• Nenhum resultado encontrado

Arte e Crítica feminista nos EUA e na Europa a partir da década de

Linda Nochlin, em seu artigo inaugural Why have there been no great women artists?, publicado originalmente em 1971, afirma que são as condições institucionais (públicas) e não individuais (privadas) que, nas artes, estão vinculadas ao êxito ou ao fracasso. Nochlin desconstrói a ideia de genialidade e de que esse conceito seja um atributo inato e defende que “gênio”, na realidade, não é uma essência fixa, mas uma prática social dinâmica construída em dada circunstância. A autora ressalta que é importante questionar a própria estrutura de sua pergunta inicial e buscar respondê-la fazendo uma análise do sistema da arte em conjunto com os estudos sociais. Assim, a historiadora problematiza as condições desiguais de produção artística feminina e as estratégias de poder e de saber da própria disciplina que justificavam o não reconhecimento das mulheres como grandes mestras.

No livro Old Mistresses: Women, Art and Ideology, publicado pela primeira vez em 1981, Pollock e Rozsika Parker (2013) partem da premissa de que mulheres artistas existem desde a antiguidade. As autoras contam que Giovanni Boccaccio produziu um texto inspirado em famosas mulheres da Antiguidade, o De Claris Mulieribus, de 1370, que incluiu relatos de três artistas clássicas: Eirene, Marcia e Thamyris. No século XVI, em seu tratado considerado inaugural, Giorgio Vasari também escreve sobre artistas mulheres. Neste trabalho, por exemplo, há um capítulo a respeito da escultora Properzia de’ Rossi (1490-1530), dados sobre Sofonisba Anguissola (1532/5-1625) e suas cinco irmãs e a descrição de uma obra de Plautilla Nelli (1523-1588). Assim, Pollock e Parker sustentam que, apesar de serem mencionadas dentro de estereótipos “femininos” e com “status” inferiores, as artistas mulheres estão presente nos livros de arte até o século XIX. Entretanto, no século XX, espantosamente, as artistas começam a desaparecer dos textos dos escritores modernos. Para Pollock e Parker (2013), os historiadores da arte do século XX tiveram inúmeras fontes para mostrar que mulheres artistas sempre existiram, mas eles ignoraram esse fato. Isto é o que observamos no

38

livro A História da Arte de Ernest Gombrich, de 1961 e no História da Arte de H. W Janson, de 1962, em que ambos os autores não mencionam artistas mulheres.

Além desse apagamento das artistas, a estrutura patriarcal reservou à mulher poucas possibilidades de escolha. Nas academias de arte dos séculos XVIII e XIX, as mulheres foram impedidas de pintar os gêneros maiores, ao lhe ser negado o estudo dos nus, sendo permitidos apenas a natureza morta, o retrato e a paisagem. O acesso ao modelo-vivo era considerado absolutamente indispensável à formação de um artista e, visto que para as mulheres isto era proibido, uma segregação se começa a fazer presente. Essa separação transformou-se em um argumento usado para comprovar a desigualdade de talentos entre as artistas mulheres e os homens. Desse modo, elas eram excluídas do aprendizado de uma linguagem fundamental da arte e não tinham o poder “de fazer suas próprias representações do mundo, desde seu próprio ponto de vista, para resistir ou responder à hegemonia de classe ou do sexo dominantes” (POLLOCK, 2007, p. 75). Além disso, parece impossível historiadores e críticos referirem-se às mulheres sem mencionarem sua sexualidade e, com isso, não interferirem no tratamento das obras. O fato das artistas serem mulheres tinha um peso muito significativo, assim, primeiramente, elas eram vistas como mulher e depois como artista (LOPONTE, 2002).

Artemisia Gentileschi, por exemplo, além de ser violada quando adolescente, foi depreciada pelos biógrafos que diziam que o abuso deixou-a sexualmente “livre”; Sonofisba, no tratado de Vasari do século XVI mencionado anteriormente, recebeu comentários nada pertinentes, que mencionavam seus aspectos físicos – como a beleza – e psicológicos – como a modéstia; Elisabetta Sirani teve sua capacidade artística criadora questionada a ponto de acharem que ela fraudava suas obras, pois não acreditavam que uma mulher pudesse pintar tão bem; sobre Suzanne Valadon falavam que era amante de muitos artistas, mãe solteira e filha ilegítima. Estes tipos de comentários muito raramente eram utilizados para referenciar-se aos homens e, na hipótese disso ocorrer, serviam apenas para reiterarem a ideia de gênio em determinado artista homem (PORQUERES, 1994).

Mulheres artistas estavam, na maioria das vezes, em posições coadjuvantes: eram esposas ou amantes, ou mães, ou filhas, isto é, eram justificadas a partir de uma

39

relação que se estabelecia com um outro sempre masculino. Sem contar que, constantemente, tinham suas competências colocadas à prova ou questionadas, visto que a genialidade era considerada um atributo masculino:

Vale a pena conhecer as afirmações misóginas de artistas renomados como Renoir (“Considero as escritoras, advogadas e políticas – como Georges Sand, Madame Adam e outros – como monstros, como terneiros de cinco patas [...]. A mulher artista é sinceramente ridícula”) e Degas, sobre Mary Cassatt, artista impressionista americana (“Não posso admitir que uma mulher desenhe tão bem!”) (LOPONTE, 2002, p.289).

Rozsiska Parker11, com certa ironia, afirma que “a arte, claro, não tem sexo; mas

o artista, sim”. Isto é, os aspectos de gênero são considerados nas trajetórias e vivências dos artistas, não há neutralidade de gênero, como supõem algumas pessoas. De acordo com Luciana Loponte, é possível observarmos a maneira como a trajetória de Camille Claudel (1864-1943) foi conduzida, a partir do viés de gênero. Esta artista era ligada ao escultor Rodin (1849 -1917) tanto emocional quanto afetivamente. Para os homens que detinham os meios de controle no mundo da arte, naquela época, o fato de Camille Claudel ser uma mulher significava ser mais sexual do que intelectual, assim, sua história tinha apenas uma possibilidade: fazer parte de uma outra história (no caso a de Rodin) e não ter uma apenas sua. O fato de Rodin, por meio de suas obras, trabalhar com a sexualidade só o legitimou como um gênio criativo, enquanto que algumas obras de Camille não foram aceitas pelo excesso de realidade que elas traziam, especialmente se tratando de expressões consideradas sensuais (LOPONTE, 2002).

Já em relação à arte moderna, Pollock (1998) acredita que ela exalta uma tradição exclusivista, que canoniza como o único modernismo um determinado conjunto de práticas específicas e gerais. Para a autora, apenas homens aparecem como precursores dos principais movimentos no modernismo, não porque não haviam mulheres envolvidas nesses primeiros movimentos e nem porque elas não eram

40

importantes a ponto de não os influenciar, mas porque as relações de sexualidade, poder e gênero determinavam quem podia representar e também ser representado.

Muitas das obras tidas como inaugurais da arte moderna tratam precisamente da sexualidade e, desta, como uma troca comercial. As cenas de bares, bordéis e divã de artistas eram possíveis apenas para os homens que tinham a liberdade de desfrutar de prazeres em espaços onde as mulheres comercializavam a companhia delas e a relação sexual. Entrar nesses mesmos espaços representava uma grave ameaça à reputação de uma mulher burguesa e a sua “respeitabilidade”, pois o espaço público não deveria ser ocupado por mulheres, a elas cabia apenas o espaço privado. Ou seja, as mulheres burguesas eram proibidas de frequentarem esses locais, por outro lado, inúmeros corpos femininos eram “comercializados” nesses ambientes. Apesar disso, ao representarem esses corpos femininos, os homens artistas afirmavam posições de vanguarda (POLLOCK, 1998).

Além dessas críticas que as teóricas feministas começaram a fazer a partir da década de 70 ao mundo da arte, em meados dos anos 60, aparecem as primeiras performances já influenciadas pelas ideias feministas, como o trabalho Eye Body12, de

1963, de Carole Schneemann e o trabalho da Yoko Ono Cut Piece13, de 1965. A arte

feminista14 norte-americana que se inicia na década de 60 possuía um teor de denúncia

e inconformismo com as desigualdades. Na década de 1970, surge o Feminist Art Program, no Instituto de Artes da Universidade do Estado da Califórnia, organizado por Judy Chicago e Miriam Schapiro. Este programa era exclusivo para a formação de mulheres artistas. Naquela época, embora a preponderância de alunos de graduação fosse de mulheres, poucas tornavam-se profissionais e construíam carreiras bem sucedidas, assim, Shapiro e Chicago se propuseram a mudar a situação. Com isso, houve o desenvolvimento das ideias feministas no interior do ambiente acadêmico e as

12 A imagem dessa obra pode ser vista nos anexos (Figura 49). 13 Idem (Figura 50).

14 A curadora e crítica de arte Lucy Lippard (1995) explica que a arte feminista não era um movimento artístico, pois

estava fundamentada no conteúdo e não em um “estilo” que a caracterizasse. Lippard (1995) afirma que a arte feminista ainda está em atividade e a cada década ela tem ressurgido nos trabalhos de artistas variados. Outro aspecto que devemos destacar é que do mesmo modo que existem múltiplos feminismos há também inúmeras criações artísticas feministas. Cada artista que decidiu produzir obras feministas apresentou características e processos específicos. Não há linearidade quando falamos em uma arte feminista. Podemos dizer é que, afetadas pelas ideias feministas, as artistas focavam diretamente a mulher, a partir de um olhar próprio que encontrava-se mais crítico e consciente, apesar de, no início, essa arte feminista ter sido mal recebida e compreendida

41

teóricas feministas, dentro da arte, puderam “oficializar-se” através da produção artística (TRIZOLI, 2008).

Também nos EUA, na década de 80, as mulheres artistas, como resultado das críticas que surgem dentro do próprio movimento feminista em relação ao essencialismo, passam a criticar os elementos racistas, eurocentristas e conservadores interiorizados no pensamento feminista da arte. Nesse momento, as artistas negras discutem seus papéis na sociedade, como Sonia Boyce15 (TRIZOLI, 2008, p.1500-

1501).

Em 1989, numa tentativa de denunciar a desproporção dentro dos museus entre o número de artistas mulheres em relação aos homens e uma superexposição da nudez feminina nas obras de arte, o grupo norte americano Guerrilla Girls16 elaborou o pôster

Do women have to be naked to get into the Metropolitan Museum? que continha o seguinte texto: Do women have be naked to get into the Met. Museum? Less than 5% of the artists in the Modern Art Sections are women, but 85% of the nudes are female – (“As mulheres têm de estar nuas para conseguirem entrar no Met. Museum? Menos de 5% dos artistas da Seção de Arte Moderna são mulheres, mas 85% dos nus são femininos”). O ativismo artístico deste grupo evidenciou a desigualdade de gênero presente no mundo das artes: a objetificação do corpo feminino; a mulher passiva, adormecida, que não fala, só é contemplada; a ausência de mulheres dentro de espaços artísticos como sujeitos ativos e representantes.

Nos anos 90, no geral, as discussões das artistas norte-americanas são influenciadas pelas teorias e estudos psicanalíticos, de gênero e o político, além do desenvolvimento da arte tecnológica e seus novos questionamentos levantados. Toda essa movimentação resultou em um aprofundamento nas pesquisas a respeito da misoginia presente na história da arte, questionando os por quês das dificuldades de inserir as mulheres e buscando saber quais são os mecanismos de exclusão. A história da arte e o mercado de arte não estão isentos dos valores morais da sociedade à qual pertencem, eles refletem suas ânsias, preconceitos e valores vigentes (TRIZOLI, 2008).

15 Ver figura 51 nos anexos.

42

Na arte contemporânea, todos esses elementos das décadas passadas ainda estão presentes, evidentemente, os meios, os processos e as interpretações são diversas. As questões sobre papéis sociais, identidades, gênero, desigualdades, violência, prazer, afetos são frequentemente discutidas. Os artistas que trabalham com esses temas, não necessariamente, se definem feministas ou tem noção que tocam em pontos levantados pelo pensamento feminista, como a artista Cindy Sherman que falaremos mais no próximo parágrafo. Vale dizer também que este é um ponto complexo, por isso, é preciso cuidado para não projetarmos o feminismo em locais em que ele não existe e atenção para vê-lo em lugares inesperados e que se dizem isentos de sua influência.

A esse respeito, Ana Paula Cavalcanti Simioni (2013)17, em uma recente

entrevista concedida a TV USP, fala sobre a artista Cindy Sherman - única artista mulher que encontra-se na lista dos “20 mais mais” da arte contemporânea. De acordo com a pesquisadora, Sherman não se diz uma artista feminista, apesar disso, sua obra traz a temática feminista de que a feminilidade não é algo natural das mulheres, mas sim um constructo social, algo que é ensinado e aprendido através dos discursos. Estes podem ser o da indústria cultural, cinema, publicidade e da própria história da arte. Assim, essa construção envolve disputas e poder que muitas vezes não são notados e assimilados acriticamente. Não é necessário que Cindy Sherman se nomeie feminista para percebermos em suas obras um posicionamento crítico oriundo do pensamento feminista. É claro que para isso é importante se basear em elementos formais da obra da artista, tem que ser algo bem fundamentado e não aleatório.

Apesar desse suposto medo ou receio que a palavra feminismo parece causar em algumas artistas, talvez, por desconhecimento de seus significados, não podemos negar que, a partir do final do século XX e início do século XXI, após várias décadas dos primeiros questionamentos feministas, a situação das artistas mulheres no mundo das artes transformou-se razoavelmente. Simioni (2011), em seu artigo A difícil arte de se expor mulheres artistas, fala sobre a crescente quantidade das exposições internacionais de artistas mulheres. Segundo a autora, durante o ano de 2009, o Centre Georges Pompidou realizou a exposição Elles composta por obras de mulheres artistas

43

presentes em sua coleção. Apesar de incomum, a exposição não foi inédita, pois já em 1995, o mesmo museu organizara a exposição Féminin-Masculin: le sexe de l'art. Em 2007, o Museum of Contemporary Art, de Los Angeles, realizou a exposição Wack! Art and Feminist Revolution. Entretanto, Simioni destaca que a dimensão de Elles se sobressai, por causa da grandeza de sua escala que reuniu mais de 200 artistas e mais de 500 obras. Para a socióloga brasileira, isso comprova o impacto que os estudos sobre as relações entre arte e gênero foram capazes de provocar nas instituições artísticas.

Nessa perspectiva, Linda Nochlin (2006), 30 anos após seu texto inicial Why have there been no great women artists?, afirma que as teorias do discurso e dos feminismos transformaram grandemente a história da arte. Para a autora, os feminismos foram muito importantes para o pensamento contemporâneo sobre a arte, visto que através deles houve a descentralização de um tipo de análise focada apenas nos “mestres”, fazendo com que muitas artistas mulheres passassem a ter lugar no mundo da arte. Entretanto, a seu ver, a maneira como estas artistas foram aceitas é questionável. Além disso, Nochlin apresenta alguns exemplos de mulheres artistas consagradas para mostrar as mudanças ocorridas desde 1970. No final do seu texto, a autora afirma que as tentativas dos feminismos iniciadas na década de 70 ainda não foram finalizadas; sugere, então, que as novas gerações precisam continuar trabalhando nesse sentido.

Amelia Jones (2008), por sua vez, acredita que o feminismo não eliminou completamente as estruturas machistas, pois são essas que ainda sustentam o mundo da arte em todos seus aspectos. O que ocorre de fato, segundo Jones, é uma conquista do feminismo em relação à aceitação das artistas mulheres. “No entanto, o corolário dessa valoração da arte feminina é, como não, uma valoração econômica: tornar a colocar-nos no mesmo centro (como seja) do problema do capital” (JONES, 2008, p.9). Para Jones, a lógica da crítica feminista consistiria em destruir o conceito de arte como nós conhecemos no mundo Ocidental. Neste sentido, o feminismo é muito importante para rever privilégios políticos, culturais e econômicos mantidos por estruturas que muitas vezes são ocultas, interiorizadas e silenciadas.

44

Todas as teorias feministas, apresentadas anteriormente, foram fundamentais para que os autores brasileiros desenvolvessem um posicionamento crítico em relação à história da arte brasileira, pois muitos dos problemas que ocorreram/ocorrem nos EUA e na Europa também aconteceram/acontecem aqui. Entretanto, no Brasil, há especificidades que devem ser consideradas. Deste modo, no próximo tópico faremos observações sobre as questões de arte e gênero no Brasil, a partir de alguns estudos que foram desenvolvidos por autores brasileiros e que consideramos mais pertinentes para a nossa pesquisa.