando o indivíduo existe, ele tem uma duração e está em acto numa composição extensiva, e a ideia que lhe é correspondente é a sua essência objectiva, também ela entrementes duradoura e em acto: como no horizonte da duração a existência das singularidades depende sempre de uma relação causal com outras singularidades existentes61, a existência do indivíduo e da sua essência objectiva requer sempre a produção de efeitos exógenos em si, isto é, a inscrição efectiva de registos singulares de causalidade exteriores à essência própria formal62. Mas quando o indivíduo não existe na duração, também não a sua

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«[…] quamdiu res singulares non existunt, nisi quatenus in Dei attributis comprehenduntur, earum esse objectivum, sive ideae non existunt, nisi quatenus infinita Dei idea existit; & ubi res singulares dicuntur existere, non tantum quatenus in Dei attributis comprehenduntur, sed quatenus etiam durare dicuntur, earum ideae etiam existentiam, per quam durare dicuntur, involvent.», E II P8 Cor, G II, p. 91.

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Cfr. E I P28, G II, p. 69, que explana o nexo infinito das causas singulares, e E II P9, G II, pp. 91-2, que explana o mesmo nexo aplicado às ideias das coisas singulares existentes em acto.

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Spinoza distingue entre o ser formal das ideias, isto é, as ideias tais como elas são consideradas nelas mesmas no pensamento de Deus, e o ser objectivo das ideias, que não designa de todo um correlativo do subjectivo, mas que aponta as ideias como modos de conhecimento de qualquer objecto ou simplesmente a ideia no atributo pensamento de um objecto duradouro compreendido num outro atributo. A distinção entre ambos não é portanto uma de eternidade versus tempo. V. P. Macherey, Introduction à l’Éthique de Spinoza. La deuxième partie, 1997, pp. 75-6, e infra, cap. III, 3, nota 124, p. 212. C. Jacquet, L’unité du corps et de l’esprit. Affects, actions et passions chez Spinoza, 2004, pp. 8-9, nota com relevância que esta distinção é similar à operada por Descartes nas Méditations Métaphysiques, III.

essência objectiva em acto: porém a sua essência formal permanece eterna e existente, não enquanto dura como efeito de uma relação causal externa, mas enquanto é concebida como sendo na “ideia infinita de Deus”, na essência de existência necessária dos atributos de Deus. Essa essência é por conseguinte intrínseca ao respectivo atributo e a sua existência é expressão da existência eterna de cada atributo.

Todavia, se a essência existe apenas na medida em que está compreendida na essência existente de Deus, que é eternamente infinita, onde encontrar aí qualquer existência de uma essência singular, que acarreta alguma particularidade e distinguibilidade? Como distinguir enfim essa essência formal quer da eternidade da substância quer de outras essências formais compreendidas na eternidade da substância? No final do escólio à proposição VIII da parte II da Ética, Spinoza, exemplificando-nos a existência de dois rectângulos no interior de um círculo existente, menciona que

as suas ideias também existem não tanto já enquanto apenas compreendidas na ideia do círculo, mas também enquanto envolvem a existência daqueles rectângulos, o que

faz com que se distingam das restantes ideias dos restantes rectângulos.63

Se o que distingue as essências individuais entre si for tão só a sua objectivação existente, como aparenta esta passagem, e a existência em referência for a de actividade, então não só a unicidade64 de uma essência individual nasce com a sua existência exógena em acto, como ainda a inexistência em acto do indivíduo acarreta a sua indistinguibilidade face ao exterior e a sua diluição na infinitude da eternidade. Dir-se-ia que o elemento distintivo das essências individuais constitui-se no confronto externo da individuação, o qual ocorre na negação mútua da conflitualidade das existências em acto e não na positividade das essências eternas65; inexistindo os indivíduos na duração, as suas essências eternas são insuficientes para a manutenção do estatuto de modo singular, e diluir-se-iam como gotas de água fundindo-se num infinito oceano – o extrínseco desvanece e subsiste apenas a afirmatividade da substância.66

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«[…] eorum etiam ideae jam non tantum existunt, quatenus solummodo in circuli idea comprehenduntur, sed etiam, quatenus illorum rectangulorum existentiam involvunt, quo fit, ut a reliquis reliquorum rectangulorum ideis distinguantur.», E II P8 Sch, G II, p. 91 (o itálico é aqui acrescentado ao texto de Spinoza).

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Unicidade aqui deverá entender-se não no sentido da unicidade de Deus, que é único por nada haver fora de si, mas no sentido de uma unicidade singular, o ser único não enquanto único singular, mas enquanto aquele singular irrepetido e original na natureza.

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Reconhecendo a simultaneidade, na potência das coisas singulares, de uma positividade das essências e de uma conflitualidade das existências, v. E. Balibar, “Individualité, Causalité, Substance : Reflexions sur l’Ontologie de Spinoza”, 1990, pp. 72-3.

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Esta interpretação depende de que se considerem as restantes ideias dos restantes rectângulos como sendo as ideias em acto dos restantes rectângulos em acto, a distinguibilidade nascendo apenas na duração. Num certo sentido, é esta um pouco a tese ainda presente no Tratado Breve: v. KV, App. II, § 9, G I, p. 119. Mas na Ética,

Esta interpretação do escólio à proposição VIII da parte II da Ética não é de todo destituída de problemas. Em primeiro lugar, se a unicidade de uma essência advém apenas da sua existência em acto, dificilmente se entende a doutrina da existência eterna das essências individuais: no caso do indivíduo humano, por exemplo, se a sua essência for discernível só na sua existência duradoura, como considerar que há uma eternidade individual para lá da mera existência duradoura do corpo, nos moldes em que chega a ser interpretada a parte V da Ética? A compatibilidade entre esta interpretação e a salvação individual na eternidade da parte V da Ética parece inalcançável. Em segundo lugar, se, como adverte o TP, «qualquer coisa natural pode conceber-se adequadamente, quer exista ou não exista»67, como proceder à concepção de uma essência individual quando ela não existe em acto e perde o seu estatuto de singularidade e unicidade? A defesa da indistinguibilidade das essências na existência eterna dos atributos de Deus não parece explicitar como seja possível pensar ou conceber a essência de uma coisa quando esta não existe em acto. Uma nova interpretação tem de despontar.

M. Gueroult encontra na eternidade individual da parte V da Ética a solução para estes problemas: cada corpo e cada alma tem uma essência singular eterna no interior do respectivo atributo de Deus, sendo pois de distinguir a singularidade da essência, que é eterna e discernível, da particularidade da essência, que é duradoura e determinada nas diferenciações extrínsecas de tempo e lugar. Quando então Spinoza acentua que as essências formais das coisas singulares têm uma existência eterna “enquanto compreendidas nos atributos de Deus”, mesmo quando não existem em acto, para M. Gueroult não há aqui qualquer diluição do singular na essência de Deus-enquanto-causa, na natureza naturante, mas permanece a validade do singular na essência de Deus-enquanto-efeito, na natureza naturada, pois de todos os modos se pode dizer que estejam “compreendidos nos atributos de Deus”, só assim sendo concebidos.68 A singularidade eterna das essências ocorre portanto “nas suas definições ou razões genéticas próprias”69, havendo assim uma diferenciação essencial qualitativa,

ver-se-á que as restantes ideias dos restantes rectângulos são sobretudo as ideias dos rectângulos ainda inexistentes em acto, a distinguibilidade acarretanto também eternidade. Neste sentido, v. M. Gueroult, Spinoza. II-L’Ame, 1974, pp. 94-8, e P. Macherey, Introduction à l’Éthique de Spinoza. La deuxième partie, 1997, pp. 88- 92. E. Yakira, in “Ideas of Nonexistent Modes: Ethics II Proposition 8, its Corollary and Scholium”, 1994, pp. 159-169, incide o seu estudo acerca do exemplo dos triângulos no círculo sobre o significado dos verbos involvere e comprehendere, para concluir no sentido de uma espécie de ambiguidade de Spinoza na Ética aquando das suas referências à existência das essências de coisas inexistentes.

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«Res quaecunque naturalis potest adaequate concipi, sive existat sive non existat», TP, II, 2, G III, p. 276 (DPA, p. 79)

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Cfr. M. Gueroult, Spinoza. II-L’Ame, 1974, pp. 99-101.

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«[…] la différence des choses réside dans leurs définitions ou raisons génétiques propres […]», M. Gueroult, Spinoza. II-L’Ame, 1974, p. 100.

nominalmente real, a unicidade da essência sendo uma propriedade intrínseca ao ser mesmo da coisa enquanto este se compreende como modificação do ser mesmo de Deus.

Gilles Deleuze, por seu turno, parece deixar tácita a crítica a uma espécie de inércia própria desta solução qualitativa. Para G. Deleuze, os atributos constituem a essência mesma de Deus expressando-se numa dinâmica real, e, ao afirmar-se que as essências das coisas singulares existem neles compreendidas, revela-se aí uma doutrina da participação das essências em Deus, que acarreta realidade produtiva na infinitude dos atributos: como tal realidade não é apenas lógica ou ontológica, mas também material, as essências das coisas singulares participam de uma realidade também material, pelo que não são meros entes metafísicos ou estruturas qualitativas lógico-matemáticas, mas coisas físicas distinguíveis (res physicae).70 A diferenciação das essências, logo, não é operada apenas na qualidade das definições genéticas das coisas, mas, o qualitativo das essências sendo a sua presença na materialidade produtiva de Deus operando em imanência, elas distinguem-se enquanto variações físicas dessa dinâmica real de produção, ou seja, mais do que a distinção residir numa qualidade intrínseca das essências, G. Deleuze fá-la residir, invocando a seu jeito a univocidade da individuação de Duns Scott, na quantidade variada de produtividade própria da qualidade intrínseca das essências. Por outras palavras, mesmo quando a coisa singular não existe em acto, há uma sua essência formal eterna distinta enquanto grau de intensidade da produtividade inerente aos atributos: a diferenciação não é extrínseca – porque não há figuras ou negações na eternidade71 – nem apenas qualitativa – porque a essência participa na realidade produtiva de Deus – mas sobretudo quantitativa-intrínseca.72 As essências, compreendidas nos atributos, são afirmações em diferentes intensidades da determinidade necessária de Deus, e portanto são graus distintos de determinação positiva, sem verificação do extrínseco e em cumprimento do intrínseco, quer nos atributos, quer em si.73

Esta tese deleuziana da distinção gradual de intensidade entre essências individuais coaduna-se por inteiro com a causalidade spinozana e com a “certeza” dos individuais ontológicos aí em produção, não só porque permite a eternidade individual e a concepção de essências de coisas não existentes sem qualquer recurso ao extrínseco, como ainda, ao

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Cfr. G. Deleuze, Spinoza et le problème de l’expression, 1968, pp. 166-175.

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V. Ep. L, G IV, pp. 239-241.

72

Cfr. G. Deleuze, Spinoza et le problème de l’expression, 1968, pp. 179-180.

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Esta interpretação deleuziana da diferença da singularidade como provinda intrinsecamente de si e não do extrínseco repete-se ao longo da sua obra no conceito de “diferença”. V. G. Deleuze, Différence et répétition, 1972, pp. 43-95. S. Duffy, em The Logic of Expression: Quality, Quantity and Intensity in Spinoza, Hegel and Deleuze, 2006, pp. 95-134, salienta a importância da “diferença” em Spinoza para a “diferença” deleuziana, e identifica aí um projecto alternativo à dialéctica hegeliana, que opera por determinidades negativas e não todas positivas.

acentuar a importância distintiva do quantitativo sobre o qualitativo, faz relevar um elemento produtivo na definição genética de cada coisa ao mesmo tempo que assenta a unicidade de cada singular num ordo próprio da essência de Deus. É que se a essência de uma coisa singular inexistente em acto distingue-se das demais enquanto é um grau irrepetido de intensidade produtiva, uma quantidade própria, as essências arrumam-se de imediato numa hierarquia sistémica de intensidade que espelha a estrutura numérica da quantidade74.

Assim, se um realismo das essências as torna mutuamente distintas no interior de uma intensidade substancial enquanto graus quantitativos, convém recuperar a natureza desta intensidade com o intuito de inteligir de quê é uma essência individual um grau. Ora, na sua singularidade eterna, as essências existem compreendidas nos atributos, e portanto existem naturadas na essência naturante de Deus: elas existem porque os atributos que as compreendem existem, e estes existem por necessidade da essência mesma de Deus, essa essência que envolve a sua própria existência, sendo por isso causa de si – a existência distintiva das essências é afinal marca integradora de uma contextura de causalidade, aquela própria de Deus. É que a existência de Deus resulta de uma sequência de necessidade envolvendo a sua essência, que Spinoza, aí definindo a causa de si, explica em termos de causalidade. E como o existir que é propriedade de uma essência posta é por conseguinte um poder existir essencial, dessa sequência causal de necessidade da natureza de Deus resulta um seu poder existir: a essência de Deus e a potência de Deus são uma e a mesma coisa. A potência de Deus é a causalidade expressa do seu existir na sua essência, e portanto, ao existirem distintas no interior dessa sequência causal, as essências singulares participam da potência de Deus – elas são enfim graus de potência. Recorrendo à crítica hobbesiana dirigida à diferenciação quantitativa dos indivíduos75, dir-se-ia que o navio de Teseu é sempre a mesma e certa expressão, mensurável numericamente nas relações dos seus componentes, da potência de Deus, independentemente da substituição periódica de qualquer das suas traves, e também que aquelas traves substituídas que compõem um novo navio, compõem um outro navio, o qual é também sempre a mesma e certa expressão da potência de Deus num grau distinto daquele do navio de Teseu.

Eis afinal como esta percepção das essências singulares enquanto graus de potência arrumados numa estrutura hierárquica de quantidade no interior da infinitude dos atributos permite que se compreenda a primeira parte do axioma da parte IV da Ética, segundo o qual

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Neste sentido, v. C. Ramond, “Sur l’orientation quantitative du Traité Politique de Spinoza”, 1997, pp. 87-9.

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nenhuma coisa singular se dá na natureza das coisas sem que se dê uma outra mais potente e mais forte.76

Por outras palavras, enquanto compreendidos na infinitude dos atributos, para cada grau de potência que é a essência formal de cada coisa singular haverá um grau de potência acrescido na organização quantitativa em infinito da potência de Deus.

Mas que potência é esta em consideração? Em rigor, não se trata ainda de uma causalidade extensiva pois as essências em análise são sobretudo formais e não tanto objectivas, elas são essências eternas de modo nos atributos de Deus e delas se não retira uma existência ou uma inexistência em acto na duração. A potência de Deus é desenvolvimento causal do seu existir numa necessidade toda intensiva, e as essências participam dessa necessidade em estatutos distintos, formalmente sendo graus de potência intensivos, e objectivamente sendo essências de coisas singulares existentes. As essências que se distinguem enquanto graus de potência, se não apontam para coisas existentes em acto, são portanto momentos de uma causalidade intensiva, isto é, da causalidade já operada na substância numa sequência necessária de causa para efeito sem recurso ainda à produção de efeitos na duração. E esta causalidade não é outra senão a que faz do ser de Deus sinónimo do seu causar-se logo a partir dos atributos: por um lado, nas demonstrações à proposição XI da parte I da Ética, a razão de ser da substância é confundida com a sua causa de ser77, e a