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A) A. E. – Antes da Ética

O indivíduo como problemática está longe de um qualquer tratamento uniforme ao longo da obra de Spinoza. No TIE, desde logo, é de notar que o termo mal aparece, muito embora se manifeste a singularidade em especificação. A ênfase recai sobre o que esteja reificado, quer infinita quer finitamente, e aí o homem assume-se como momento de participação no real por meio da singularidade da sua experiência. O prólogo descerra o texto num tom de familiaridade com o leitor, aclarando a experiência de um singular humano nas flutuações do conhecimento: Descartes parece fazer-se fantasma presente, não só porque o dúbio ou uma vivência da insatisfação brotam como balizas introdutórias, mas também porque a singularidade dessa experiência é identificada como específica (como um este) na exibição de um eu pensante.78 No decurso do texto, porém, tende a desvanecer-se tal tom. O bem supremo é o conhecimento da união da alma com um todo natural a adquirir por um método progressivo de solidificação da verdade primeira,79 pelo que o singular conquista positividade sobretudo quando é tomado como parte de um todo que o engole e cuja existência é real em eternidade e em imutabilidade: aí, o singular enfraquece-se na sua

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A salvação como tema da filosofia de Spinoza é abertamente reconhecida pela generalidade dos estudos, quer a tomem como “dupla”, com um sentido para o sábio e um outro para o vulgo (cfr. A. Matheron, Le Christ et le salut des ignorants, 1971, pp. 85-261; E. E. Harris, Salvation from Despair. A Reappraisal of Spinoza’s Philosophy, 1973, pp. 205-7), ou como “comum” no preenchimento da obediência e do conhecimento (cfr. F. V. Jordão, Espinosa. História, Salvação e Comunidade, 1990, pp. 249-263; M. L. Ribeiro Ferreira, “Uma hermenêutica da salvação”, in Uma Suprema Alegria: escritos sobre Espinosa, 2003, pp. 231-250). Tomando como ponto de partida a filosofia de Spinoza enquanto “soteriologia”, v. R. Misrahi, “Introduction”, Éthique, 1990, pp. 34-5; R. García, “La Ética como doctrina y técnica de salvación”, 1992, pp. 175-190; B. Rousset, “La ‘philosophie’ appelée ‘Éthique’”, 1992, p. 34. Quanto à compatibilização entre salvação individual (equiparada à beatitude) e anti-antropocentrismo, v. H. De Dijn, “Knowledge, Anthropocentrism and Salvation”, 1993, pp. 247-261; no sentido oposto, não conseguindo aceitar a eficácia salvífica da beatitude, v. F. Alquié, Le rationalisme de Spinoza, 1981, pp. 9-16, 328-346; e H. Bloom, “Deciphering Spinoza, the Great Original”, 2006, para quem a Ética “will illuminate you, but through light without heat”.

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Quanto à perceptibilidade de Descartes e do dúbio no prólogo do TIE, v. F. Alquié, Le rationalisme de Spinoza, 1981, pp. 48-60, e A. Boyer, “Supprimer la doute. La réécriture spinoziste du cartésianisme”, 2004, pp. 502-6. O mais completo e razoável estudo sobre o prólogo do TIE pertence, de longe, a P.-F. Moreau, Spinoza. L’expérience et l’éternité, 1994, pp. 11-224.

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especificidade e dá-se apenas como face aferível de um universal pronto a definir o que se torna diferenciado tão só na experiência de um mundo em mutabilidade – o singular é tão mais positivo quão mais for como que um universal:

estes imutáveis e eternos, embora sejam singulares, contudo pela sua presença ubíqua e latíssima potência, serão para nós como que universais, isto é, géneros de definição

das coisas singulares mutáveis, e causas próximas de todas as coisas.80

Por conseguinte, mesmo que o indivíduo aflore no pano de fundo do TIE com uma dimensão antropológica de influência cartesiana, se uma equiparação for operada entre o individual e o singular diferenciado, ao jeito da tradição da problemática da individuação, parece haver um acentuado empobrecimento da individualidade em detrimento de uma concepção de natureza cuja omnipresença acarreta simplicidade e uma certa descompartimentação.

Nos CM e no Tratado Breve não chega a haver um desvio assinalável face ao TIE nesta temática. Tal como antes, o termo indivíduo só releva pela persistência da sua ausência, muito embora o singular volte a assomar e a centrar-se no homem. Nos CM, o singular é tratado como real numa relação de integração em Deus e numa correlação com o carácter fictício dos universais: no primeiro caso, a natureza é substância única de existência eterna incluída na necessidade da sua essência, e tudo o que pode nela ser recortado existe em singular só enquanto sua modificação, isto é, o singular é o concurso de Deus para a distinguibilidade das suas modificações; no segundo caso, o universal não independe da existência dessas modificações singulares, mas é apenas uma construção cognitiva que impõe ser aí onde mais não há que uma mera colecção de modificações.81 A positividade do singular é mais uma vez engolida na omnipositividade de Deus, mas enquanto o prólogo do TIE fizera ainda emergir a experiência incipiente de um eu pensante, numa evocação tácita da individualidade antropológica de Descartes, os CM anulam o valor da experiência, expulsam a familiaridade presentificante de um eu, e reduzem o homem a uma modificação singular final do próprio Deus, a qual se valoriza enquanto determinada substância pensante.82

O Tratado Breve, por seu turno, sem engendrar um afastamento considerável face ao anterior, apresenta contudo algumas cambiantes. Desde logo, não estabelece o homem como experiência incipiente nem como culminar finito de um atributo pensante da substância, mas

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«[…] haec fixa et aeterna, quamvis sint singularia, tamen ob eorum ubique praesentiam, ac latissimam potentiam, erunt nobis tanquam universalia, sive genera definitionum rerum singularium mutabilium, et causae proximae omnium rerum.», TIE, § 101, G I, p. 37.

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Cfr. CM, I, 2-3, G I, pp. 237-244, e CM, II, 7, G I, pp. 262-3.

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Assim é que os CM assinalem a presença do homem apenas no capítulo sobre “a alma humana”, que culmina o texto e a parte II acerca da natureza de Deus. V. CM, II, 12, G I, pp. 275-281.

divide-se numa exposição de Deus e da infinitude e numa dedução das coisas singulares e finitas, as quais são restringidas ao que é próprio do homem e interessa ao homem.83 A positividade destes singulares continua a ser engolida na voracidade da existência de Deus e não há um momento ontológico certo com consistência suficiente para ser revestido com uma individualidade metafísica do real: não obstante, o homem surge não apenas na vivência do escrevente e do leitor ou na dedução terminal de uma modificação pensante de Deus, mas também como objecto do filosofar incluído num projecto de maior participação em Deus, numa soteriologia; por outro lado, as coisas que existem ou passam a existir na substância são reais na sua singularidade, dispensando como antes o universal, mas o que agora as especifica enquanto singulares (como um este ou um aquele) são as variações certas do que se segue em infinito da “extensão substancial” (zelfstandige uytgebreidheid), isto é, são proporções quantitativas de movimento e repouso de corpos (lichaam), cujas ideias correspondentes no “pensamento substancial” (zelfstandige denking) constituirão almas (ziel) singulares.84 No panorama geral de uma futura problemática da individualidade, começa a ser perceptível como o fantasma de Descartes vai sendo substituído pelo fantasma de Hobbes.

O ano de 1665 marca uma viragem apreciável na consideração desta temática, pois é então que Spinoza escreve a carta XXXII a H. Oldenburg e que empreende a elaboração do TTP.85 A carta a Oldenburg, se contraposta à luz de uma tradição que discute a individualidade em termos de indivisibilidade e diferenciação, pouco aparentará ter de reflexão sobre o indivíduo: não só a palavra individuum nela não surge uma única vez, como o problema abordado é o do conteúdo do acordo (convenientia) entre o todo da natureza e as suas partes, e da coerência (cohaerentia) mútua ocorrendo entre as partes de um mesmo todo natural, pelo que o ambiente traçado é um de composição de algo decomponível. Só à luz da ulterior definição de indivíduo da Ética se compreenderá que nesta carta de nada mais se trata que não de individualidade. A resposta ao problema abordado é a seguinte:

Por coerência das partes nada mais entendo portanto senão que as leis ou a natureza de uma parte de tal maneira se acomodam às leis ou natureza de uma outra, que em nada se contrariam. Quanto ao todo e às partes, considero as coisas como partes de algum todo enquanto a natureza delas se acomoda em reciprocidade, de maneira que, enquanto o podem fazer, consentem entre si; e enquanto na verdade diferem entre si,

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O Tratado Breve divide-se em duas partes, uma primeira acerca “de Deus e de tudo o que lhe respeita”, e uma segunda “do homem e de tudo o que lhe respeita”. No prefácio à parte II, Spinoza identifica o tema nas “coisas particulares e limitadas”, mas acrescenta que, perante a infinitude do seu número, interessam apenas aquelas “que respeitam ao homem”: cfr. KV, II, Pref, G I, pp. 51-2.

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A exposição desta nova variante da singularidade surge na longa e importante nota de rodapé acrescentada por Spinoza ao prefácio da parte II: v. KV, II, Pref, G I, pp. 51-2.

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cada uma delas forma na nossa mente uma ideia distinta das outras, e é por isso

considerada como um todo e não como uma parte.86

A partir daqui, Spinoza exemplifica recorrendo às partículas do sangue que se acomodam (accommodant) umas às outras por se comunicarem em conveniência os seus movimentos, tornando tal acomodação numa composição. Mas se um verme vivesse no sangue com a capacidade de apreender cada uma das suas partículas, tomaria cada uma delas como um todo em comércio de movimentos com as restantes, sem perceber que tal comércio é moderado em simultâneo pela própria natureza do sangue composto, isto é, que cada partícula é um todo que é parte.87 A completa amplitude do que Spinoza aqui afirma só será atingida na leitura da Ética, mas por ora há já alguns pontos de relevância: por um lado, Spinoza abraça expressamente o arranjo compositivo de intelecção das reificações naturais, pois concebe a coisa natural sempre integrada num processo de composição de algo recortável na infinitude da natureza; ao fazê-lo, inclui na realidade da coisa mesma uma experiência de relação, uma vez que toda a coisa não infinita reificando-se enquanto modificação precisa do todo da natureza é em simultâneo coisa-todo e coisa-parte, relacionando-se com outras coisas- todo e coisas-parte; por outro lado, tal como sucedera no Tratado Breve, o que sobretudo diferencia a coisa na natureza é a especificidade de movimentos tidos por modificações da natureza extensa (e isto em virtude dos exemplos físicos fornecidos por Spinoza em detrimento de outros possíveis no atributo pensamento, muito embora o que Spinoza afirme das partes e dos todos se aplique a qualquer coisa natural em qualquer atributo da natureza), mas – e aqui ocorre uma viragem importante – , e em desencontro com o carácter nominal conferido por Hobbes ao indivíduo, qualquer parte ou qualquer todo natural é coisa em si na natureza em função de leis de uma natureza própria (leges seu natura), isto é, todos os processos naturais de reificação são agora alimentados de uma dimensão ontológica. A singularidade vai despontando em Spinoza num fortalecimento florescente.

Uma tal positividade em crescendo do que é confinável é tanto mais notória no TTP, onde o indivíduo vem a surgir mais acentuadamente. Aí, o termo individuum sobrevém de maneira expressa, em especial enquanto momento de imputação do direito de natureza e enquanto agente humano nos processos de construção política. Algumas consequências são daqui retiráveis. Em primeiro lugar, o campo de fertilização do direito é identificado como a

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«Per partium igitur cohaerentiam nihil aliud intelligo, quam quod leges sive natura unius partis ita sese accommodant legibus sive naturae alterius, ut quam minime sibi contrarientur. Circa totum et partes considero res eatenus, ut partes alicujus totius, quatenus earum natura invicem se accommodat, ut, quoad fieri potest, inter se consentiant, quatenus vero inter se discrepant, eatenus unaquaeque ideam ab aliis distinctam in nostra Mente format, ac proinde ut totum, non ut pars, consideratur.», Ep. XXXII, G IV, p. 170.

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individualidade em determinação, o que não só implica a comparência de direito, e por conseguinte de indivíduo, onde houver potência em determinação – o indivíduo estendendo-se bem para lá da mera antropologia e aplicando-se à realidade de qualquer coisa natural, orgânica ou não –, mas também o estabelecimento do indivíduo como conceito acomodável ao jurídico-político, transmutando por várias áreas da ciência que não só a metafísica.

Tudo isto parece muito semelhante ao indivíduo hobbesiano. Todavia Spinoza, na senda do que já indiciara na carta XXXII, pretende superar o mero carácter nominal de unidade que Hobbes atribui ao indivíduo, e é levado a isso precisamente porque os fundamentos metafísicos da sua filosofia diferem em muito dos de Hobbes. É que para Spinoza (em segundo lugar) o direito não se instala simplesmente no indivíduo mas constitui- se na natureza do indivíduo (leges naturae uniuscujusque individui), o que equivale a assumir o indivíduo como conceito metafísico de consistência ontológica na existência mesma do todo natural. Ora, sendo conceito fundante de metafísica, aplicável a uma amplitude infinita de reificações recortáveis no todo natural, e transmutável por toda uma ciência de sustentação metafísica, o indivíduo não é já a mera designação da singularidade nem tão pouco assinala uma indivisibilidade diferenciada, mas é a concepção mesma de toda e qualquer unidade essencial. É na presença identificável de um ser que nasce a individualidade, e conquanto haja essência (de uma coisa-parte que componha, ou de uma coisa-todo que seja composta) há também indivíduo: a individualidade galga então as margens do confinável e estende-se até ao infinito, pelo que até o todo natural, ou Deus, pode ser referido enquanto indivíduo e jurídico88.

O indivíduo é por fim o conceito explorado por Spinoza que adquire densidade suficiente para absorver o significado e a dignidade que a “pessoa” obtivera na tradição jurídico-teológica. Daí que a personalidade nunca seja tema do TTP, nem enquanto individuada (nos mesmos moldes da individual person de Hobbes), mas sim a individualidade. No fundo é esta uma questão que se esconde por detrás daquela mais explícita no TTP, a do confronto entre o teológico e o político89, que é afinal solucionada pela necessidade de separar a teologia da filosofia. O indivíduo, ao dar-se como conceito fundante do jurídico-político, encontra o obstáculo da teologia, a qual aliena o indivíduo que é personagem de excursos políticos, o homem, a uma específica imagem de Deus, a de um

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Daí a legitimidade de referências a um “supremo direito natural” (summo naturali jure) e à certeza de “a natureza, considerada em absoluto, ter supremo direito a tudo” (Naturam absolute consideratam jus summum habere ad omnia): v. TTP, XVI, G III, p. 189 (DPA, p. 325).

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Ou, na expressão feliz de Y. Yovel, “what lies behind the hifen”: cfr. Y. Yovel, “Incomplete Rationality in Spinoza’s Ethics: Three Basic Forms”, p. 34.

Deus transcendente antropomorfizado que se faz eixo em torno do qual tudo gira e que por conseguinte desvirtua a individualidade da sua natureza de fundamento. Assim, para que o indivíduo seja trazido para o centro da reflexão filosófica, ele tem de ser apartado da “pessoa individual” própria de uma tradição teológica: e uma vez operada uma tal disjunção, o indivíduo passa a dar sustentação e legitimidade metafísicas a qualquer tratamento filosófico da política, fazendo-se como que o começo (o direito natural do indivíduo) e o fim (liberdade de pensamento e expressão do indivíduo)90 da filosofia convertida à política.

A separação entre a teologia e a filosofia, que em rigor não é actividade original por ter sido a seu jeito já empreendida por Descartes, por exemplo91, não é contudo aqui mero instrumento da transformação da personalidade jurídico-teológica em individualidade filosófico-jurídica, numa estratégia retórica visando destruir o que estava posto e erigir num outro lugar algo de oposto. Ao invés, há no TTP como que um procedimento completo de endoreconstrução da individualidade por meio de uma sua revalorização, partindo da desconsideração teológica do individual para atingir uma reconsideração filosófica do mesmo individual. Logo, há dois preconceitos referentes ao TTP que devem ser definitivamente superados: por um lado, a endoreconstrução é procedimento operando na inteireza da obra, pelo que, acarretando destruição do antigo e construção do novo com a aparência do antigo, o último quartel não pode ser autonomizado ao ponto de ser encarado como um livro dentro de um livro92; por outro lado, muito embora o TTP seja não apenas um ensaio teórico mas também uma experiência da filosofia muito receptível à linguagem de textos seus contemporâneos, não é rigoroso tomá-lo como mero manifesto retórico de pretensões políticas93, uma vez que a densidade ontológica trazida ao individual é bastante para considerá-lo tratado filosófico inventariando as etapas de constituição da existência do indivíduo, mormente o humano.

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No começo: «[…] a Jure Naturali uniucujusque incipio» [começo pelo direito natural do indivíduo], TTP, Praef, G III, p. 11 (DPA, p. 131). Na conclusão: «[…] jus suum naturale, sive facultatem suam libere ratiocinandi, et de rebus quibuscunque judicandi […] haec enim uniuscujusque juris sunt, quo nemo, etsi velit, cedere potest» [o seu direito natural, ou a sua faculdade de raciocinar livremente e ajuizar sobre qualquer coisa. … Porque tudo isto pertence ao direito de cada um que ninguém, mesmo que queira, pode ceder], TTP, XX, G III, p. 239 (DPA, p. 383).

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É E. Balibar, Spinoza et la politique, 1985, pp. 14-5, quem o nota bem explicitamente, remetendo para o Abrégé das Méditations Métaphysiques: « […] je n’entens point y parler des choses qui appartiennent á la foy, ou á la conduite de la vie, mais seulement de celles qui regardent les veritez speculatives & connuës par l’ayde de la seule lumiere naturelle.», Méditations Métaphysiques. Abrégé, AT IX-1, p. 11.

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É o que parece fazer F. Akkerman, in “Établissement du texte du Tractatus Theologico-Politicus de Spinoza suivi de quatre interprétations”, 1992, p. 100; no sentido oposto, v. D. P. Aurélio, Imaginação e Poder, 2000, p. 216.

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É a já clássica referência ao TTP enquanto Tendenzschrift (como o referem H. Cohen, “Spinoza über Staat und Religion, Judentum und Christentum”, 1915, p. 80; e C. Gebhardt, Spinozas Leben und Lehre, vol. 2, 1927, p. 179), ou “livro-libelo” (v. J. A. Aquino, “Hermenêutica e Ambigüidade: a estratégia discursiva de Espinosa”, 2007, p. 38).

Não obstante, o termo individuum brota do texto umas escassas oito vezes, e ele integra a definição de direito de natureza, mas jamais é definido por si. A sua positividade está lá, mas ela é ainda toda tácita; é perceptível o seu reflexo, mas não se lhe impõe uma “afirmatividade para o mundo” que baste para que se tome o TTP como contentor de uma doutrina da individuação. É com a Ética que se desvendará esta centralidade até aqui encapotada.

B) Ética

Na Ética, o individuum não se satisfaz com uma mera comparência, mas exige ser tratado como tema primordial. Para tal, mister é que o texto deixe de ser assumido como uma síntese geométrica de um sistema completo de filosofia de base metafísica, isto é, como um “tratado de metafísica”, e ascenda à plenitude do cumprimento do seu próprio título, enquanto obra ética. Mas se isto for feito, não é a individualidade em geral que se faz tema primordial, é sim a especificidade do indivíduo humano. Se pretendesse sintetizar um sistema de metafísica em aplicação nua do estilo euclidiano, Spinoza poderia ter escrito uma rigorosa colectânea de princípios de matemática pura ou seguido um tronco de explicação metafísico- físico, partindo dos princípios do conhecimento para os das coisas materiais, do mundo visível e da Terra, como o fizera Descartes nos Principia Philosophiae,94 mas não o fez: ao invés, invocando a limitação cognitiva do homem perante a infinidade dos atributos de Deus (só dois atributos sendo cognoscíveis ao homem), e na pretensão de construir uma soteriologia, Spinoza focaliza na salvação real do indivíduo o interesse maior da filosofia. Isto significa que o objecto de estudo da Ética não é simplesmente o indivíduo dado em essência definitiva, nem mesmo o indivíduo humano posto enquanto ser total, mas sim o processo de concreção da individualidade na sua específica modalidade humana, isto é, a dinâmica progressiva de realização individual do humano – a Ética é como que um tratado da individuação humana.95

Por conseguinte, não é também uma colagem de livros sinópticos sobre aspectos distintos de um mesmo sistema – um tratado de metafísica mais um tratado de física e

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V. a divisão das quatro partes dos Principia Philosophiae, AT VIII-1, pp. 331-348. Quanto à possibilidade aberta a Spinoza de elaborar a Ética seguindo outras estruturas que não a efectivamente seguida, v. P. Cristofolini, Spinoza. Chemins dans l’«Ethique», pp. 18-9.

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Num mesmo sentido, v. R. McShea, in “Spinoza: Human Nature and History”, 1975, pp. 101-2, o qual vai ao extremo até de chamar à Ética “a treatise on human nature” (p. 102); A. Tosel, “Quelques remarques pour une interprétation de l’Éthique”, 1985, pp. 143-4; E. Balibar, “Individualité, Causalité, Substance : Reflexions sur l’Ontologie de Spinoza”, 1990, p. 58.

epistemologia mais um tratado de antropologia mais um tratado de política mais um tratado