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2 – Prescrição vs descrição vs inscrição

Ao nascer por uma actividade da imaginação, o deôntico destitui-se de realidade e parece assumir-se apenas como um plano alternativo ao ôntico, dispensável à verdade das coisas. Contudo, ao desconectar-se o deôntico do real não se evidencia que Spinoza esteja preparado para remeter o deôntico a um estatuto de completa irrelevância, apontando a conveniência da sua supressão. Pelo contrário, como já se disse, nem Spinoza pretende deixar cair uma dimensão deontológica da lei, nem tenciona deixar de explicá-la dentro de uma ordem de necessidade natural que é toda ontológica. É evidente no entanto que o considerar- se de uma cumulação do deôntico ao ôntico faça reerguer os fantasmas revelados por David Hume a propósito do hiato lógico que separa o âmbito do ser daquele do dever ser, segundo o qual este não pode derivar ou deduzir-se daquele:

Em todos os sistemas de moral que encontrei até aqui tenho sempre notado que o autor durante algum tempo procede segundo a maneira comum de raciocinar, estabelece a existência de Deus, ou faz observações sobre a condição humana; depois, de repente, fico surpreendido ao verificar que, em vez das cópulas é e não é habituais nas

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Cfr. Ep. XIX, G IV, pp. 90-3.

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«Philosophi […] qui sunt supra Legem […]», Ep. XIX, G IV, p. 93. Poder-se-á dizer, como o faz J. Lagrée, Spinoza et le débat religieux. Lectures du Traité théologico-politique, pp. 192-4, que se dá no sábio uma superação do “normativo” em direcção ao “cognitivo”.

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E. Balibar, in “Jus, Pactum, Lex: Sur la constitution du sujet dans le Traité Théologico-Politique”, 1985, p. 125, sustenta que a lei prescritiva para Spinoza carece ainda de uma fase ulterior à da aquisição de imperatividade, a que chama de récit de légitimation, pelo que a prescrição constituir-se-ia em três momentos sucessivos, a enunciação (afirmação de um algo), a prescrição (em que tal afirmação se torna deôntica), e o tal récit de legitimação da prescrição, que faz com que a prescrição integre um contexto histórico-cultural identificável, e seja referente a um poder estabelecido impondo-a. E num mesmo sentido parece ir D. P. Aurélio, in “A Nação segundo Espinosa” [1997], A vontade de sistema, p. 171. A análise de E. Balibar entende a prescrição como uma derivação do ius que é concebido num contexto de relações naturais de poder entre humanos: e esta é uma análise certeira, que se pode aceitar sem restricções. A arquitectura da prescrição, assim, só fica completa quando for inserida numa arquitectura de relações de poder (sociais, religiosas ou políticas), e ambas têm em comum uma decisiva intervenção da imaginação. Mas tal inserção só é possível na completude da análise dessas relações de poder entre humanos, a empreender na parte II do presente trabalho.

proposições, não encontro proposições que não estejam ligadas por deve ou não deve. Esta mudança é imperceptível mas é da maior importância. Com efeito, como este deve ou não deve exprimem uma nova relação ou afirmação, é necessário que sejam notados e explicados; e que ao mesmo tempo se dê uma razão daquilo que parece totalmente inconcebível, isto é, de como esta nova relação se pode deduzir de outras

relações inteiramente diferentes.77

Independentemente da legitimidade aferível no estabelecimento de barreiras lógicas entre o ser e o dever ser, em Spinoza parece haver grande similitude com as acepções humeanas nesta matéria. É que a instrução da lei prescritiva como mero ente de razão elimina- a enquanto elemento com realidade própria integrando por si o universo de causas e efeitos necessários com densidade ontológica, e nesta medida não há em Spinoza coincidência entre o descritivo e o prescritivo, não se podendo passar de um para o outro livremente, como se ser e dever ser se equivalessem em realidade. Mas, e tal como em Hume, isto não implica um fechamento à compreensão do prescritivo a partir desse universo ontologicamente denso, porque se o deôntico é imaginário, e a imaginação for uma característica imbuída num elemento real do ser, então o ser desse elemento pode acarretar a necessidade mediata da prescrição. Com efeito, mesmo em Hume pode ser precipitado considerar uma ausência do prescritivo, pois simplesmente este não se dilui no natural mas desenvolve-se a partir do natural, a partir da condição sentimental e emocional do homem, podendo então falar-se até em moralidade.78

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«In every system of morality which I have hitherto met with, I have always remarked, that the author proceeds for some time in the ordinary way of reasoning, and establishes the being of a God, or makes observations concerning human affairs; when of a sudden I am surprised to find, that instead of the usual copulations of propositions, is, and is not, I meet with no proposition that is not connected with an ought, or an ought not. This change is imperceptible; but is, however, of the last consequence. For as this ought, or ought not, expresses some new relation or affirmation, 'tis necessary that it should be observed and explained; and at the same time that a reason should be given, for what seems altogether inconceivable, how this new relation can be a deduction from others, which are entirely different from it.», Treatise of Human Nature, III, I, 1, in The Philosophical Works, vol. II, p. 236 (trad. S. da Silva Fontes, Tratado da Natureza Humana, p. 543) . Esta passagem, a que R.M. Hare se refere como Hume’s observation (The Language of Morals, pp. 29 e 44), constitui aquilo que é conhecido na filosofia da meta-ética por lei de Hume, objecto de extensa bibliografia crítica.

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«All morality depends upon our sentiments; and when any action or quality of the mind pleases us after a certain manner, we say it is virtuous; and when the neglect or non-performance of it displeases us after a like manner, we say that we lie under an obligation to perform it.», Treatise of Human Nature, III, II, 5, in The Philosophical Works, vol. II, p. 292. Várias são as interpretações da chamada lei de Hume (uns negando qualquer deontologia a partir do ontológico em Hume, outros dizendo que Hume se limita a afirmar que juízos morais não envolvem facticidade nem são aferíveis pela verdade, outros ainda excluindo em Hume quaisquer valores do domínio dos factos, outros excluindo em Hume uma relação entre o deôntico e uma razão demonstrativa), mas raramente aprofundam o que Hume diz acerca da moralidade e da importância do sentimental na sua concepção. Neste sentido, v. N. Capaldi, Hume’s Place in Moral Philosophy, 1992, pp. 76- 80. Contra, por exemplo, T. H. Green, Hume and Locke [1874], p. 354; N. K. Smith, The Philosophy of David Hume, 1949, p. 201; B. Wand, “Hume’s Account of Obligation”, 1956, pp. 155-168. Também negando a aplicabilidade da lei de Hume a Spinoza, embora estranha- (e paradoxalmente) reconhecendo a sua lei natural como “ontologicamente obrigatória”, v. E. E. Harris, “Spinoza’s Treatment of Natural Law”, 1984, pp. 69-70.

Ora em Spinoza a representação imaginária da realidade é um conhecimento confuso, mutilado, inadequado. Não obstante, é ainda um género de conhecimento79 próprio do homem, e portanto não é a mera assimilação do erro ou a figura da falsidade, mas contém em si qualquer coisa de verdadeiro. Assim, se a maior parte dos homens considera a realidade numa perspectiva imaginária que origina a prescrição, não o faz porque o queira em liberdade mas tão só porque não a consegue considerar de outra maneira, como consequência da coarctação do seu entendimento. Ademais, enquanto o corpo humano é afectado por outros corpos, o que sempre sucede no homem existente, há aí também representação pelo intelecto das ideias desses corpos em imagens, o que equivale a dizer que a existência humana não é concebível sem um indício mínimo de imaginação80. Mesmo o homem sábio, esse que emerge acima da lei, conhecendo a concatenação de causas e efeitos da necessidade de Deus, e portanto apreendendo as suas verdades eternas, não é aquele que suprime em definitivo da sua existência todos os efeitos de uma maneira imaginária de conhecer (pois o conhecimento da vera distância do Sol não basta para eliminar a imagem da sua proximidade81, basta apenas para eliminar o erro de considerar essa imagem como verdadeira), envolvendo as afecções corporais e as ideias destas, mas pelo contrário sabe lidar com eles e concebe adequadamente de que maneira são eles necessários. Sem a imaginação e a faculdade em si inevitável de construir o deôntico para suprir as lacunas do entendimento sobre o ôntico, o homem seria apenas um paralisado escravo do medo, incapaz de se potenciar e de exprimir Deus adequadamente no contacto com a alteridade. O sábio tem conhecimento disto, e portanto não

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O tratamento dos meios humanos de acesso ao conhecimento em Spinoza não é uniforme ao longo da sua obra: em KV, II, 1, fala em “meios de aquisição do conhecimento” e divide-os em três (opinião, razão, saber claro), no TIE, § 19, fala em “modos de percepção” e divide-os em quatro (ouvir dizer, experiência vaga, razão, essência mesma da coisa), e em E II P40 Sch, fala em “géneros de conhecimento” e divide-os novamente em três (imaginação, razão, ciência intuitiva). Como instrumento auxiliar de grande eficácia, v. o quadro presente em M. Chaui, A nervura do real, nota 112 à “Introdução”, p. 20 do volume contendo notas, bibliografia e índice.

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A imaginação é o processo pelo qual a alma humana toma as ideias dos corpos afectando o corpo humano como presentes, representação que contudo nada diz da natureza mesma de tais corpos exteriores e das suas ideias. Cfr. E II P17 e Sch, G II, pp. 104-6. Neste sentido, tal representação só cessa quando uma qualquer outra afecção leve a alma humana a tomar as ideias desses mesmos corpos como não presentes, e não quando a alma humana adquire um conhecimento verdadeiro (racional) da natureza desses corpos. Com efeito, a imaginação não resulta apenas do desconhecimento da concatenação causal da necessidade de Deus (como sucede no nascimento da prescrição, ou no nascimento do erro, quando a imagem resultante desse desconhecimento é tomada como verdadeira), mas também quando uma afecção do corpo humano envolve a essência de um outro corpo, enquanto o próprio corpo humano é afectado por esse outro corpo. É o que Spinoza diz explicitamente no final do escólio de E II P35, G II, p. 116 (que quase repete em E IV P1 Sch): “efectivamente, não imaginamos o Sol tão próximo porque ignoramos a sua verdadeira distância, mas porque uma afecção do nosso corpo envolve a essência do Sol, enquanto o próprio corpo é afectado por ele”. Logo, como todo o homem existindo possui um corpo existente em acto, enquanto existente em acto, está sempre sujeito a afecções corporais exteriores, cujas ideias envolvem mutilação e, enfim, imaginação.

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só não nega o prescritivo, como entende-o ainda enquanto necessidade do homem passional buscando segurança, reconhecendo assim a sua utilidade. Logo, por

ignorarmos completamente a própria coordenação e concatenação das coisas, isto é, de que modo elas estão realmente ordenadas, torna-se, por isso mesmo, preferível e até

necessário, na prática, considerá-las como possíveis82 ,

isto é, o prescritivo (aqui apontado pela sua característica de possibilidade) é uma maneira eficaz de suprir os efeitos perniciosos do desconhecimento da concatenação das coisas (daí ser preferível) e é algo inerente à representação imaginária consequente à condição afectiva dos homens (daí ser necessária), que é o que todos têm efectivamente em comum pela experiência (daí a referência à prática), pois se a razão é comum e acessível a todos, só alguns conhecem por ela, enquanto as afecções são necessidades do mero existir dos homens. A Ética di-lo expressamente:

Portanto, o melhor que podemos fazer enquanto não temos um conhecimento perfeito dos nossos afectos, é conceber uma recta regra de vida [rectam vivendi rationem], isto é, princípios [dogmata] certos de vida, e de os entregar à memória e aplicá-los continuamente às coisas particulares que com frequência se encontram na vida, para que assim a nossa imaginação seja por eles latamente afectada, e para que nos estejam

sempre ao alcance.83

Esta maneira de entender a prescrição fá-la diferir do estatuto que lhe é atribuído no quadro conceptual a partir do qual Spinoza escreve. Aí, a lei prescritiva deôntica, em especial como derivação da positividade intrínseca que lhe é característica, é a forma discursiva assumindo a caracterização do que é bom, e portanto é tomada como a proposição identificadora do bem a impor-se e como o estabelecimento de um modelo de qualidade a todos os homens, generalidade esta que permite ao bem prescrito ser tratado de justo (iustum) e ao seu oposto contrário de injusto (iniustum) – e isto independentemente da proveniência imediata da prescrição, esteja ela na natureza própria do homem84, na perfeição da totalidade da natureza85, ou na simples razão86. A lei prescritiva deôntica, portanto, enquanto pré- notação obrigatória de justiça, constitui de uma qualquer maneira direito (ius). Abalado pela

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«[…] nos ipsam rerum coordinationem et concatenationem, hoc est quomodo res revera ordinatae et concatenatae sunt, plane ignoremus, adeoque ad usum vitae melius, imo necesse est, res ut possibiles considerare.», TTP, IV, G III, p. 58 (DPA, p. 180).

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«Optimum igitur, quod efficere possumus, quamdiu nostrorum affectuum perfectam cognitionem non habemus, est rectam vivendi rationem, seu certa vitae dogmata concipere, eaque memoriae mandare, & rebus particularibus, in vita frequenter obviis, continuo applicare, ut sic nostra imaginatio late iisdem afficiatur, & nobis in promptu sint semper.», E V P10 Sch, G II, p. 287.

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Cfr. Aristóteles, Política, I, 1253a9-18, pp. 3-4.

85

Cfr. Cícero, De Legibus, II, pp. 384-6.

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radical subversão de Maquiavel à lei prescritiva40 e pela ênfase crescente colocada sobre uma perspectiva subjectiva do ius87, é Grotius quem acaba por estruturar esse quadro da natureza do ius a partir do qual se edificará a maioria das doutrinas jurídicas e políticas da Modernidade88.

A doutrina de Grotius a propósito da natureza do ius ramifica-o, como é sabido, em três sentidos distintos no De Jure Belli ac Pacis. Numa primeira acepção, remonta para essa ideia da universalidade de um bem para os homens, mas realçando a vertente de negação dos seus opostos contrários presente em qualquer formulação de um tal bem, pelo que ius constitui-se assim na transparência daquilo que não é iniustum, daquilo que repugna à “sociedade dos seres dotados de razão”.89 Numa segunda acepção, que parte já dessa identificação do injusto e, por inversão, do justo, ius remonta para uma concentração individual num sujeito com estatuto de pessoa, aí designando uma qualidade humana de poder assimilar ou fazer o justo (“qualidade moral”), à qual Grotius chama de faculdade (facultas), dando-lhe aliás uma certa primazia ao ponto de a considerar como direito próprio ou estritamente dito (ius proprie aut stricte dictum).90 A faculdade, por sua vez, ramifica-se igualmente em três sentidos distintos: o poder (potestas), enquanto controlo a exercer sobre o que se assume com o estatuto de pessoa, seja o próprio (potestas in se, poder sobre si mesmo) ou um outro (potestas in alios, poder sobre outrem); o domínio (dominium), que tanto pode significar um título de propriedade reconhecida por outrem como a mera posse legítima de uma coisa, mas sempre remetendo para uma relação de controlo a exercer sobre o que tenha o estatuto de coisa (res) não pessoal; e o crédito (creditum), enquanto contraponto subjectivo de um vínculo debitório específico de outrem e exigível, débito este com um conteúdo não eficaz erga omnes (neste caso o seu contraponto mais provável seria um direito real, o reconhecimento do dominium, portanto) mas com um conteúdo e um destinatário bem identificados, podendo este exigir a efectivação daquele.91 Por fim, numa terceira acepção, ius remonta para a ideia de prescrição imperativa do justo, e designa então a lei.

Ora, se já na tradição pré-moderna a lei prescritiva deôntica caracterizava um formato do ius, em Grotius mantém-se tal ocorrência: quando a prescrição é dotada de coercibilidade, isto é, quando à possibilidade do seu não acatamento se acresce a necessidade de um mal imposto, a sanção, então há aí ius, propriamente dito voluntário (ius voluntarium); quando a

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V. infra, cap. III, 1, pp. 177-183.

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Cfr. A. Matheron, “Spinoza et la problématique juridique de Grotius” [1984], in Anthropologie et Politique au XVIIe Siècle, pp. 81-102.

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V. De Jure Belli ac Pacis, Livro I, cap. I, 3, W 1, pp. 3-4.

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V. De Jure Belli ac Pacis, Livro I, cap. I, 4, W 1, p. 5.

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prescrição pelo contrário não tem qualquer coercibilidade, mas impõe-se apenas pelo valor de si mesma, brotando da razão aberta à consciência do homem, então há aí ainda ius, agora propriamente dito natural (ius naturale)92. Porém, na medida em que remonta à natureza, o ius em Grotius não se reduz à prescrição, mas assume também uma forma factual subjectiva, na qual não há lugar para o prescritivo, não se dizendo então rigorosamente haver aí lei. Mas esta forma subjectiva do ius, a faculdade, conformada com um primário discernimento do que é útil à conservação do sujeito (recuperação da oikeiosis estóica)93 e com um instintivo desejo humano de associação (appetitus societatis)94, acarreta também a percepção da presença da alteridade no ius da natureza, pois cada sujeito torna-se fonte e momento de imputação desse ius. E a presença do outro exige uma espécie de limitação recíproca entre sujeitos que seja entendida como condição possibilitante de uma co-presença de ambos, aferida exterior e objectivamente, ou através de uma mera descrição, ou recorrendo ao prescritivo (sendo então ius naturale objectivo) para estabelecer tal co-presença como uma exigência necessária da recta razão da natureza que busca um equilíbrio constante entre todas as coisas. Essa limitação incinde sobre o primário discernimento do que é útil à conservação própria93, o qual não é ainda ius pessoal, pois este é uma qualidade moral da pessoa para fazer o justo, justo determinado pela co-presença de pessoas racionais. Logo, todos os três sentidos de ius encadeiam-se numa necessidade recíproca, e todos se realizam em simultâneo na verificação da co-presença de pessoas racionais.95

Spinoza, no entanto, penetra neste quadro conceptual munido já dos instrumentos críticos de Hobbes, o qual reordena por completo os conceitos aí presentes. Para Hobbes, ius deixa de ser uma estrutura complexa tripartida para passar a designar unicamente uma dimensão do âmbito factual do subjectivo: a faculdade grotiana de realização do justo transforma-se na qualidade humana de disposição de tudo o que lhe seja acessível e crido contribuir para a preservação da sua condição, na ausência de obstáculos a tal acessibilidade. Hobbes parte de uma concepção do homem cuja natureza incentiva sempre a conservação de si e a demanda dos meios para uma incrementação de si, o que equivale a afirmar que em Hobbes o indivíduo ocupa por definição uma posição de referência a si e não à alteridade: não

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V. De Jure Belli ac Pacis, Livro I, cap. I, 9, W 1, pp. 8-9.

93

V. De Jure Belli ac Pacis, Livro I, cap. II, 1, W 1, pp. 29-35.

94

V. De Jure Belli ac Pacis, Prolegomena, VI e IX, W 1, pp. xli-xlii e pp. xliv-xlv.

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No sentido oposto, afirmando que em Grotius a prescrição se faz ius naturale objectivo quando encontra diante de si iures naturales subjectivos pré-verificáveis, cfr. R. Tuck, Natural Rights Theories, 1979, pp. 58-81, ideia que repete em “The ‘modern’ theory of natural law”, 1987, pp. 99-119; Philosophy and Government. 1572- 1651, 1993, pp. 154-200; “Introduction”, 2005, pp. ix-xxxiii; seguindo R. Tuck, v. também J. Blanco-Echauri, “Un iusnaturalismo irónicamente perverso (Genealogía e historia de una metamorfosis: I. Ius sive facultas)”, 1999, pp. 315-351.

há no homem qualquer inclinação natural a priori para a constituição da sociedade, mas tão só para a preservação de si; dir-se-ia que o appetitus societatis de Grotius dá lugar a um appetitus sui, o social sendo então um meio ulterior de cumprimento deste instinto de preservação. Não havendo um tal motor interno e primário no homem para a constituição do social, o confronto com o outro não acarreta a busca imediata de uma situação de co-presença de ambos, mas sim a consideração do outro como obstáculo à presença do próprio, por a acessibilidade dos meios que o preservam poder ser anulada pelo outro: assim nasce a dissidência96, que se factualiza em guerra quando cada um se esforça por eliminar tudo o que considera obstaculizar essa sua acessibilidade97. O ius naturale nada tem que ver portanto com a prescrição ou com um apontamento de justiça: ius é o poder da natureza do homem que lhe permite buscar o que o conserva em liberdade, isto é, na ausência de impedimentos externos98.

Sucede que para Hobbes a igualdade entre os homens99 e a ocupação de um mesmo espaço leva-os a encontrar sempre impedimentos externos, em especial no confronto com um igual, pelo que na ânsia permanente da sua conservação o homem tomado em si delineia como estratégia o controlo e a anulação do outro, isto é, o confronto e o choque dos diferentes iures naturales faz com que a dissidência se degrade sempre em guerra, a qual, como todos acabam por ser mais ou menos iguais em forças, cessaria apenas com a aniquilação definitiva do homem. Para o evitar, o indivíduo persegue o seu interesse delineando uma nova estratégia, apontada agora pela razão, a de nada fazer que contrarie a sua conservação. Esta é