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2 – No início era a causa, no centro estava o homem

Não é com disposição leviana nem com um mero sentimento de aplicação do bombástico que é avançada a frase que termina o precedente sub-capítulo, mas as duas afirmações nela contida requerem fundamentação. Em primeiro lugar, porque a filosofia de

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A definição de causa sui, a qual se aperceberá ser aplicável apenas a Deus, é a definição que abre a Ética: «Per causam sui intelligo id, cujus essentia involvit existentiam; sive id, cujus natura non potest concipi nisi existens.» [Por causa de si entendo aquilo cuja essência envolve a existência; ou aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão existente.], E I Def I, G II, p. 45.

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um “homem embriagado de Deus” (nas palavras de Novalis) que concebe uma natureza que não é um mundo41 no interior de uma cosmogonia da qual o homem é efeito componente e não causa, medida ou razão de ser, não é facilmente aceite como tendo um centro, e muito menos um de natureza singular por tradição. E em segundo lugar, porque é possível distinguir, na história das transformações da individualidade, entre um problema do indivíduo (procurando desvendar o que é o indivíduo, supondo de antemão que há indivíduos) e um problema da individuação (procurando desvendar o que é a diferença numa espécie, supondo de antemão que há universais – matéria, forma, etc. – cujas variações divisíveis fazem nascer a individualidade)42. Ambas as afirmações, respeitantes à posição da individualidade numa filosofia dependente de metafísica e à proeminência de uma ontologia do indivíduo, fluem contudo de uma mesma fonte que é afinal metodológica em escopo. Indaga-se portanto se o método spinozano do filosofar decorre em torno de um centro e se o seu começo se mostra numa individualidade já toda dada ou numa totalidade universal pronta a deduzir a diferença do individual.

Quanto à problemática do começo, é facto indesmentível que o título da parte I da obra condensando em sistema a filosofia de Spinoza é “de Deus” (De Deo), e aqui algo se indicia. Spinoza não crê na possibilidade de aquisição de conhecimento verdadeiro no âmago de uma experiência dúbia do eu pensante, ao jeito cartesiano, pelo contrário, uma ideia verdadeira deve brotar de uma ideia verdadeira precedente, não numa regressão infinita de ideias sequentes mas a partir de uma ideia primeira cuja verdade seja apresentada ao entendimento como seu instrumento inato (innatum instrumentum)43: a ideia verdadeira é o começo do filosofar. E como todo o conhecimento verdadeiro segue e depende dessa ideia primeira, ele ordena-se num método que reflecte todas as relações de sequência e dependência reais, como as da causalidade própria da natureza. Se então a natureza é existência envolvida em processo de causalidade, há coincidência entre a ordem da natureza e a ordem do conhecimento, o filosofar acompanhando a produção do efeito pela causa e não a produção da causa no efeito44 – o método sintetiza-se, corre da causa para o efeito, não é analítico, correndo do efeito para a

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Expressão avançada por E. Balibar, in “Individualité, Causalité, Substance : Reflexions sur l’Ontologie de Spinoza”, p. 75, para explicar como a filosofia de Spinoza escapa a “qualquer concepção do mundo”.

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A importância desta distinção é relevada por A. P. Mesquita, O Indivíduo. Contributo para uma definição do conceito, pp. 5-17, o qual nota com pertinência a maior amplitude do problema do indivíduo perante o problema da individuação.

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Cfr. TIE, § 39, G I, p. 16.

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«[…] veram scientiam procedere a causa ad effectus;» [a verdadeira ciência procede da causa para os efeitos], TIE, § 85, G I, p. 32. Ademais, seguindo os axiomas III e IV da parte I da Ética, respectivamente, “de uma dada causa determinada segue-se necessariamente um efeito” (Ex data causa determinata necessario sequitur effectus […], G II, p. 46) , e “o conhecimento do efeito depende do conhecimento da causa e envolve-a” (Effectus cognitio a cognitione causae dependet, & eadem involvit, G II, p. 46).

causa. Logo, o que é causa da existência mesma na natureza é concebido como a ideia primeira do filosofar: Deus. Todos os que encetaram filosofia por análise, para Spinoza,

não observaram a ordem do filosofar. Pois a natureza divina, que deviam contemplar antes de tudo, porque é anterior tanto no conhecimento como na natureza,

acreditaram-na como sendo última na ordem do conhecimento45.

Eis como comummente se justificou, seguindo as palavras de Leibniz, que “a maior parte dos filósofos tenha começado pelas criaturas, Descartes pela alma, e Spinoza por Deus”46.

Hegel, a quem tão cara fora a problemática do começo, identifica-o em Spinoza também em Deus, mas dirige-lhe uma crítica feroz. Para Hegel, mesmo consistindo o impulso para a filosofia numa situação de insatisfação ou descontentamento47, o problema da natureza do começo (Anfang) do filosofar é o que se impõe primariamente, sobretudo porque não é possível a adopção de um método expositivo ou interpretativo que se distinga e independa do próprio conteúdo filosófico a expor e a interpretar: a progressão filosófica expositiva depende de uma identidade entre conteúdo e forma, ligação que representa um pressuposto fundamental do exercício do método dialéctico. Por outras palavras, não é possível uma forma de exposição ou interpretação filosóficas independente da matéria intrínseca que está sendo exposta ou interpretada: há uma identificação entre a exposição filosófica e o filosoficamente exposto: a forma é desde logo a primeira etapa do próprio conteúdo, e o conteúdo o primeiro indício da forma. O problema do começo do filosofar não é uma mera discussão formal mas a procura do primeiro passo do seu conteúdo.

Quanto ao problema central do começo – o como começar –, Hegel dá-nos a seguinte indicação:

O começo deve ser um absoluto ou, o que aqui é um sinónimo, um começo abstracto; e portanto nada pode pressupor, por nada deve ser mediado nem ter qualquer fundamento; ademais, deve ser o próprio fundamento de toda a ciência. Por conseguinte, deve ser pura e simplesmente uma imediatez, ou até somente a própria imediatez. Tal como nenhuma determinação quanto ao outro pode ter, assim também nenhuma [determinação] pode ter em si, nenhum conteúdo, pois qualquer um seria

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«[…] ordinem Philosophandi non tenuerint. Nam naturam divinam, quam ante omnia contemplari debebant, quia tam cognitione, quam natura prior est, ordine cognitionis ultimam […] esse crediderunt.», E II P10 Sch II, G II, p. 93.

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Trata-se de um extracto por Leibniz de uma Conversation avec Tschirnhaus sur l’Éthique de Spinoza, de 28 de Novembro de 1689, cit. in L. Stein, Leibniz und Spinoza, p. 283.

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«Im Philosophieren stelle ich mein Leben, mich selbst mir gegenüber; es setzt voraus, daß ich mit meinem Leben nicht mehr befriedigt bin» [No filosofar coloco-me perante a minha vida, perante mim mesmo; ele pressupõe que não mais estou satisfeito com a minha vida], Hegel, Einleitung in die Geschichte der Philosophie, p. 153.

uma distinção e uma inter-relação entre momentos distintos, e consequentemente uma

mediação. O começo é portanto o puro ser.48

O puro ser equivale assim a ausência, vacuidade própria de determinidade ou mera improbabilidade determinativa, isto é, imediatez num estado puro, não relacional. O seu carácter absoluto demonstra-se na sua abstracção: é este o começo da ciência do pensar. Contudo, o começo como puro ser abstracto e vazio de conteúdo acarreta desde logo um indício mínimo da natureza da meta final do processo dialéctico do filosofar: a Ideia Absoluta, incorporando em si as ideias presentes no processo dialéctico de produção de novos conceitos; categoria totalmente inclusiva e integradora, omnilateral, resultado final de um processo de concreção na descrição da realidade. A indicação do começo como pressuposto vazio ou mera unilateralidade só é definível como tal perante o momento de chegada de um tal processo contínuo de concreção: a identificação do começo (abstracto) conecta-se com a descoberta do resultado (totalmente concreto). A filosofia, assim, assume-se não só como movimento progressivo do pensar, mas também como reflexão permanente do seu começo ou tarefa de questionamento do seu próprio fundamento. Não obstante, convém não considerá-la uma dinâmica de auto-anulação, em que cada novo passo do processo dialéctico substitui ou revoga por completo o passo anterior: ao invés, cada passo constitui condição possibilitante, embora necessária, irrevogável e inalienável, de uma síntese superior49.

Ora é aqui que, para Hegel, Spinoza inverte o método apropriado do filosofar, pois ao partir de definições e de uma unidade total do ser em Deus, estaria a tomar tal síntese superior como começo, como conhecimento verdadeiro apenas em si e não também para si. E uma realidade que se dê toda no começo como presença completa, sem reconhecimento de ausência, não pode progredir, só no fundo degradar-se: o filosofar desenrolar-se-ia assim na “subtracção ao absoluto dos elementos da sua realidade”50, seria perda de razão e de realidade, não conquista. Para se não degradar, Deus já está todo aí na porta do edifício de Spinoza, que é afinal edifício feito só de porta – o começo é rígido, encerrado na sua própria generalidade, não sai de si para retornar, e portanto, para Hegel, é mera unilateralidade, simples imediatez. O particular, que é registo do princípio da individualidade, não é

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«So muß der Anfang absoluter oder was hier gleichbedeutend ist, abstrakter Anfang seyn; er darf so nichts voraussetzen, muß durch nichts vermittelt seyn, noch einen Grund haben; er soll vielmehr selbst Grund der ganzen Wissenschaft seyn. Er muß daher schlechthin ein Unmittelbares seyn, oder vielmehr nur das Unmittelbare selbst. Wie er nicht gegen Anderes eine Bestimmung haben kann, so kann er auch keine in sich, keinen Inhalt enthalten, denn dergleichen wäre Unterscheidung und Beziehung von Verschiedenem aufeinander, somit eine Vermittelung. Der Anfang ist also das reine Seyn.», Hegel, Wissenschaft der Logik, vol. 1, p. 54.

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V., neste sentido, M. J. Carmo Ferreira, «O Abstracto e o Concreto na Filosofia Política de Hegel», 2001, p. 263, assim como o nosso “Começo e progressão expositiva na filosofia política de Spinoza: um encontro com Hegel”, 2005, pp. 14-20.

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justificado a partir de Deus, não tem actividade ansiando retornar ao geral, é apenas deterioração em unidade, má individualidade.51 Quanto a este aspecto, Hegel considera Spinoza um introdutor no Ocidente de uma concepção oriental de identidade absoluta do uno, pois é precisamente esta crítica, a da ausência de uma individualidade concreta particular com realidade no absoluto, a mesma que Hegel aponta ao judaísmo, o qual integraria o mundo oriental.52

Esta crítica hegeliana assenta em dois pressupostos: um primeiro de acordo com o qual o método de Spinoza começa por definições ou estabelecimentos de verdade, com Deus tido por ideia primeira verdadeira; e um segundo de acordo com o qual o método de Spinoza é apresentável em maneira geométrica por se coadunar com uma dedutibilidade saindo de um universal primário. Porém, nenhum destes pressupostos parece estar revestido por uma fatalidade de aceitação. É verdade que, em primeiro lugar, são as definições que tendem a dar abertura aos argumentos seguindo a exposição da “ordem do conhecimento” (ordo cognitionis). Mas há que atender à especificidade do estatuto que assumem: elas são a um mesmo tempo nominais e reais53, e é sobretudo por serem nominais, qualidade que deixa transparecer a realidade de um aspecto funcional no argumento sequente, que impedem ao leitor a consideração de uma completude da definição. Há realidade e verdade na definição, mas a definição não esgota a realidade do definido, ela propõe-se como instrumento-base verdadeiro para a construção da verdade. Tal como a “ordem da natureza” (ordo naturae) procede numa causalidade contínua da existência de si, também a “ordem do conhecimento” procede num argumento contínuo da verdade de si: a coisa real não se dá toda na definição de início, nem o argumento é apenas a explicação ou demonstração por decomposição da verdade prévia mas a própria composição activa da verdade previamente relanceada.

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Cfr. Hegel, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, in Werke. In zwanzig Bänden, Bd. 20, pp. 164-7 e 182-9.

52

Cfr. Hegel, Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, in Sämtliche Werke, Bd. 11, pp. 260-4. O remontar de Spinoza a filosofias orientais é especialmente caro a alguns comentadores, sobretudo escandinavos, que superam (em Spinoza) esta “fraca individualização judaica” pintada por Hegel recorrendo a uma “espiritualidade mais profunda”, tanto no budismo como no hinduísmo: v. por exemplo H. Smith, “Pathfinders pointing to the rare way for pathseekers”, 1977, pp. xi-xv; A. Naess, “Through Spinoza to Mahayana Buddhism or through Mahayana Buddhism to Spinoza”, 1978, pp. 136-158; J. Wetlesen, The Sage and the Way. Spinoza’s Ethics of Freedom, 1979; P. Wienpahl, The Radical Spinoza, 1979. Num sentido mais crítico desta facilidade com que se remete Spinoza para um “misticismo orientalista”, v. M. Hulin, “Spinoza l’Oriental?”, 1983, pp. 139- 170, e M. Chaui, A nervura do real. Imanência e liberdade em Espinosa, vol. 1, 1999, pp. 103-7.

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Toda a definição tem de ser concebível por um intelecto, sendo então a seu jeito uma definição nominal, e inclui em si um enunciado de verdade, afirmação do que as coisas são em si a priori (notae per se), sendo então também definição de coisa. Cfr. Ep. IX, G IV, pp. 42-6. Sobre este tema, v. M. Gueroult, Spinoza. I-Dieu. (Ethique 1), 1968, pp. 20-6, e P. Macherey, Introduction à l’Éthique de Spinoza. La première partie, la nature des choses, 1998, p. 28-54.

Eis então como o método é uma inerência simultânea ao próprio conhecer, não lhe é anterior nem ulterior: não é uma estrutura formal autónoma sobre a qual é feito caber um conteúdo, não é condição possibilitante ou ambiente disposto a acolher em si o conhecimento, não é mapa instrumental de um caminho por percorrer; nem é também reflexão sobre o conhecimento ou mero resultado da imposição da ideia verdadeira primeira, num desenrolar de descoberta das propriedades da ideia verdadeira.54 Pelo contrário, a definição inicial afirma a verdade de uma ideia primeira e a sua natureza mesma de funcionalidade num método constitutivo, ela é em simultâneo afirmação essencial e metodológica. Logo, o próprio conhecimento não se confina a prosseguir por justificação e descoberta do que é já dado (tal exigiria que o já dado fosse estático na revelação da sua verdade e não uma produtividade em produção), ele acompanha a própria produção do real ao ser produção de conhecimento. Há assim lugar em Spinoza para um conhecimento novo que solidifica a verdade da definição inicial, progredindo e não somente regredindo.55 Solidificar a definição inicial indicia adopção de progressão, mas não do experimentalismo das ciências ou da análise comprovativa de hipóteses previamente delineadas, ao jeito de Galileu: o início não reside na situação própria de um eu que problematiza uma hipótese testável por experimentação, mas numa ideia verdadeira, a qual não é sede de possibilidade de verdade, mas a verdade mesma já mostrando-se. E por haver progressão é que chegam a ser dadas definições no interior do argumento e não apenas no início, como a de indivíduo56: estas não são simplesmente descobertas na afirmatividade tácita da definição inicial, elas são um retraçar do retrato da

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Tomando o método num enquadramento cartesiano de anterioridade face à ideia verdadeira, P. Macherey, Hegel ou Spinoza, 1979, pp. 55-60, não pode deixar de considerar o TIE como um “discurso contra o método”. No sentido da inerência do método à ideia verdadeira, v. R. Violette, “Méthode inventive et méthode inventée dans l’introduction au De Intellectus Emendatione de Spinoza”, 1977, p. 319. No sentido da ulterioridade do método face à ideia verdadeira primeira, v. M. L. Ribeiro Ferreira, A Dinâmica da Razão na Filosofia de Espinosa, 1997, p. 365, e, pelos termos utilizados (a ideia verdadeira como “norma” do seguinte, e o método como “reflexão sobre ideias verdadeiras”), também A. Garrett, Meaning in Spinoza’s Method, 2003, pp. 85-6.

55

Cfr. B. Rousset, “Introduction”, in Traité de la reforme de l’entendement, 1992, pp. 41-6; B. Dejardin, Pouvoir et impuissance. Philosophie et politique chez Spinoza, 2003, pp. 33-5. No sentido exactamente oposto, v. A. Darbon, Études spinozistes, 1946, p. 24. Aliás, para se possibilitar que uma estrutura conceptual antiga inadequada seja endoreconstruída, e não simplesmente afundada por uma outra sobreposta, tem de haver lugar para o novo no filosofar: v., relevando a importância da experiência como impulso de renovação, H. Santiago, “O mais fácil e o mais difícil: a experiência e o início da Filosofia”, 2007, pp. 37-40.

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A definição de indivíduo surge apenas em E II P13 Def, G II, p. 100. P. Cristofolini, Spinoza. Chemins dans l’«Ethique», pp. 12-3, nota que a introdução do método euclidiano na ciência moderna foi operada em especial por Giovanni Alfonso Borelli, e que Spinoza se afasta de Euclides num ponto muito específico, o do estatuto das definições: «La démarche de Spinoza est différente: ses définitions précèdent les axiomes et sont tout à fait distinctes d’eux. En outre, elles ne sont pas liées entre elles de manière à pouvoir constituer un corps organique ; par ailleurs, les définitions spinoziennes ne sont pas exhaustives concernant la nature de la chose définie.» (p. 12). E acrescenta com muita pertinência que, apenas do conjunto de definições da parte I da Ética, nenhuma relação é directamente estabelecida entre a substância, Deus, e a causa de si, a existência necessária da substância sendo só demonstrada na proposição VII; e que, por exemplo, as definições dos afectos na parte III são «points d’arrivé et non pas de départ d’une déduction» (p. 13).

ideia verdadeira primeira. É que o conhecimento parte da intuição da ideia verdadeira numa definição afirmativa, a qual, se fosse completa na verdade, seria bastante por si para a obtenção do conhecimento, não exigiria ulterioridade: seria inata mas não instrumento, afirmação de verdade e não de método. O pensar empedernir-se-ia num bloco amorfo.

Por conseguinte, e em segundo lugar, a adopção do método geométrico à maneira euclidiana não surge em Spinoza como mera formatação da necessidade de uma dedutibilidade a partir de um todo encerrado. O método geométrico fora já aceite por Descartes (enquanto sintético) no campo matemático, mas não tanto no metafísico57, por só na matemática haver facilidade em intuir verdades completas que sirvam de início a uma dedução. Spinoza porém nega um carácter estático ao método geométrico precisamente porque não completa nas definições iniciais a verdade do definido, abrindo-a ao invés a uma dinâmica de progressão, tão adequada à compreensão das matemáticas quanto à construção do real. Spinoza alimenta de dinâmica o método geométrico por dinamismo e geometria serem ambos inerências à própria “ordem do filosofar” (ordo Philosophandi).58

Ademais, se a natureza divina deve ser contemplada antes de tudo (ante omnia) por ser a ideia verdadeira primeira por excelência, não deixa de ser curioso que a definição introduzindo a Ética, o De Deo, seja a de causa de si (causa sui) e não a de Deus. É que ela é o fundamento mesmo da divindade, e a natureza divina só é divina porque encontra a sua razão de ser nela: a natureza não é causa de si porque é divina, ela é divina porque é causa de si. Por outras palavras, não é Deus que define a causalidade de si, é a causalidade de si que define Deus. Causar a si mesmo é pôr-se como efeito do seu próprio ser, e relacionar a existência de si com a essência de si sem recurso a mediação externa: não é somente não ter causa externa, é produzir-se por si.59 Como para Spinoza é necessário que

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Cfr. Descartes, Réponses aux secondes objections, AT IX-1, p. 122.

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Sustentando que é geométrica qualquer estrutura herdada a partir de Euclides, v. H. A. Wolfson, The Philosophy of Spinoza, vol. I, 1934, pp. 3-60. Contrapondo-se, crendo consistir o método geométrico num qualquer tipo de dedução lógica expositiva, v. F Kaplan, L’Éthique de Spinoza et la Méthode Géometrique, 1998, p. 20. Para o relevo da oposição entre ambos, v. E. A. Rocha Fragoso, “Benedictus de Spinoza e o Método Geométrico: para uma análise das suas Origens”, 2004, pp. 53-9. Relativamente à ausência de qualquer dedução lógica na própria Ética, v. P.-A. Bertauld, Méthode spinosiste et méthode hégélienne, 1891, pp. 122-8, e ainda J. Moreau, “Approche de Hegel”, 1982, p. 26, o qual menciona a presença de uma dialéctica descendente, partindo de uma ideia de unidade e procedendo sucessivamente através de vários graus determinativos cada vez mais complexos e particularizados, sempre tendo em vista a crítica hegeliana ao método de Spinoza. M. Gueroult, porém, em Spinoza. II-L’Ame (Ethique 2), 1974, pp. 481, é quem melhor releva um aspecto dinâmico introduzido por Spinoza no método de origem euclidiana, em contraste com uma sua concepção mais “estática” por Descartes. M. L. Ribeiro Ferreira, A Dinâmica da Razão na Filosofia de Espinosa, 1997, pp. 327-8, descortina contudo bem a influência tácita de Ernst Cassirer nas análises que M. Gueroult dirige ao método geométrico de Spinoza.

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Esta dupla dimensão, negativa e positiva, da causa sui fora já arguida por Descartes: «[…] lorsque nous disons que Dieu est par soy, nous pouuons aussi à la verité entendre cela negatiuement, & n’avoir point d’autre pensée, sinon qu’il n’y a aucune cause de son existence ; mais si nous auons auparavant recherché la cause pourquoy il

a ideia ou definição da coisa exprima a causa eficiente60,

não há sequer totalidade definível cuja verdade possa instalar um exercício do pensar sem um preconceito de causalidade. Definir é afirmar um andamento causal, positivar uma produtividade. A natureza divina é então própria da natureza absoluta da causalidade, aquela cuja essência basta para se fazer. Não é por acaso que a primeira palavra brotando da Ética